Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação do CORREIO DA CIDADANIA |
A Colômbia esteve recentemente em grande
evidência nos noticiários nacionais em função de novo posicionamento
das FARC que, em comunicado, disseram que não dariam prosseguimento às
suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos
reféns. Como sempre, quando se trata de questões afeitas aos nossos
vizinhos latino-americanos, especialmente se envolvem as entidades tidas
a priori como ‘terroristas, o teor das análises varia entre a
superficialidade e a apelação. Quando muito, a apresentação de uma
biografia de algum dos personagens envolvidos nos ‘seqüestros’ ou
‘atentados’, principalmente se vier a corroborar os dogmas tão caros - e
manjados - à nossa imprensa.
O fato é, no entanto, que, na medida em que nos dispomos a nos
aprofundar, um tanto que seja, na realidade latino-americana, são
incontáveis e surpreendentes as descobertas que se podem fazer face
às caricaturas às quais estamos expostos. A Colômbia talvez seja um
caso extremado desse quadro, em função da notoriedade das suas
guerrilhas e do potencial de visibilidade que trazem as notícias e
artigos nos quais são citadas. Pietro Alarcon, colombiano e professor de Direito na PUC-SP,
concedeu-nos uma entrevista sobre a conjuntura atual do país, da qual
se apreende um cenário político, econômico e social complexo e, ao mesmo
tempo, dramático.
De acordo com estatísticas oficiais, o país de cerca de 46
milhões de habitantes abriga hoje 29 milhões de pobres e por volta de 9
milhões de habitantes na pobreza absoluta; 3,4 milhões de pessoas são
refugiadas internas, o que, por si só, dá a dimensão da crise
humanitária vivida pelo país. A participação da população civil em
conflitos armados, planejando ações contra as entidades de classe,
sindicatos e outros órgãos comunitários, ocorre, por sua vez, em
flagrante desrespeito às normas do Direito Internacional Humanitário.
A opção pela militarização para a solução de conflitos, o autoritarismo do Estado em sua relação com a sociedade e um forte e incondicional alinhamento com os EUA persistem, pois, sob o comando do atual presidente Juan
Manuel Santos – de forma menos visível, mais camuflada, mas com a mesma
lógica existente à época de Uribe. Uma situação que em nada contribui
para um processo de paz. Assim como para ele não colabora a negação,
pelo Estado, da existência de presos políticos na Colômbia – forte
contradição face à admissão da existência do conflito armado.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: O que pensa da atual conjuntura
política, econômica e social na Colômbia? O que se pode dizer do absurdo
número de assassinatos políticos, como nas últimas eleições, e também
do incrível número de mortes de sindicalistas, líderes comunitários,
camponeses, além de outras brutalidades contra indígenas, mulheres, agricultores?
Pietro Alarcón: A verdade é que existe, como é
lógico, uma variedade de aspectos que podem ser abordados, de cunho
político, econômico, social, militar e jurídico.
Acho possível estabelecer uma espécie de marco geral de análise de
uma sociedade na qual se verifica um confronto de projetos sobre a saída
ao conflito social e armado, uma constante nos últimos 50 anos. Por um
lado, segmentos do Estado, nos quais há civis e militares, propõem e
executam uma ação dirigida à imposição da saída militar, que não inclui
modificações do regime político ou transformações sociais significativas
do modelo econômico.
Por outro lado, há os setores convencidos da necessidade da saída
pela via do diálogo, da negociação, da necessidade de criar mecanismos
de distensão que possibilitem caminhos de paz acompanhados de uma
discussão ampla sobre os problemas históricos que ocasionaram a
violência na perspectiva de um novo cenário, de efetivação de direitos,
de abertura democrática.
Neste marco geral é possível continuar a enxergar alguns elementos pontuais que revelam as idas e vindas da situação.
Correio da Cidadania: E quais elementos você destacaria em todo esse arranjo sócio-político?
Pietro Alarcón: Vou colocar alguns dados que acho
importantes, especialmente após os resultados eleitorais de 2010, que
refletem a continuidade de um processo que vem de 2002, quando da
primeira eleição de Uribe. Nessas eleições de 2010, Santos obteve mais
de 9 milhões de votos.
Correio da Cidadania: Esse é um número significativo para
quem representava a continuidade de Uribe, diante de permanente caos
interno. Como você explica essa votação elevada?
Pietro Alarcón: Essa votação se explica por vários
fatores, que vão desde uma adesão ideológica e fisiológica ao governo da
chamada “Unidade Nacional”, o slogan do governo de Santos, passando
pelo uso da máquina eleitoral e do poder da mídia. Mídia que polarizou a
eleição entre Santos e o candidato Antanas Mockus com o objetivo de
esconder a oposição que dá ênfase à necessidade de uma mudança
estrutural no país, especialmente o Pólo Democrático Alternativo (PDA).
Explica-se ainda pelo assistencialismo no governo de Uribe através de
programas como Famílias em ação. E temos que considerar também a
disseminação em algumas regiões do receio pelo terror paramilitar,
através da intimidação dos chamados guarda-bosques.
Correio da Cidadania: Há diferenças entre o governo de Uribe e o de Santos?
Pietro Alarcón: Eu acho que, para caracterizar o
governo de Santos, temos que ver um pouco o governo de Uribe. Porque eu
acho que temos de lembrar disso? Porque o governo Uribe propôs três
questões: a chamada segurança democrática, a coesão social e a
recuperação da confiança internacional para atrair investimentos. É fato
que os dois primeiros implicam a militarização do país e a criação de
forças de denúncia e ação policial com aval do Estado e particularmente
das forças armadas. O problema é que esses denunciantes são recrutados
da própria sociedade, em troca dos mais variados favores estatais. O que
contribui para uma fragmentação social que não permite ou conduz à
trilha do diálogo, mas da confrontação. Há uma obra de Lon Fuller,
traduzida por um querido amigo e professor, a dos denunciantes invejosos, que sempre me lembra esta situação.
Outro elemento é a criminalização do protesto social e o cerceamento
das liberdades públicas, oficialmente ou extra-oficialmente, ou seja,
utilizando mecanismos que o governo considera legítimos ou, em outras
oportunidades, mecanismos completamente à margem de qualquer Estado de
Direito. O governo, em reiteradas oportunidades, agiu por fora da
estrita legalidade para grampear telefones e ameaçou setores da
sociedade civil, cometendo crimes de responsabilidade ao colocar em
risco a vida de lideranças políticas e sociais. Questões pelas quais
Uribe tem sido chamado a explicações pelo Congresso.
E a última proposta tem como objetivo a liberação dos acordos no
modelo TLC – Tratados de Livre Comércio. Com Santos, no governo
intitulado de Unidade Nacional, isso que menciono permanece.
Acho que, agora com maior nitidez, se observa o fortalecimento de um
projeto político que continua gravitando entre o autoritarismo na
condução do debate com os setores sociais organizados, militarismo e
alinhamento internacional às opções dos Estados Unidos.
Para exemplificar, continua em andamento o processo para tentar
incorporar a população civil ao conflito, em clara violação às normas do
Direito Internacional Humanitário.
Correio da Cidadania: Em que consiste essa história de incorporar a população civil ao conflito?
Pietro Alarcón: As normas do Direito Internacional
Humanitário são de origem convencional, ou seja, são definidas com base
nos costumes, e se originam da necessidade de restringir, por razões
humanitárias, o direito das partes do conflito armado em utilizar meios
de guerra. São normas para proteger a população civil. São as Convenções
de Genebra e elas proíbem os maus tratos, as torturas, os tratamentos
degradantes da população civil. Essas normas determinam que as forças
armadas têm de distinguir civis de combatentes, ou seja, os objetivos
militares da população inerme e indefesa.
Então, por exemplo, na Colômbia temos um problema de ausência de
efetividade dessas normas e o seu não reconhecimento. Por exemplo, as
Forças Armadas deram a conhecer há alguns dias um plano chamado Plano Espada de Honra, feito
especialmente para que os civis se assumam como defensores do Estado. A
idéia é que estas pessoas participem do conflito reproduzindo
materiais, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e
outros órgãos de participação comunitária e popular, que continuam a ser
acusados de cúmplices da insurgência armada. É muita intolerância e,
sobretudo, muita irresponsabilidade. Isso não somente fragmenta, mas
desgarra a sociedade colombiana.
Correio da Cidadania: Assim, nota-se inequívoca continuidade face ao governo de Uribe?
Pietro Alarcón: Sim, e posso colocar outra questão,
muito grave e delicada. Talvez no Brasil e em outros países não tenha
tido a repercussão que merece. Mas o Judiciário, encabeçado na Colômbia
pela Corte Suprema e a Corte Constitucional, tem sido um baluarte no
sentido de manter o que resta do Estado de Direito.
A Corte Suprema emitiu ordens de detenção contra os membros do
partido de governo ligados à parapolítica, quer dizer, contra membros do
governo que realizam e estão comprometidos com práticas paramilitares.
Uma juíza que proferiu ordem de detenção contra um general envolvido no
desaparecimento de pessoas na tomada do Palácio da Justiça pelo M-19, um
movimento insurgente da década de 80 (se não me engano, essa tomada foi
em 1989 ou 1990), teve que sair do país, e hoje está protegida por
medidas cautelares proferidas pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH).
E Santos propõe hoje uma tal “reforma na justiça”, que, se explicada
em detalhe concede, na verdade, o domínio da administração da
magistratura ao Executivo, em claro detrimento da separação de funções.
Tecnicamente é isso. E politicamente, os juízes têm dito algo que para
todos parece muito claro, de modo que a Corte assim o expressou num
comunicado à opinião pública. O comunicado diz que não é possível que a
reforma na justiça, algo tão sério, seja motivo de revanchismos, de
retaliações perante o cumprimento dos deveres constitucionais.
No fundo, do que se trata é de uma tentativa de fortalecer o
Executivo em detrimento do aparelho jurisdicional, que cumpriu um papel à
altura nesta última etapa da vida nacional.
Correio da Cidadania: Santos tem condições de aprovar essa reforma?
Pietro Alarcón: Depende, logicamente, de alianças
etc. O bloco que apóia Santos tem 66 senadores. Ao todo, são 102
senadores e o Pólo Democrático Alternativo tem oito. Mas o Congresso
como um todo, incluindo a Câmara, conta com 268 parlamentares, sendo 166
deputados.
Correio da Cidadania: Mas, apesar dessa votação de 2010 que
você mencionou há pouco, houve muita abstenção e o voto não é
obrigatório...
Pietro Alarcón: Não, não é. Uma questão importante é
que, nas últimas eleições, houve um nível de abstenção superior a 55%. A
imensa maioria de abstencionistas são pessoas desinteressadas, com a
idéia de que nada vai mudar com o voto. Isso é explicável pela ciência
política, é próprio de um histórico regime político de democracia
restringida, que produz, a médio e longo prazo, uma cidadania precária
ou, como alguns opinam, de baixíssima intensidade. Isso tem
conseqüências muito negativas, começando pela renúncia das pessoas à
participação política e, depois, exigências de cumprimento dos deveres
do Estado. Uma espiral muito perigosa para a democracia.
E vale a pena anotar que também incomoda muito essa filosofia que
substitui o caráter de cidadão pelo de consumidor, que é uma das
questões mais evidentes nos últimos tempos.
Correio da Cidadania: Sobre a conjuntura social, o que poderia ser dito do atual momento do país?
Pietro Alarcón: Eu gostaria de contar coisas
positivas. Alguém poderia pensar que a Colômbia está caindo aos pedaços e
a verdade é que, se você a visita, não se percebem muitas destas
questões mais políticas. A Colômbia tem uma grande biodiversidade e
especialmente um povo generoso, muito trabalhador.
Contudo, socialmente, há um quadro bastante expressivo de piora das
condições de vida e efetivação dos direitos. Por exemplo, a partir de
2008, os indicadores estampam que a pobreza atingiu 47,8% da população, e
que a pobreza extrema é padecida por 17,8%. Se adicionarmos o
cerceamento do investimento no social, especialmente para favorecer o
investimento militar e prosseguir na guerra e no desequilíbrio na
redistribuição da renda, a questão é ainda mais grave.
A Colômbia tem em torno de 46 milhões de pessoas. Ou seja, estamos
falando de mais ou menos 29 milhões de pobres e umas 9 milhões de
pessoas na pobreza absoluta. Também, veja-se, de cada 100 trabalhadores,
58 estão no chamado emprego informal, sem carteira assinada ou
prestações laborais. Isso com um desemprego de 13%, 14%.
E existem alguns, creio, anacronismos. Por exemplo, quando hoje se
fala em pós-neoliberalismo, no meio da crise mais evidente do grande
capital, na Colômbia se privatiza a saúde e se continua com as
tentativas de privatização de todo o sistema educacional. Em outras
palavras, o modelo na Colômbia continua a ser ligado ao esquema de
Estado mínimo.
Correio da Cidadania: Em matéria de direitos humanos, como você analisa esse quadro?
Pietro Alarcón: Eu acho que neste item temos uma
grande quantidade de questões, que vou tentar resumir, ou pelo menos
apresentar de forma organizada.
E para isso teríamos que começar por uma constatação muito triste,
complexa, mas muito verdadeira. Talvez o mais determinante na história
republicana do país seja o fato de que se gerou uma camada social
incrustada na institucionalidade e objetivamente no poder através de
métodos de violência. Criou-se ao longo do tempo uma oligarquia com uma
tendência a fechar a participação democrática e que, ainda que os
direitos humanos evoluam em termos de gerações ou dimensões e o Estado
de Direito evolua e se transforme, ampliando as liberdades públicas e
consagrando os direitos sociais, sempre foi bastante refratária a tais
evoluções e mudanças. E, essencialmente, utiliza a violência como
mecanismo de contenção da pressão social por uma saída de tal situação.
O tema dos direitos humanos na Colômbia já é reiterado tanto na
Organização das Nações Unidas quanto na Corte de São José, que, como
lembrado, cuida da aplicação das normas da Convenção Americana de
Direitos Humanos, assim como é um assunto já bastante abordado por
entidades internacionais muito respeitáveis, como a Anistia
Internacional, por exemplo.
A Corte Interamericana de São José, no ano de 2010, condenou o Estado
colombiano pela morte do senador Manuel Cepeda, da organização União Patriótica,
a organização ou movimento político que surgiu na época dos primeiros
acordos de paz entre a guerrilha das FARCs e o governo. Importante
lembrar que essa organização foi vítima de um sistemático extermínio.
Eu, nos meus anos de trabalho com direitos humanos, jamais me deparei
com algo tão aberrante, o aniquilamente sistemático, primeiro seletivo e
logo praticamente em massa de membros de uma organização. O governo
anterior de Uribe se negou a aceitar essa decisão ou o fez da boca pra
fora. Não houve gesto do governo de reconhecer que ocorreu essa punição
da CIDH.
Outro assunto extremamente grave foi o dos “falsos positivos”, ainda
sendo investigados. Grupos de pessoas assassinadas pelo Exército que
supostamente eram membros das guerrilhas, logo reclamadas por seus
familiares, que ainda hoje brigam para que se reconheça que não eram
guerrilheiros, mas pessoas enganadas na busca por trabalho em várias
regiões do país e que apareceram assassinadas. Isso é muito grave, um
delito contra a humanidade.
O terceiro ponto, que atesta que na Colômbia há uma crise humanitária
de dimensões maiúsculas, é que, segundo dados do próprio Registro Único
de População Deslocada da Presidência da República, o número de
refugiados internos na Colômbia está ao redor de 3,4 milhões. Mas se
observarmos outro dado, fornecido pelo Codhes, que é a Consultoria de
Direitos Humanos, a cifra é maior, chega a 4,9 milhões de refugiados
internos. Independentemente de serem 3, 4 ou 5 milhões, a verdade é que
isso significa que na Colômbia estamos diante de uma das maiores crises
humanitárias do planeta.
As normas do Direito Internacional humanitário têm se perdido no meio
do fogo cruzado e recrudescimento do conflito armado. A Corte
Constitucional da Colômbia já apontou, numa decisão paradigmática, que,
para ser considerado refugiado interno, basta comprovar duas questões: a
migração e que esta seja forçada, isto é, por causa do conflito. O
Estado colombiano tem se colocado de forma negativa diante da decisão,
afirmando que, com esses critérios, o deslocamento virou um negócio e,
por isso, nega muitas vezes o status de refugiado interno e não entrega
recursos aos refugiados.
Correio da Cidadania: Como já reforçado aqui, é internacionalmente conhecido
que o Estado é o grande violador dos direitos humanos, mas como você vê
a questão do seqüestro? As Farcs, em vários comunicados, dizem que não
dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo
em que libertariam novos reféns.
Pietro Alarcón: Sim, as FARCs emitiram dois
comunicados do seu novo comandante, que têm criado bastante expectativa
no país e na comunidade internacional.
O seqüestro, a detenção de pessoas, e estamos falando de anos, em
alguns casos, de pessoas detidas na selva, é uma questão que não pode
ser posta de lado quando se fala de direitos humanos. Na Colômbia, a
deterioração da guerra, sua prolongação, originou métodos de extrema
crueldade.
Eu acho que, se a guerrilha, como ator político, armado, se posiciona
de frente ao país, tem que efetivar essa intenção. Ou seja, e nisso
concordo plenamente com outros colegas, ninguém em nome de um processo
revolucionário, de transformação de estruturas de um regime, pode
realizar atos degradantes, que coloquem em risco a população civil.
Tem de haver consciência disso e as FARC precisam efetivar o que foi
afirmado nos comunicados, no sentido de libertar todos os reféns que
tenham em seu poder. Eu, sinceramente, não considero que seja benéfico a
um processo de saída negociada ao conflito, de aclimatação a um cenário
de paz, prosseguir nesse caminho. Por isso temos de valorizar
positivamente a iniciativa. Acho que o debate na Colômbia, especialmente
se um dos interlocutores são as guerrilhas, é com idéias, propostas,
perspectivas que permitam oxigenar o país.
Entretanto, pelo outro lado, é preciso que exista também disposição
ao diálogo e facilitação a essa saída humanitária. Observe-se que as
FARC fizeram uma proposta concreta e adicionaram o pedido de permissão a
uma visita humanitária aos cárceres da Colômbia, com o objetivo de
constatar a situação dos presos políticos. Juan Manuel Santos responde
que na Colômbia não há presos políticos.
Ora, uma quantidade enorme de ONGs ligadas aos direitos humanos e o
próprio governo sabem que na Colômbia é claro que há presos políticos.
Pessoas detidas pela sua militância política e social. E não são duas ou
três. Dizer que não há presos políticos já começa a entorpecer o que
poderia ser uma excelente forma de começar um diálogo para a paz,
especialmente quando a Cruz Vermelha, o Escritório do Alto Comissariado
dos Direitos Humanos da ONU reconhecem a existência de pessoas detidas
com esse caráter.
Não há lógica em dizer que há conflito armado na Colômbia, mas não
reconhecer que há presos políticos como conseqüência do conflito.
O Estado tem que concentrar seus esforços em criar condições para a
paz e a libertação dos seqüestrados e, logo, atacar as causas da guerra.
A paz tem de ser uma política de Estado e estes espaços devem ser
aproveitados para afirmar tal política. O governo deve responder, por
exemplo, com uma ação efetiva para definitivamente frear o
paramilitarismo.
Correio da Cidadania: A que você se refere quando menciona atacar as causas da guerra?
Pietro Alarcón: Para isso, todos os setores armados
têm de parar com suas ações militares, que castigam a população civil e
os membros do movimento social organizado. Tem de haver um cessar fogo,
uma trégua ou algo desse tipo, porque está demonstrado, especialmente no
processo durante o governo de Andrés Pastrana, que é muito difícil que
se facilitem as negociações sob fogo cruzado. Ou seja, temos que começar
por efetivar o direito à vida e à segurança. Temos que reduzir ao
mínimo a violência como mecanismo de solução de conflitos. Que se
desmontem, de vez e por fim, os grupos paramilitares que tiram as vidas
de sindicalistas.
Não apontei antes, mas, na Colômbia, no ano de 2011, foram
assassinados 29 sindicalistas, segundo as estatísticas das Centrais
Unitárias de Trabalhadores da Colômbia. Oras, mais de 60%, diz a
entidade, dos sindicalistas assassinados no mundo são colombianos. Isso é
um escândalo, algo sem nome.
Continuemos reconstruindo as relações no campo, destinando recursos
para a infra-estrutura e a produção no campo, tendo um plano concreto de
ações de âmbito nacional; continuemos - mas, paralelamente, o Estado
também - comprometidos com a garantia e efetivação de liberdades
elementares como a de divergir, de manifestação do pensamento, o direito
à conformação dos partidos, com independência do seu posicionamento
perante o Estado, o que quer dizer liberdade de criticar, de aspirar, de
sonhar com algo diferente. Promovamos reformas sociais significativas.
Eu penso que privatizar a saúde do jeito que foi feito é um crime e um
atentado contra o direito à vida. Entre vida e saúde há uma
interligação, uma conexão própria pelo fato de ser um direito
fundamental. Violenta-se a proteção da confiança, a proibição de
retrocesso, com o plano de privatização também da educação.
A Colômbia, como qualquer Estado que cuide do seu processo
civilizatório, tem de pensar nessa geração que está a se formar no país.
Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre as FARCs
atualmente? Qual o significado político e social de sua atuação nos dias
de hoje?
Pietro Alarcón: Isso tem várias arestas.
Sociologicamente, a luta armada na Colômbia é um fator histórico e
político, faz parte da realidade e atravessa vários períodos. A leitura
científica do processo permite distinguir dois grandes períodos. O
primeiro podemos chamar de resistência e defesa camponesa; o segundo, de
combate militar pelas transformações econômico-sociais.
Agora há uma discussão importante, no seio dos mais diversos setores,
que não é apenas uma questão teórica ou acadêmica. O regime político
determinou a origem do conflito e esse movimento armado se desenvolveu
desde a década dos 50 como uma forma de luta, mas sem que existisse o
que os clássicos da política denominam situação revolucionária. Ou
seja, as guerrilhas praticam uma forma de luta, mas não é
necessariamente a ação armada uma via para a transformação social no
contexto atual da Colômbia. E isso é o que está em debate hoje no país.
Eu acho que temos que conduzir a insurgência à paz, e também temos de
trazer o Estado à paz. Isso somente será possível com um movimento
organizado a partir do social, ganhando consciência, unidade
programática, planejamento, para atingir uma nova realidade, com
democracia e justiça social, com tolerância, com pleno respeito às
liberdades públicas e aos direitos sociais. Daí, que se coloque a
questão de um diálogo de paz, no qual os setores armados têm de fazer
concessões mútuas.
O Estado não consegue vencer a insurgência, apesar dos golpes que
esta sofreu. A “segurança democrática” de Uribe, de acabar com as
guerrilhas, não teve o sucesso que esperava o governo. Tampouco as
guerrilhas têm condições de avançar a um novo nível de luta que elas
colocavam como algo possível ou real.
Nesse impasse, a Colômbia não pode continuar se sangrando. Não
podemos abandonar a luta pela paz no meu país. E Santos tem que
reconhecer que as FARC são um ator político, coisa que se recusa a
fazer. As FARC têm de cumprir seus comunicados e o Estado, se
comprometer com mudanças sociais e econômicas. A Colômbia merece essa
chance.
Correio da Cidadania: Nessa conjuntura que você expõe, quanto
à atual condição geopolítica da Colômbia, como encara a inserção do
país no continente latino-americano, em especial, no que diz respeito ao
entrosamento com os demais países da América Latina, vis-à-vis o seu
relacionamento com os EUA?
Pietro Alarcón: A Colômbia tem uma posição
geográfica que a torna altamente importante para os projetos de unidade,
de integração, de estabilização da região. Mas precisamente por isso é
também um Estado submetido a uma pressão histórica para que seu
território seja utilizado com objetivos de projeção político-militar.
Não podemos esquecer que a separação do Panamá, em 1903, foi um golpe
dos Estados Unidos com o objetivo de posteriormente financiar a
construção do Canal do Panamá.
Agora, no atual contexto, no qual conseguimos visualizar projetos de
unidade em curso, como a Unasul, o Mercosul, existe, me parece, uma
rejeição às intervenções militares e às saídas de força.
Simultaneamente, uma reclamação mais incisiva por um comércio
multilateral, em tempos em que o sistema econômico internacional
evidencia crises cada vez mais freqüentes. A tática dos Estados Unidos,
dos TLCs, constitui uma afirmação da sua condição de hegemonia e não
permite uma possibilidade de negociação com novas economias com as quais
seria possível, pelo menos conjunturalmente, obter vantagens
comparativas.
Sobre essas duas bases, a militar e a econômica, afirma-se a
estrutura hegemônica de poder, que menciona Pinheiro Guimarães em seus 500 Anos de Periferia.
Os Estados da América Latina tem que puxar a Colômbia para a paz, para a
condição que lhe permita a manutenção do seu território como cenário de
paz, interna e externa.
Esse entrosamento ao qual você se refere é o entrosamento que tem de
ser conquistado, mas para o qual a política externa colombiana não
demonstra afinidade. Observa-se que a Colômbia votou nas Nações Unidas
contra a consolidação do Estado Palestino, votou a favor da agressão à
Líbia e pode votar, e é previsível, a favor de uma intervenção militar
na Síria. Esse não pode ser o caminho para a paz e a segurança da ordem
internacional.
A Colômbia, com TLC assinado, incrementa a condição de hegemonia
econômica, quando do que se trata é de eliminar as dependências para
poder caminhar economicamente sobre bases sólidas, autonomia monetária,
de exploração de recursos naturais com eficiência e equilíbrio, em
termos estratégicos.
Aprovando o TLC com Estados Unidos, a Colômbia não somente ocasiona
um problema para os médios e pequenos produtores do país, que vêem seus
produtos sendo jogados a uma concorrência desleal, como também restringe
a possibilidade de um comércio subcontinental em condições mais
favoráveis aos projetos de crescimento com redistribuição de riqueza.
Outro aspecto é o financeiro. Se a América Latina resiste a ser vítima da ciranda financeira do binômio dólar-euro,
enquanto a Colômbia se atrela em termos financeiros às condições desse
binômio, cria-se, obviamente, uma dificuldade para a possibilidade de
negociar empréstimos com outros Estados, como os asiáticos, por exemplo.
Veja-se que Argentina e Equador, como lembrava um autor dos Estados
Unidos numa palestra recente, que não têm acesso a esse binômio,
encontraram um respiro em empréstimos com a China. A China emprestou, em
2010, mais dinheiro para a América Latina que o FMI e o BID juntos.
Isso é sintomático.
O que pretendo dizer é que existem chances de unidade, a comunidade
internacional tem que gerar uma diplomacia ativa e propositiva com
relação à Colômbia, colocando o tema da paz, da unidade e da quebra de
uma histórica dependência econômica com relação aos Estados dominantes
dessa tradicional arquitetura de poder da sociedade internacional.
Correio da Cidadania: Em função dos fatos mais recentes, como
encara a cobertura que a Colômbia tem recebido da mídia internamente ao
país, no Brasil e também em outros países da América Latina?
Pietro Alarcón: A informação, e não somente sobre a
Colômbia, mas, em geral, sobre os processos do restante da América
Latina, no Brasil tradicionalmente tem sido muito precária.
Por exemplo, no caso da Colômbia, pouco se aborda o tema da crise
humanitária, do número significativo de refugiados colombianos no mundo.
Tampouco há maior cobertura sobre o movimento político ou social.
Dá-se muita ênfase ao tema FARC, que é uma parte da situação, é um ator
armado, determinante, é claro, mas o movimento social colombiano é muito
mais vasto.
O jornal colombiano El Tiempo é propriedade da família do presidente e, logicamente, tem um peso enorme na informação difundida no conjunto do continente.
Correio da Cidadania: E a população colombiana, como percebe hoje o país em que vive?
Pietro Alarcón: Eu responderia à pergunta em várias
dimensões. A primeira é que, depois de uma fase na qual parecia perdida a
capacidade de assombro do povo colombiano, ou seja, de reagir diante da
cotidianidade da guerra, as pessoas ganharam em sentido crítico, tanto
diante dos atores armados, quanto na compreensão de seu papel no
contexto. Logicamente, esse tipo de análise tem de considerar elementos
como a maneira que os meios de comunicação retratam a situação do país.
Existe uma camada de colombianos que se convenceu de que a saída militar
era uma alternativa, com fundamento nas bases militares e em um
espetáculo midiático de muita efetividade.
Existe outra camada beneficiada por programas assistenciais, que no
começo dizia ter votado nos candidatos da oficialidade e que serviram de
apoio social ao chamado uribismo - a corrente política de
maior ligação aos interesses externos. Nessa corrente está o próprio
Juan Manuel Santos que, como se sabe, foi ministro de Defesa de Uribe.
Contudo, amplos segmentos da opinião pública sabem que a guerra tem
somente um horizonte: mais guerra. Esses segmentos constituem a base
social da esperança na paz na Colômbia, por ser um segmento atuante, que
opina, se mobiliza.
O movimento social colombiano é de uma diversidade rara no mundo,
embora exista um problema de ausência de garantias fundamentais para a
ação política. Por exemplo, aponto um dado que também considero
significativo. Na Colômbia, hoje, confluem vários esforços, além do Pólo
Democrático Alternativo, que é a primeira força de oposição. Há uma
experiência muito enriquecedora de movimentos indígenas, como a Minga. Outra experiência é a dos Colombianos e Colombianas Pela Paz.
Existe um processo recente que nasce, sob o título de Marcha Patriótica. A
idéia é que todos estes movimentos possam chegar a uma agenda comum, de
convergência para uma ampla mobilização pela paz democrática e a
justiça social, valores e fins de uma ordem justa.
Correio da Cidadania: O que pensa do fato de a Colômbia não ter convidado Cuba para a Cúpula das Américas, a reunião de abril da OEA?
Pietro Alarcón: Para mim o fato não era esperado,
pelo aspecto tático em matéria diplomática. Faço uma análise desde a
perspectiva do próprio governo colombiano. Não faz ou não fazia parte da
filosofia do governo de Santos ter Cuba longe. O de Santos é um governo
que faz questão de se mostrar habilidoso em termos de condução
diplomática, especialmente diante de processos políticos diferenciados. É
um gesto deselegante, além de um retrocesso para a construção de laços
de diálogo e mais um retrocesso da política externa do governo
colombiano.
No plano internacional, a Colômbia fica muito mal porque, enquanto a
ONU, todos os anos, se pronuncia contra o bloqueio e somente há dois
votos no seu seio que ainda o justificam, o governo de Santos deixa o
país na contramão da história, que já não suporta mais esse tipo de
atitudes no gerenciamento das relações internacionais.
Qualquer analista sério fica com a percepção de que a Colômbia é um
Estado associado aos Estados Unidos, em termos políticos, jurídicos e
diplomáticos. Logicamente, como estudioso do Direito e das relações
internacionais, devemos outorgar a isso um significado no cenário de
contradições do continente, das pressões e das ingerências, da
fragmentação e da cooptação como táticas da potência que hoje tem uma
duvidosa hegemonia.
Mas, como cidadão e como pessoa, acho uma atitude, no mínimo, ridícula para esta época, com todo respeito.
Correio da Cidadania: Quais os países da América Latina você
enxerga como posicionados, atualmente, de forma mais progressista no
espectro político?
Pietro Alarcón: Eu entendo que temos a obrigação de
ser muito objetivos quanto às mudanças do sistema internacional, da
estrutura hegemônica de poder, das mutações aceleradas do sistema
econômico, do esgotamento de fórmulas de reprodução do capital, mas
também de como este se recompõe, tanto econômica como militarmente.
Nesse cenário, considero de extremo valor a posição que possa ter o
Brasil como baluarte de um debate sobre o conteúdo concreto da unidade.
Trata-se de um país de diplomacia diferenciada, analítica e com maior
alcance, do ponto de vista histórico e geral, e do meu ponto de vista,
que as diplomacias de outros Estados do continente.
Nesse campo eu acho que tem de prosseguir o debate que conduza, na
prática, à priorização de alianças estratégicas no continente, com
fundamento no papel que cada Estado pode desempenhar a partir de um
compromisso com a transformação das estruturas econômicas e com uma
dimensão da democracia muito mais avançada, que supere a mera
participação no processo eleitoral e fortaleça a participação cidadã.
Assim, as possibilidades que temos de construir cidadania social, de
efetivar direitos, depende da vontade de gerar mudanças com a
participação popular. Isso é o que define o avanço ou retrocesso dos
governos.
Há algo que gostaria de apontar. Observa-se como na América Latina há
um fenômeno bem interessante, que tem sido analisado muito mais por
juristas europeus que latino-americanos, o chamado Novo
Constitucionalismo. Há novas constituições em países como Venezuela,
Equador e Bolívia. Novas regras do jogo para os diversos atores.
Eu sou dos que acreditam que tais documentos contribuem, e muito,
porque são ferramentas para a ação política, social, ferramentas de
inclusão, de participação. Na Bolívia a Constituição tem um papel
fundamental para o reconhecimento da pluralidade étnica.
Eu não estou expondo que novas Constituições resolvam os problemas. O
que expresso é que todos estes movimentos e processos são desconhecidos
pela comunidade jurídica e política e que tais documentos são ponto de
confluência de um poder constituinte renovado e ponto de início de novos
processos. Isso ainda não tem sido analisado suficientemente.
Ainda temos de nos aproximar muito mais para poder gerar espaços de
coordenação de atividades em vários campos do conhecimento, da ciência,
da cultura, da economia e da política, e sempre em perspectiva
transformadora, questionando e atacando as desigualdades, a concentração
do poder econômico, a precariedade da cidadania e da democracia.
Correio da Cidadania: E a Venezuela? A Venezuela foi o país
que levou adiante o modelo político mais alternativo e combativo na
região, ainda que prenhe de polêmicas, limites e contradições. Qual o
futuro desse país, não só no que diz respeito às possibilidades internas
de sustentação política da alternativa bolivariana, mas quanto às
perspectivas de prosseguir como modelo de inspiração para as demais
nações latino-americanas?
Pietro Alarcón: Acredito e sempre fiz questão de
destacar que é um processo singular. É o processo da Venezuela, que tem
características precisas, especialmente porque nesse país houve, e
esperamos que isso se mantenha, uma correlação de forças favorável aos
trabalhadores, que gerou a contundente vitória eleitoral de Hugo Chávez
no seu primeiro mandato. Essa peculiaridade, com o esgotamento das
forças que tradicionalmente ocupavam o Estado, não tem se repetido em
outros processos.
Manter essa correlação de forças implica aprofundar a democracia
participativa e empreender um plano de efetivação de direitos sociais,
inédito na Venezuela e acredito que na América do Sul em geral.
Provavelmente, há muitos erros, como em todo processo humano. Um
projeto político transformador não está isento de erros, e ele se
fortalece quando autocriticamente se corrige. Eu vejo, por exemplo, à
distância, a necessidade de um processo mais afirmativo da democracia,
mais inspirado na base popular, mais apoiado nos setores populares.
Reitero que não falo de eleições, mas de um processo no qual o povo
assuma um papel protagônico. Um processo além da questão eleitoral.
Agora, deve se reafirmar, e acho que qualquer análise apontaria tal
direção, que o processo se mantém como patriótico, progressista,
anti-monopolista e de afirmação da sua soberania. Isso é, por enquanto, o
essencial.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que significa lutar pelos direitos humanos na Colômbia de hoje?
Pietro Alarcón: Na Colômbia, e acho que em qualquer
parte do planeta, lutar pelos direitos humanos é dar sentido à vida, é
dar testemunho de que estamos vivos. De outro jeito, as coisas deixam de
fazer sentido. É denunciar a agressão, a discriminação, mas é também
ser propositivo e profundamente ético e responsável no nosso compromisso
como seres humanos.
Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 10 de abril de 2012
‘Na Colômbia, estamos diante de uma das maiores crises humanitárias do planeta’
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domingo, 8 de abril de 2012
Como a Argentina busca a verdade e produz justiça
Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal com uma história de busca da verdade, construção da justiça e reconstrução da memória. Em entrevista à Carta Maior, Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outors que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe, da repressão e da prática de crimes contra a humanidade.
Marco Aurélio Weissheimer no CARTA MAIOR
Porto Alegre - A Argentina é, sem
dúvida alguma, o país que mais avançou na América Latina na tarefa de
julgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou
o continente. A desmoralização dos militares argentinos após a Guerra
das Malvinas contribuiu para isso, é verdade, mas essa não é a parte
mais importante dessa história de busca da verdade, construção da
justiça e reconstrução da memória. Neste processo, a Argentina inovou e
segue inovando em matéria de direito civil, penal e constitucional.
Pactos e tratados internacionais de direitos humanos, subscritos pelo
país, foram incorporados à Constituição. Além disso, o Congresso
argentino tem legislado em matéria civil, introduzindo a figura da
desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Agora,
prepara-se para fazer o mesmo com a figura do genocídio.
Em vários aspectos, a Argentina está a anos-luz do que ocorre no Brasil nesta matéria. Em entrevista à Carta Maior, o deputado nacional Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outros que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe e da repressão. Na entrevista ele cita alguns exemplos:
“(...) A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais”.
Carlotto esteve em Porto Alegre participando do 5º Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça. Conhecer a experiência argentina é indispensável para transformar essas palavras em eixos estruturantes de políticas públicas de defesa dos direitos humanos e da democracia. Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal.
Carta Maior: O senhor veio a Porto Alegre para participar de um debate sobre o conteúdo e as consequências das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relacionadas a crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares do Cone Sul. A Argentina é o país da América Latina que mais avançou neste terreno. Qual a sua avaliação sobre o modo como as sentenças da Corte Americana vem sendo tratadas na região?
Remo Carlotto: A Argentina tem uma característica particular com respeito ao direito interno de aplicação dos pactos e tratados internacionais de direitos humanos subscritos por nosso país. A partir da reforma constitucional de 1994, a Argentina incorporou no artigo 75, inciso 22, da Constituição, todos os pactos e tratados de direitos humanos subscritos até esse momento. Isso significa que a hierarquia que esses pactos e tratados tem no direito interno equivale à ordem constitucional, o que provoca um reordenamento da interpretação jurídica em nosso país, afetando as leis em sua totalidade, não só aquelas que têm a ver especificamente com a aplicação de uma legislação vinculada a um direito em particular.
A partir desse momento, toda legislação do país deve contemplar os pactos e tratados internacionais em matéria de direitos humanos assinados e reconhecidos pelo país. E os pactos e tratados posteriores a 1994 têm um sistema de incorporação que é similar aquele adotado pelos países da região e que envolve a assinatura do tratado e sua ratificação pelo parlamento nacional. Com uma maioria especial (dois terços da composição de ambas as câmaras, de deputados e de senadores), esses pactos podem ser incorporados à ordem constitucional.
Neste sentido, o direito internacional está muito presente na discussão legislativa na Argentina e também na aplicação e na interpretação das leis, o que tem favorecido um tema central neste debate do qual estamos participando , a saber, que não podem existir leis de anistia e de perdão que impeçam o julgamento de crimes contra a humanidade e, no caso da desaparição forçada de pessoas, a imprescritibilidade desses crimes.
Carta Maior: Como é esse debate no interior do Legislativo?
RC: Nós temos acompanhado no Legislativo os atos de reparação por parte do Estado argentino. Além disso, temos legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Ou seja, na Argentina pode-se julgar e condenar alguém pelo crime de desaparição forçada de pessoas. Hoje estamos debatendo a incorporação da figura do genocídio em nosso código e também temos a tarefa de ratificar as reparações que devem ser feitas pelo Estado para as vítimas da ditadura. Não se trata apenas da reparação de caráter econômico, mas também o reconhecimento, pelo Estado, da prática de crimes. Isso significa uma vinculação de ordem jurídica, mas também uma interpretação e um olhar interdisciplinar sobre as formas de reparação das vítimas, familiares e sobreviventes, por parte do Estado de uma maneira integral. Legislamos ainda em matéria de construção da memória como uma ação pública. Ou seja, o leque de opções e conceitos que vem sendo adotados pelo Estado argentino é amplo.
Cabe observar que tudo isso depende de decisões de caráter estritamente político. Um exemplo é a implementação de um processo, em nível parlamentar, para a reversão das leis de impunidade. Tivemos duas delas: a Lei de Obediência Devida, que determinava que os membros das forças de segurança e das forças armadas tinham cumprido ordens e que só as cúpulas eram responsáveis; e a Lei do Ponto Final, que estabelecia um término para a apresentação de ações judiciais relacionadas a crimes da ditadura. Essas duas leis obstruíam o acesso á Justiça. Então, o caminho que se seguiu na ordem parlamentar foi propor a anulação dessas leis, declarando-as absolutamente nulas por contrariarem o direito internacional reconhecido pela Argentina. Isso ocorreu não somente pela reforma constitucional de 1994, mas também pela interpretação do direito internacional que afirma que nenhum tipo de crime ou ato genocida pode ser anistiado ou declarado impune. Posteriormente houve uma ratificação por parte da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade dessas leis.
Avançamos também em outra direção. Tivemos participantes do terrorismo de Estado que foram eleitos parlamentares e o Parlamento acabou impedindo que tomassem posse, declarando a incompatibilidade moral de alguém que participou de tortura e crimes aberrantes ocupar um cargo público de representação popular. Assim, o âmbito parlamentar tem um duplo papel neste processo: um papel de caráter legislativo para adequar toda a legislação nacional aos pactos e tratados internacionais, e um papel eminentemente político que deve acompanhar os processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes da última ditadura civil-militar e monitorar o cumprimento desses pactos e acordos. Os países, muitas vezes, subscrevem pactos e tratados internacionais e depois não os cumprem. Por isso, é fundamental desenvolver ferramentas de monitoramento interno.
Carta Maior: Há algum outro país da região que tenha feito essa incorporação constitucional de tratados e pactos internacionais?
RC: As reformas constitucionais realizadas por Equador, Bolívia e Venezuela caminham nesta direção. Não é exatamente a mesma coisa que foi feita na Argentina, mas tomam o direito universal e o sistema interamericano de direitos humanos e o incorporam, artigo por artigo, dentro da própria estrutura da Constituição. Mais do que isso, essas Constituições, no marco da interpretação do Constitucionalismo social latino-americano, apresentam profundos avanços em matéria de garantia de direitos humanos. Esses países seguem um caminho sumamente auspicioso por que avançam também sobre temas específicos e particularidades de sua realidade social e política.
Há um tema de fundo por trás desses avanços. Cada vez que falamos de crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares estamos falando da usurpação dos recursos econômicos do Estado por parte de grupos econômicos concentrados em nossos países. Os militares não decidiram, sozinhos, levar adiante ações criminais, só pelo prazer de praticá-las. Eles fizeram isso no marco da implementação de planos econômicos muito direcionados, sob a coordenação dos Estados Unidos e apoiados em uma doutrina de segurança nacional. Essa espoliação das economias de nossos países foi sustentada pela ação repressiva e persecutória por parte das ditaduras.
Carta Maior: Em que consiste precisamente o ponto de vista do Constitucionalismo Social para esses temas?
RC: A prioridade dada à busca da garantia de direitos tem a ver também com a forma pela qual a riqueza é distribuída em nosso país e a forma pela qual se tem acesso à totalidade de direitos. Esse é o ponto de vista do Constitucionalismo social, que considera que os direitos humanos não podem ser dissociados um do outro. A Argentina é um dos cinco países que ratificou o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse pacto está baseado em quatro pilares – acesso à habitação, à educação, à saúde e ao trabalho -, a partir dos quais se pode demandar judicialmente os Estados para que cumpram e garantam esses direitos. Essa é a concepção que temos sobre a distribuição da riqueza em nosso país.
Então, respondendo sua pergunta, o Constitucionalismo social que está sendo implementado nestes países latino-americanos está diretamente relacionado com um processo distributivo de garantia essencial de direitos que é, em última instância, o que articula a garantia da totalidade de direitos em nossa sociedade.
Carta Maior: Na Argentina, os militares saíram do poder muito desmoralizados e enfraquecidos politicamente, tanto pelo que aconteceu na Guerra das Malvinas, quanto pela crise econômica na qual acabaram mergulhando o país. Aqui no Brasil, ao contrário, os militares saíram relativamente ilesos e hoje ainda tem uma força política grande o suficiente para resistir a uma iniciativa como a Comissão da Verdade. Na sua avaliação, a Corte Interamericana da OEA tornou-se um caminho para superar essa barreira imposta pelos militares e seus aliados civis no Brasil?
RC: Creio que os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são processos inexoráveis para nossas sociedades. Não há como impedir que a sociedade saiba a verdade, que saiba o que aconteceu com as pessoas que estão desaparecidas, quem foram os responsáveis. Sem nenhuma dúvida, os instrumentos internacionais, como são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm um papel sumamente importante. Quando ratificamos um pacto ou um tratado internacional, estamos assumindo a responsabilidade perante estes organismos de seguir, por exemplo, as recomendações das sentenças que são proferidas por eles. Para isso, obviamente, é necessário o conhecimento e o esclarecimento do conjunto da população a respeito de seus direitos. Quando falamos de reparação por parte do Estado, estamos falando que a reparação não é só para as vítimas, mas também para o conjunto da sociedade. E isso é assim para que se possa construir uma sociedade com maior qualidade democrática.
A Argentina teve não somente a intervenção da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também a aplicação da justiça universal através das ações do juiz Baltasar Garzon, na Espanha. Esses crimes que queremos esclarecer devem ser considerados como crimes contra a humanidade e, assim, devem ser perseguidos pela totalidade da comunidade internacional. Isso é o que aconteceu na Espanha, o que condicionou fortemente o próprio funcionamento do poder Judiciário em nosso país. O Judiciário avaliou que os crimes que haviam sido cometidos na Argentina deviam ser julgados na Argentina e não em outra jurisdição. Esse elemento também foi fundamental para romper o cerco de impunidade.
É disso que viemos tratar nesse encontro em Porto Alegre que reúne os países da região, parlamentares, procuradores, organizações de direitos humanos e investigadores, debatendo como podemos nos ajudar para romper esse cerco de impunidade em cada um de nossos países. Isso para nós é uma obrigação.
A Argentina é, claramente, o país com o processo mais avançado nesta direção. Queremos contar nossos acertos e fracassos e transmitir as formas pelas quais podemos colaborar para obter essas demandas que consideramos essenciais à democracia. A nossa presidenta da República disse que se os crimes de lesa humanidade não fossem resolvidos na Argentina, o país seria uma sociedade pré-democrática. Na Argentina foi possível reverter um processo de impunidade, no marco do exercício estrito da justiça. Não houve nenhum ato de vingança pessoal nem se fez justiça pelas próprias mãos. Esperou-se pacientemente que a Justiça resolvesse os casos. E quando houve absolvição de alguns responsáveis por crimes, respeitou-se a decisão da Justiça. Esse foi um ato de profunda maturidade do povo argentino.
Os nossos estados devem implementar não somente uma política de memória em relação aos crimes, mas sim para formar e capacitar nossos agentes públicos, educar nossas crianças e adolescentes para a construção do verdadeiro “nunca mais”, que é saber que devemos respeitar irrestritamente o funcionamento democrático em cada um de nossos países e que devemos garantir integralmente os nossos direitos humanos.
Eu tenho um olhar otimista sobre esse quadro. A Argentina começou esse processo de justiça a partir da busca pela verdade. O caminho foi a busca da verdade. Isso desencadeou o resto das ações que acabaram dando início aos julgamentos dos genocidas. Tenho uma visão esperançosa sobre o debate que está ocorrendo no Brasil, no Uruguai, no Paraguai e também no Chile. Parece-me que temos um olhar comum, uma experiência compartilhada comum, consequências da ação do terrorismo de Estado muito similares e, em função disso, devemos ser atores que articulem a reparação que os estados devem fazer. O que não podemos é seguir deixando que as vítimas sejam quem toque isso adiante. Os estados devem assumir a responsabilidade por esse processo.
Carta Maior: O senhor observou que os militares argentinos, assim como ocorreu no Brasil e em outros países sulamericanos, não deram o golpe e cometeram todos os crimes que cometeram simplesmente por que foram movidos por um desejo sádico. Eles tinham uma conexão com setores econômicos civis da sociedade. Há um movimento na Argentina para responsabilizar os representantes de empresas e de setores sociais que apoiaram e foram cúmplices do golpe e de ditadura?
RC: Sem dúvida alguma. Nós dizemos que a ditadura na Argentina foi uma ditadura civil-militar. Isso significa que poderosos grupos econômicos, que denominamos de oligarquia argentina, foram enormemente beneficiados, fundamentalmente a partir da proposta de endividamento feita pelos Estados Unidos durante as décadas de 70 e 80. Neste período, a dívida argentina passou de 7 bilhões de dólares para 40 bilhões de dólares, sem que nenhum investimento fosse feito no país. Foram transferências diretas de recursos aos grupos econômicos mais concentrados. O ministro da Economia da ditadura civil-militar foi Martínez de Hoz, um integrante das direções das empresas mais importantes de nosso país. Mas não foi somente isso que aconteceu. Esses grupos também foram beneficiários econômicos a partir da aplicação do terrorismo de Estado. A implementação do seu programa econômico precisava que as organizações sindicais e sociais fossem desmanteladas.
Além disso, eles foram partícipes diretos da prática de crimes contra a humanidade. Temos o exemplo da empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, que é a empresa Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais. Ou seja, temos uma enorme quantidade de ações judiciais onde há o envolvimento de empresários em crimes de lesa humanidade.
Nós não acreditamos que os militares atuaram de uma maneira perversa e diabólica para levar adiante uma ação sem sentido. Eles fizeram o que fizeram para gerar terror na população e poder implementar esse processo de transferência de recursos econômicos de um país periférico para uma potência como os Estados Unidos e também para realizar uma transferência econômica interna, dos setores populares para os setores concentrados da economia, o que provocou a devastação do aparato produtivo do país.
Carta Maior: Há aí, sem dúvida, um outro traço em comum às ditaduras que tivemos em nossos países, a participação de grupos empresariais, entre eles grandes grupos de comunicação. Essa é uma outra área onde está ocorrendo uma profunda mudança na Argentina a partir da aprovação da Lei de Medios. Qual o estágio atual desse debate?
RC: O que está acontecendo na Argentina é que se questionou a hegemonia comunicacional do grupo Clarín, que possui não somente o diário de maior circulação no país, mas também cerca de 70% do serviço de televisão a cabo (em algumas regiões chega a 100%) e mais de 270 emissoras de rádio espalhadas por praticamente todo o território argentino. A situação da comunicação do país foi tema de debate e se sancionou a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que democratiza o acesso à informação, a possibilidade de informar e de ser informado. Essa lei foi aprovada dentro do estrito marco dos direitos humanos, garantindo a democratização da palavra, o conhecimento das realidades locais e regionais. Isso significou, sem dúvida, mexer com o que significa hoje o epicentro das novas estruturas de poder.
Antes se utilizava as estruturas militares para debilitar um governo; hoje se utilizam os meios de comunicação audiovisuais concentrados, que buscam condicionar os governos a partir da difusão e da tergiversação da informação. Isso ocorre em muitos países latino-americanos. Há, praticamente, uma matriz comum. Na Venezuela, essa estrutura midiática provocou um golpe de Estado. Foram fatos extremamente graves.
Para nós, leis de comunicação que garantam a diversidade e a multiplicidade de vozes é a base essencial de onde devemos partir para discutir o que significa a democratização da comunicação. Isso significa também expor esses grupos midiáticos concentrados que manejam a informação pública segundo seus interesses particulares. Eles foram sócios diretos das ditaduras e hoje são sócios de grupos econômicos concentrados para gerar instabilidade em nosso país.
Nós estamos discutindo muito seriamente a responsabilidade que cabe aos meios de comunicação, por exemplo, sobre a tergiversação de informações econômicas para gerar condições de instabilidade econômica em nosso país.
Acreditamos que isso tem a ver com uma responsabilidade de caráter penal, pois não se pode mentir, tergiversar, para provocar desestabilização ou buscar vantagens econômicas. Esse é um debate muito rico. A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual possibilita que organizações sociais, sindicatos, universidades e os próprios governos estaduais e municipais tenham canais de rádio e TV. Isso abre o panorama para que se tenha a multiplicidade de vozes necessária, reproduzindo nos meios de comunicação a diversidade da realidade que vivemos e não o olhar de uma empresa que tenta condicionar nosso olhar sobre a realidade que vivemos.
Em vários aspectos, a Argentina está a anos-luz do que ocorre no Brasil nesta matéria. Em entrevista à Carta Maior, o deputado nacional Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outros que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe e da repressão. Na entrevista ele cita alguns exemplos:
“(...) A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais”.
Carlotto esteve em Porto Alegre participando do 5º Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça. Conhecer a experiência argentina é indispensável para transformar essas palavras em eixos estruturantes de políticas públicas de defesa dos direitos humanos e da democracia. Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal.
Carta Maior: O senhor veio a Porto Alegre para participar de um debate sobre o conteúdo e as consequências das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relacionadas a crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares do Cone Sul. A Argentina é o país da América Latina que mais avançou neste terreno. Qual a sua avaliação sobre o modo como as sentenças da Corte Americana vem sendo tratadas na região?
Remo Carlotto: A Argentina tem uma característica particular com respeito ao direito interno de aplicação dos pactos e tratados internacionais de direitos humanos subscritos por nosso país. A partir da reforma constitucional de 1994, a Argentina incorporou no artigo 75, inciso 22, da Constituição, todos os pactos e tratados de direitos humanos subscritos até esse momento. Isso significa que a hierarquia que esses pactos e tratados tem no direito interno equivale à ordem constitucional, o que provoca um reordenamento da interpretação jurídica em nosso país, afetando as leis em sua totalidade, não só aquelas que têm a ver especificamente com a aplicação de uma legislação vinculada a um direito em particular.
A partir desse momento, toda legislação do país deve contemplar os pactos e tratados internacionais em matéria de direitos humanos assinados e reconhecidos pelo país. E os pactos e tratados posteriores a 1994 têm um sistema de incorporação que é similar aquele adotado pelos países da região e que envolve a assinatura do tratado e sua ratificação pelo parlamento nacional. Com uma maioria especial (dois terços da composição de ambas as câmaras, de deputados e de senadores), esses pactos podem ser incorporados à ordem constitucional.
Neste sentido, o direito internacional está muito presente na discussão legislativa na Argentina e também na aplicação e na interpretação das leis, o que tem favorecido um tema central neste debate do qual estamos participando , a saber, que não podem existir leis de anistia e de perdão que impeçam o julgamento de crimes contra a humanidade e, no caso da desaparição forçada de pessoas, a imprescritibilidade desses crimes.
Carta Maior: Como é esse debate no interior do Legislativo?
RC: Nós temos acompanhado no Legislativo os atos de reparação por parte do Estado argentino. Além disso, temos legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Ou seja, na Argentina pode-se julgar e condenar alguém pelo crime de desaparição forçada de pessoas. Hoje estamos debatendo a incorporação da figura do genocídio em nosso código e também temos a tarefa de ratificar as reparações que devem ser feitas pelo Estado para as vítimas da ditadura. Não se trata apenas da reparação de caráter econômico, mas também o reconhecimento, pelo Estado, da prática de crimes. Isso significa uma vinculação de ordem jurídica, mas também uma interpretação e um olhar interdisciplinar sobre as formas de reparação das vítimas, familiares e sobreviventes, por parte do Estado de uma maneira integral. Legislamos ainda em matéria de construção da memória como uma ação pública. Ou seja, o leque de opções e conceitos que vem sendo adotados pelo Estado argentino é amplo.
Cabe observar que tudo isso depende de decisões de caráter estritamente político. Um exemplo é a implementação de um processo, em nível parlamentar, para a reversão das leis de impunidade. Tivemos duas delas: a Lei de Obediência Devida, que determinava que os membros das forças de segurança e das forças armadas tinham cumprido ordens e que só as cúpulas eram responsáveis; e a Lei do Ponto Final, que estabelecia um término para a apresentação de ações judiciais relacionadas a crimes da ditadura. Essas duas leis obstruíam o acesso á Justiça. Então, o caminho que se seguiu na ordem parlamentar foi propor a anulação dessas leis, declarando-as absolutamente nulas por contrariarem o direito internacional reconhecido pela Argentina. Isso ocorreu não somente pela reforma constitucional de 1994, mas também pela interpretação do direito internacional que afirma que nenhum tipo de crime ou ato genocida pode ser anistiado ou declarado impune. Posteriormente houve uma ratificação por parte da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade dessas leis.
Avançamos também em outra direção. Tivemos participantes do terrorismo de Estado que foram eleitos parlamentares e o Parlamento acabou impedindo que tomassem posse, declarando a incompatibilidade moral de alguém que participou de tortura e crimes aberrantes ocupar um cargo público de representação popular. Assim, o âmbito parlamentar tem um duplo papel neste processo: um papel de caráter legislativo para adequar toda a legislação nacional aos pactos e tratados internacionais, e um papel eminentemente político que deve acompanhar os processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes da última ditadura civil-militar e monitorar o cumprimento desses pactos e acordos. Os países, muitas vezes, subscrevem pactos e tratados internacionais e depois não os cumprem. Por isso, é fundamental desenvolver ferramentas de monitoramento interno.
Carta Maior: Há algum outro país da região que tenha feito essa incorporação constitucional de tratados e pactos internacionais?
RC: As reformas constitucionais realizadas por Equador, Bolívia e Venezuela caminham nesta direção. Não é exatamente a mesma coisa que foi feita na Argentina, mas tomam o direito universal e o sistema interamericano de direitos humanos e o incorporam, artigo por artigo, dentro da própria estrutura da Constituição. Mais do que isso, essas Constituições, no marco da interpretação do Constitucionalismo social latino-americano, apresentam profundos avanços em matéria de garantia de direitos humanos. Esses países seguem um caminho sumamente auspicioso por que avançam também sobre temas específicos e particularidades de sua realidade social e política.
Há um tema de fundo por trás desses avanços. Cada vez que falamos de crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares estamos falando da usurpação dos recursos econômicos do Estado por parte de grupos econômicos concentrados em nossos países. Os militares não decidiram, sozinhos, levar adiante ações criminais, só pelo prazer de praticá-las. Eles fizeram isso no marco da implementação de planos econômicos muito direcionados, sob a coordenação dos Estados Unidos e apoiados em uma doutrina de segurança nacional. Essa espoliação das economias de nossos países foi sustentada pela ação repressiva e persecutória por parte das ditaduras.
Carta Maior: Em que consiste precisamente o ponto de vista do Constitucionalismo Social para esses temas?
RC: A prioridade dada à busca da garantia de direitos tem a ver também com a forma pela qual a riqueza é distribuída em nosso país e a forma pela qual se tem acesso à totalidade de direitos. Esse é o ponto de vista do Constitucionalismo social, que considera que os direitos humanos não podem ser dissociados um do outro. A Argentina é um dos cinco países que ratificou o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse pacto está baseado em quatro pilares – acesso à habitação, à educação, à saúde e ao trabalho -, a partir dos quais se pode demandar judicialmente os Estados para que cumpram e garantam esses direitos. Essa é a concepção que temos sobre a distribuição da riqueza em nosso país.
Então, respondendo sua pergunta, o Constitucionalismo social que está sendo implementado nestes países latino-americanos está diretamente relacionado com um processo distributivo de garantia essencial de direitos que é, em última instância, o que articula a garantia da totalidade de direitos em nossa sociedade.
Carta Maior: Na Argentina, os militares saíram do poder muito desmoralizados e enfraquecidos politicamente, tanto pelo que aconteceu na Guerra das Malvinas, quanto pela crise econômica na qual acabaram mergulhando o país. Aqui no Brasil, ao contrário, os militares saíram relativamente ilesos e hoje ainda tem uma força política grande o suficiente para resistir a uma iniciativa como a Comissão da Verdade. Na sua avaliação, a Corte Interamericana da OEA tornou-se um caminho para superar essa barreira imposta pelos militares e seus aliados civis no Brasil?
RC: Creio que os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são processos inexoráveis para nossas sociedades. Não há como impedir que a sociedade saiba a verdade, que saiba o que aconteceu com as pessoas que estão desaparecidas, quem foram os responsáveis. Sem nenhuma dúvida, os instrumentos internacionais, como são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm um papel sumamente importante. Quando ratificamos um pacto ou um tratado internacional, estamos assumindo a responsabilidade perante estes organismos de seguir, por exemplo, as recomendações das sentenças que são proferidas por eles. Para isso, obviamente, é necessário o conhecimento e o esclarecimento do conjunto da população a respeito de seus direitos. Quando falamos de reparação por parte do Estado, estamos falando que a reparação não é só para as vítimas, mas também para o conjunto da sociedade. E isso é assim para que se possa construir uma sociedade com maior qualidade democrática.
A Argentina teve não somente a intervenção da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também a aplicação da justiça universal através das ações do juiz Baltasar Garzon, na Espanha. Esses crimes que queremos esclarecer devem ser considerados como crimes contra a humanidade e, assim, devem ser perseguidos pela totalidade da comunidade internacional. Isso é o que aconteceu na Espanha, o que condicionou fortemente o próprio funcionamento do poder Judiciário em nosso país. O Judiciário avaliou que os crimes que haviam sido cometidos na Argentina deviam ser julgados na Argentina e não em outra jurisdição. Esse elemento também foi fundamental para romper o cerco de impunidade.
É disso que viemos tratar nesse encontro em Porto Alegre que reúne os países da região, parlamentares, procuradores, organizações de direitos humanos e investigadores, debatendo como podemos nos ajudar para romper esse cerco de impunidade em cada um de nossos países. Isso para nós é uma obrigação.
A Argentina é, claramente, o país com o processo mais avançado nesta direção. Queremos contar nossos acertos e fracassos e transmitir as formas pelas quais podemos colaborar para obter essas demandas que consideramos essenciais à democracia. A nossa presidenta da República disse que se os crimes de lesa humanidade não fossem resolvidos na Argentina, o país seria uma sociedade pré-democrática. Na Argentina foi possível reverter um processo de impunidade, no marco do exercício estrito da justiça. Não houve nenhum ato de vingança pessoal nem se fez justiça pelas próprias mãos. Esperou-se pacientemente que a Justiça resolvesse os casos. E quando houve absolvição de alguns responsáveis por crimes, respeitou-se a decisão da Justiça. Esse foi um ato de profunda maturidade do povo argentino.
Os nossos estados devem implementar não somente uma política de memória em relação aos crimes, mas sim para formar e capacitar nossos agentes públicos, educar nossas crianças e adolescentes para a construção do verdadeiro “nunca mais”, que é saber que devemos respeitar irrestritamente o funcionamento democrático em cada um de nossos países e que devemos garantir integralmente os nossos direitos humanos.
Eu tenho um olhar otimista sobre esse quadro. A Argentina começou esse processo de justiça a partir da busca pela verdade. O caminho foi a busca da verdade. Isso desencadeou o resto das ações que acabaram dando início aos julgamentos dos genocidas. Tenho uma visão esperançosa sobre o debate que está ocorrendo no Brasil, no Uruguai, no Paraguai e também no Chile. Parece-me que temos um olhar comum, uma experiência compartilhada comum, consequências da ação do terrorismo de Estado muito similares e, em função disso, devemos ser atores que articulem a reparação que os estados devem fazer. O que não podemos é seguir deixando que as vítimas sejam quem toque isso adiante. Os estados devem assumir a responsabilidade por esse processo.
Carta Maior: O senhor observou que os militares argentinos, assim como ocorreu no Brasil e em outros países sulamericanos, não deram o golpe e cometeram todos os crimes que cometeram simplesmente por que foram movidos por um desejo sádico. Eles tinham uma conexão com setores econômicos civis da sociedade. Há um movimento na Argentina para responsabilizar os representantes de empresas e de setores sociais que apoiaram e foram cúmplices do golpe e de ditadura?
RC: Sem dúvida alguma. Nós dizemos que a ditadura na Argentina foi uma ditadura civil-militar. Isso significa que poderosos grupos econômicos, que denominamos de oligarquia argentina, foram enormemente beneficiados, fundamentalmente a partir da proposta de endividamento feita pelos Estados Unidos durante as décadas de 70 e 80. Neste período, a dívida argentina passou de 7 bilhões de dólares para 40 bilhões de dólares, sem que nenhum investimento fosse feito no país. Foram transferências diretas de recursos aos grupos econômicos mais concentrados. O ministro da Economia da ditadura civil-militar foi Martínez de Hoz, um integrante das direções das empresas mais importantes de nosso país. Mas não foi somente isso que aconteceu. Esses grupos também foram beneficiários econômicos a partir da aplicação do terrorismo de Estado. A implementação do seu programa econômico precisava que as organizações sindicais e sociais fossem desmanteladas.
Além disso, eles foram partícipes diretos da prática de crimes contra a humanidade. Temos o exemplo da empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, que é a empresa Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais. Ou seja, temos uma enorme quantidade de ações judiciais onde há o envolvimento de empresários em crimes de lesa humanidade.
Nós não acreditamos que os militares atuaram de uma maneira perversa e diabólica para levar adiante uma ação sem sentido. Eles fizeram o que fizeram para gerar terror na população e poder implementar esse processo de transferência de recursos econômicos de um país periférico para uma potência como os Estados Unidos e também para realizar uma transferência econômica interna, dos setores populares para os setores concentrados da economia, o que provocou a devastação do aparato produtivo do país.
Carta Maior: Há aí, sem dúvida, um outro traço em comum às ditaduras que tivemos em nossos países, a participação de grupos empresariais, entre eles grandes grupos de comunicação. Essa é uma outra área onde está ocorrendo uma profunda mudança na Argentina a partir da aprovação da Lei de Medios. Qual o estágio atual desse debate?
RC: O que está acontecendo na Argentina é que se questionou a hegemonia comunicacional do grupo Clarín, que possui não somente o diário de maior circulação no país, mas também cerca de 70% do serviço de televisão a cabo (em algumas regiões chega a 100%) e mais de 270 emissoras de rádio espalhadas por praticamente todo o território argentino. A situação da comunicação do país foi tema de debate e se sancionou a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que democratiza o acesso à informação, a possibilidade de informar e de ser informado. Essa lei foi aprovada dentro do estrito marco dos direitos humanos, garantindo a democratização da palavra, o conhecimento das realidades locais e regionais. Isso significou, sem dúvida, mexer com o que significa hoje o epicentro das novas estruturas de poder.
Antes se utilizava as estruturas militares para debilitar um governo; hoje se utilizam os meios de comunicação audiovisuais concentrados, que buscam condicionar os governos a partir da difusão e da tergiversação da informação. Isso ocorre em muitos países latino-americanos. Há, praticamente, uma matriz comum. Na Venezuela, essa estrutura midiática provocou um golpe de Estado. Foram fatos extremamente graves.
Para nós, leis de comunicação que garantam a diversidade e a multiplicidade de vozes é a base essencial de onde devemos partir para discutir o que significa a democratização da comunicação. Isso significa também expor esses grupos midiáticos concentrados que manejam a informação pública segundo seus interesses particulares. Eles foram sócios diretos das ditaduras e hoje são sócios de grupos econômicos concentrados para gerar instabilidade em nosso país.
Nós estamos discutindo muito seriamente a responsabilidade que cabe aos meios de comunicação, por exemplo, sobre a tergiversação de informações econômicas para gerar condições de instabilidade econômica em nosso país.
Acreditamos que isso tem a ver com uma responsabilidade de caráter penal, pois não se pode mentir, tergiversar, para provocar desestabilização ou buscar vantagens econômicas. Esse é um debate muito rico. A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual possibilita que organizações sociais, sindicatos, universidades e os próprios governos estaduais e municipais tenham canais de rádio e TV. Isso abre o panorama para que se tenha a multiplicidade de vozes necessária, reproduzindo nos meios de comunicação a diversidade da realidade que vivemos e não o olhar de uma empresa que tenta condicionar nosso olhar sobre a realidade que vivemos.
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O capitalismo e as raízes da desigualdade
Fred Goldstein
O
movimento “Occupy Wall Street” (OWS) fez da desigualdade na sociedade
capitalista uma questão que pôs os ricos na defensiva, pelo menos em
público. O aumento da desigualdade nos últimos 30 anos e especialmente
na última década tem sido comentado ao longo dos anos em vários meios
por analistas económicos e mesmo alguns políticos. Contudo, antes do
movimento “Occupy Wall Street” levantar o slogan do 1% contra os 99%,
esta condição era completamente pacífica e meramente observada como um
inevitável facto da vida, mesmo que indesejável (a menos que se
pertencesse ao 1%).
As
desigualdades que deram ao OWS o seu grito de guerra são
verdadeiramente obscenas e reminiscentes do fosso entre os monarcas da
velha ordem e os servos camponeses.
Por um lado, 50 milhões de pessoas vivem de senhas de refeição,
47 milhões são oficialmente pobres, metade da população é classificada
como pobre [i], 30 milhões são desempregados ou subempregados e dezenas
de milhar de trabalhadores vivem com baixos salários.
Por outro lado, de 2001 a 2006, os 1% do topo conseguiram 53
cêntimos de cada dólar de riqueza criada. De 1979 a 2006, o décimo
superior dos 1% (0,1%, ou seja 300 mil pessoas) conseguiu mais do que os
outros 180 milhões de pessoas [ii]. Em 2009, enquanto os trabalhadores
estavam ainda a ser dispensados em grande número, os executivos das 38 empresas mais importantes ganhavam um total de 140 mil milhões de dólares.[iii]
Estes números são apenas um reflexo da vasta desigualdade de
rendimentos entre por um lado os banqueiros, os corretores e os
exploradores das corporações e a massa de pessoas por outro. Tornou-se
um escândalo, mas ninguém mexeu uma palha para fazer nada contra isto.
Por isso, o movimento “Occupy Wall Street” começou a luta em nome dos
99% contra os 1%. E pegou como fogo.
Como a força motriz fundamental do movimento é a luta contra a
obscena desigualdade de rendimentos, os marxistas devem apoiá-lo e
participar totalmente na luta. Mas, o marxismo deve também estudar esta
questão e dar-lhe uma interpretação de classe.
Podemos começar por perguntar o seguinte: o que significa lutar contra a obscena desigualdade da riqueza?
Podemos começar por perguntar o seguinte: o que significa lutar contra a obscena desigualdade da riqueza?
Significa certamente lutar por impostos para os ricos, usando o
dinheiro para ajudar os trabalhadores e os oprimidos a sobreviverem à
dureza económica do capitalismo. Ao fim e ao cabo, ser desempregado
torna um trabalhador tão desigual quanto é possível sê-lo no
capitalismo.
Igualdade dentro da classe operária e desigualdade entre classes
Normalmente, quando pensamos em lutar pela igualdade económica,
pensamos na luta de ação afirmativa pelo emprego dos negros, dos
latinos, dos asiáticos e dos povos nativos. A luta pela igualdade
compreende lutar por salário igual e condições de trabalho iguais às dos
brancos.
Implica também lutar por pagar igual por trabalho igual às mulheres
trabalhadoras, isto é, terem o mesmo salário dos homens para trabalho
comparável. E a luta pela igualdade inclui a luta pela garantia de
igualdade económica entre trabalhadores normais e lésbias, gays, bi- ou
transsexuais ou travestis.
Pedir a igualdade entre os trabalhadores imigrantes e sem
documentos e os trabalhadores nascidos nos EUA, especialmente brancos, é
uma componente essencial na construção da solidariedade e do avanço da
luta de classe de todos os trabalhadores.
De facto, a luta pela igualdade económica dentro da nossa classe e
entre oprimidos e opressores é fundamental para aumentar a solidariedade
contra os senhores. Desigualdade e divisão no interior da classe
trabalhadora é tanto um problema económico, como um perigoso problema
político. Quebra a solidariedade e dá força aos patrões e ao seu
governo.
Mas, o problema da desigualdade económica global na sociedade
capitalista não é fundamentalmente um problema de desigualdade no
interior da nossa classe ou entre a classe média e a classe
trabalhadora. O problema fundamental da desigualdade massiva é a
desigualdade entre a classe dominante capitalista e todas as outras
classes, principalmente a classe trabalhadora multinacional.
A desigualdade entre a classe trabalhadora e a classe capitalista
está embutida no sistema e está na raiz da questão. A chamada
“excessiva” desigualdade entre a classe dominante e o resto da sociedade
está constantemente sob ataque, como deve estar. Mas a desigualdade
geral entre a classe dominante e todas as outras classes é tida como
natural e raramente questionada.
Desigualdade genética do capitalismo
Esta é devida à maneira como o rendimento é distribuído no sistema
do lucro. O rendimento da classe capitalista vem do trabalho não-pago
dos trabalhadores sob a forma de lucro ou mais-valia. Tudo o que é
criado pelos trabalhadores pertence aos patrões. E tudo o que é criado
pelos trabalhadores contém tempo de trabalho não-pago. Os patrões vendem
os bens e serviços e obtêm dinheiro pelo tempo de trabalho não-pago dos
trabalhadores – é isso o lucro. Guardam parte para si próprios e
enriquecem. A outra parte é reinvestida de modo a se tornarem mais ricos
no próximo ciclo de produção e venda.
O rendimento dos trabalhadores, pelo outro lado, vem da venda da sua
força de trabalho ao patrão, explorador. Os trabalhadores recebem
vencimentos ou salários dos patrões. A quantia mantém-se sempre algures
dentro da gama do que é necessário para sobreviver. Alguns trabalhadores
são pagos um pouco melhor e podem dispor de um certo grau de conforto.
Muitos trabalhadores, cada vez mais hoje em dia, conseguem apenas o
suficiente para viverem uma vida de austeridade, enquanto outros
dificilmente conseguem o suficiente para sobreviverem. Os salários no
capitalismo são basicamente o que custa a um trabalhador subsistir e
manter a família, de modo que os patrões tenham garantida a próxima
geração de trabalhadores para explorarem.
Os salários dos trabalhadores ficam sempre dentro de uma estreita
gama, quando comparados com o rendimento dos patrões. Nenhum trabalhador
consegue alguma vez ficar rico contando com o seu salário, mesmo que
bem pago. Mas, a classe capitalista como um todo fica automaticamente
mais rica, mesmo que alguns capitalistas individualmente saiam dos
negócios e sejam engolidos. Os patrões reinvestem continuamente o seu
capital e mantêm vivo o processo em curso de exploração de cada vez mais
trabalho.
Os patrões deixam a sua riqueza pessoal aos filhos, assim como o seu
capital. Os descendentes, em regra, tornam-se cada vez mais ricos de
geração para geração, enquanto os trabalhadores deixam aos filhos as
suas magras posses de geração para geração. Os trabalhadores têm de
lutar para manterem o que têm através dos altos e baixos das crises
capitalistas e do desemprego cíclico.
Como alcançar a igualdade social e económica nestas circunstâncias?
Neste contexto, para o movimento OWS e todos os outros que sejam
pela igualdade genuína, surge a questão de saber por qual igualdade
exatamente estão a lutar. Se o objetivo final é a reforma do código
fiscal, ou a redução do financiamento empresarial na política, ou a
regulação da classe capitalista predadora e dos banqueiros avarentos,
então o objetivo final limita-se a uma luta por uma forma de
desigualdade menos obscena.
Trata-se certamente de um objetivo progressista e deve ser sempre
prosseguido como meio de aliviar os trabalhadores e a massa do povo em
geral. Mas, seja qual for a maneira de o fazer, se se limita a luta
contra a desigualdade a mantê-la no quadro do capitalismo, isso
significa lutar por menos desigualdade, mas também por mantê-la e
consenti-la. O sistema de exploração de classe gera a extrema
desigualdade entre classes.
Distribuição da riqueza e capitalismo
O facto é que a desigualdade na distribuição é um resultado do
sistema de produção pelo lucro. Ora, conforme os marxistas mostram, as
relações de distribuição decorrem das relações de produção. O que
determina a distribuição da riqueza social é a propriedade privada dos
meios de produção e serviços. Nenhuma redistribuição da riqueza no
capitalismo, quer através de despesa estatal, quer de acordos com
sindicatos ou qualquer outro método, consegue ultrapassar a desigualdade
de classe que resulta do direito dos capitalistas a possuírem não só os
meios de produção, como todos os produtos da produção.
Neste sentido, é útil uma análise escrita por Karl Marx em 1847.
Marx tentava desmontar o argumento de que o trabalho e o capital têm um
interesse comum no crescimento do capitalismo. O ensaio “Trabalho
assalariado e capital” foi escrito com base em lições a trabalhadores
alemães com consciência de classe que primeiro conseguiram organizar-se.
Escreveu Marx:
“Vimos portanto que mesmo a situação mais favorável para a classe
operária, designadamente o mais rápido crescimento do capital, por muito
que melhore a vida material do trabalhador não elimina o antagonismo
entre os seus interesses e os do capitalista. Lucro e salário continuam
como antes em proporção inversa.
“Se o capital cresce rapidamente, os salários podem crescer, mas o
lucro do capital cresce desproporcionadamente mais depressa. A posição
material do trabalhador melhorou, mas à custa da sua posição social. O
abismo social que o separa do capitalista alargou-se.
“Finalmente dizer que ‘a condição mais favorável para o
salário-trabalho é o crescimento mais rápido do capital produtivo’ é o
mesmo que dizer: quanto mais depressa a classe trabalhadora multiplicar e
aumentar o poder do seu inimigo e a riqueza de quem reina sobre a sua
classe, mais favoráveis serão as condições sob as quais será permitido
lidar com a multiplicação da riqueza burguesa e com o aumento de poder
do capital, contentando-se assim com forjar para si as cadeias douradas
pelas quais a burguesia a arrasta no seu caminho.” (Marxist Internet
Archive).
Muito do ensaio de Marx é dedicado a mostrar que, independentemente
das condições relativas de que os trabalhadores dispõem no sistema de
exploração capitalista, quer sejam mais bem ou menos bem pagos e mesmo
quando estão em boa posição negocial porque o patrão precisa deles para
continuar a aumentar a produção, os trabalhadores perdem constantemente
terreno em relação aos capitalistas, cuja riqueza aumenta imensamente.
Por isso, está inscrito no próprio sistema de exploração o aumento
sistemático da desigualdade entre as classes. Além disso, a classe
trabalhadora está na melhor das hipóteses limitada para sempre a tentar
“forjar as cadeias douradas pelas quais a burguesia a arrasta no seu
caminho.”
Marx então continua, mostrando que a chamada prosperidade dos
trabalhadores é uma mentira, porque os patrões utilizam todos os meios
para baixarem os ordenados, mesmo nos chamados “bons tempos”.
O capitalismo na era da revolução técnico-científica e da
globalização imperialista expandiu-se e evoluiu por saltos e
descontinuidades desde os tempos de Marx. As classes trabalhadoras dos
países imperialistas estão num caminho descendente, com os salários a
baixar. Estão a perder terreno não só em termos relativos, mas também
absolutos.
Os trabalhadores já não progridem nem lentamente no seu modo de
vida, enquanto os capitalistas continuam em frente. Os salários estão a
baixar. As condições estão a piorar. Os patrões arquitetaram uma
competição salarial mundial entre os trabalhadores nos centros do
capitalismo e as centenas de milhões de trabalhadores dos países de
baixos salários. Os patrões usaram a deslocalização associada à
tecnologia e à exploração dos trabalhadores imigrantes para promoverem
esta competição. O exército global de reserva de desempregados e
subempregados aumentou para centenas de milhões. Os trabalhadores estão
sob pressão em todos os continentes.
Nos EUA, os salários têm descido desde os anos setenta (Perry L.
Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream” –
“Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”). A grande
desigualdade que vemos hoje resulta do declínio absoluto dos salários. A
parte de leão da nova riqueza vai para os financeiros e os donos das
corporações em quantidades crescentes de mais-valia (trabalho não-pago)
sob a forma de dinheiro.
É urgente procurar inverter o declínio absoluto das condições do
proletariado e dos oprimidos. A luta contra o aumento obsceno da
desigualdade tem que continuar e crescer.
A riqueza das empresas cria riqueza pessoal extrema
É importante notar que a obscena desigualdade no rendimento pessoal
não é nada comparada com a riqueza das empresas, controlada não pelos 1%
mas pela pequena fração deles que se sentam nos gabinetes de diretor
dos bancos e das gigantescas corporações transnacionais. Foi a isto que
Lenine chamou capital financeiro – o pequeno grupo de grandes empresas
que controlam biliões de riqueza empresarial e a maior parte da produção
da riqueza mundial.
Um estudo recente mostra que 147 corporações dominam 40% da riqueza
empresarial mundial” (“Financial world dominated by a few deep pockets,”
“O mundo financeiro dominado por alguns bolsos cheios,” ScienceNews,
24 Set., 2011). A propriedade privada e o controle de uma vasta riqueza
financeira e empresarial pelo topo da classe dominante são o que está
por detrás da imensa riqueza pessoal concedida aos administradores da
lista dos 500 da Fortune e aos ricaços mundiais (grandes administradores
e grandes acionistas do capital e da finança).
A questão é então: vamos parar a luta para a redução da desigualdade no capitalismo, vamos lutar para ajudar a forjar as “cadeias douradas” com as quais o capital arrasta o trabalho, ou vamos levar a luta contra a desigualdade até às últimas consequências e lutar para quebrar as cadeias da dominação de classe de uma vez? A desigualdade entre classes só pode ser abolida libertando-nos da classe capitalista de uma vez e do sistema de exploração sobre o qual toda a obscena riqueza está erigida.
A questão é então: vamos parar a luta para a redução da desigualdade no capitalismo, vamos lutar para ajudar a forjar as “cadeias douradas” com as quais o capital arrasta o trabalho, ou vamos levar a luta contra a desigualdade até às últimas consequências e lutar para quebrar as cadeias da dominação de classe de uma vez? A desigualdade entre classes só pode ser abolida libertando-nos da classe capitalista de uma vez e do sistema de exploração sobre o qual toda a obscena riqueza está erigida.
[i] “Census data: Half of U.S. poor or low income,” [“Dados do
censo: metade dos americanos são pobres ou de baixo rendimento”]
Associated Press, Dez. 15.
[ii] Jacob S. Hacker e Paul Pierson, “Winner-Take-All Politics” [“A política do quem-ganha-apanha-tudo”] (New York: Simon & Schuster, Kindle Edition, 2010), p. 3.
[iii] Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream,” [“Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”] Economy in Crisis online, Fev. 12, 2011.
Próxima 2ª Parte: Como a natureza da distribuição da riqueza decorre do modo de produção e Controle da riqueza empresarial: a fonte de riqueza pessoal extrema.
Extraído do anexo do próximo livro “Capitalism at a Dead End” [“O Capitalismo num Beco sem Saída”] de Fred Goldstein. Goldstein é também autor de “Low-Wage Capitalism” [“Capitalismo dos Pobres”]
________________________________________
Tradução: Jorge Vasconcelos
[ii] Jacob S. Hacker e Paul Pierson, “Winner-Take-All Politics” [“A política do quem-ganha-apanha-tudo”] (New York: Simon & Schuster, Kindle Edition, 2010), p. 3.
[iii] Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream,” [“Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”] Economy in Crisis online, Fev. 12, 2011.
Próxima 2ª Parte: Como a natureza da distribuição da riqueza decorre do modo de produção e Controle da riqueza empresarial: a fonte de riqueza pessoal extrema.
Extraído do anexo do próximo livro “Capitalism at a Dead End” [“O Capitalismo num Beco sem Saída”] de Fred Goldstein. Goldstein é também autor de “Low-Wage Capitalism” [“Capitalismo dos Pobres”]
________________________________________
Tradução: Jorge Vasconcelos
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sábado, 7 de abril de 2012
Os movimentos sociais e os processos revolucionários na AL: uma crítica aos pós-modernistas
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sexta-feira, 6 de abril de 2012
Andrei Tarkovski, 80 anos: O poeta do cinema foi também um pensador da arte
Por Josias Teófilo*no SUL21
Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986).
Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o
papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou
seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já
estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte
contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do
concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e
ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte
contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o
livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda
russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e
sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se
opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências
mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski,
do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria
tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom
espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa
‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no
seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a
realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a
sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes
cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a
dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter
profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos –
parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de
reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam
profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura,
literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica
quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma
doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O
Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa
constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é
religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como
se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que
caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta
antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas
duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o
pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua
mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande
arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de
existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos
tempos.
* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.
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Enquanto isso, os Tuaregues...
Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Kadafi. Depois da queda do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou de outros segmentos da população. E levaram consigo suas armas.
Flávio Aguiar no CARTA MAIOR
Quem não se lembra dos tuaregues? Os da
minha geração lembram. Eles estavam no filme Beau Geste (1939), direção
de William Wyler, com Gary Cooper, Ray Milland, Susan Hayward, Robert
Preston e grande elenco. Neste filme, que, na verdade, foi filmado não
no Saara, mas nas dunas do sul da Califórnia, os tuaregues, cavalgando
loucamente como índios norte-americanos (os da tribo de Hollywood),
tentavam tomar o forte de Zinderneuf, sem resultado. Gary Cooper, Ray
Milland e os demais resistiam bravamente até o último homem, mas sem
entregar o forte. Só Ray Milland sobrava, para voltar melancólica, mas
gloriosamente, para casar com Susan Hayward, que ficara o tempo todo à
sua espera, tocando piano no salão de Brandon Abbas, na Inglaterra.
Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.
Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.
O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).
O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.
Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.
Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.
De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.
Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.
Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.
O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).
O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.
Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.
Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.
De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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