Veja, uma das cinco revistas semanais de informações mais
importantes do mundo, levou 2.272 edições, em 44 anos de circulação,
para cometer o maior “nariz de cera” da sua história, do jornalismo
brasileiro em muitos anos e talvez da imprensa mundial. Sua matéria de
capa do último número, com data de 6/56/2012, abre com 98 linhas da mais
medíocre “encheção de linguiça”, como se diz “no popular”.
Se tivessem mesmo que sair, esses quatro enormes parágrafos, numa
matéria de apenas oito períodos, tirando boxes e penduricalhos outros
para descansar a vista (e relaxar a cabeça), caberiam na Carta ao
Leitor, espaço reservado à opinião do dono. Mas lá já estava o devido
editorial da “casa”, repleto de adjetivações e subjetividades, conforme o
estilo.
A tarefa do repórter Daniel Pereira não era competir em fúria
acusatória com a voz do dono, mas dar-lhe – se fosse o caso – suporte
informativo. Sua matéria devia conter fatos, que constituem a arma de combate do repórter, infalível diante de qualquer assunto sob sua investigação.
Ao invés disso, metade da sua falsa reportagem, com presunção de trazer
novidades e gravidades suficientes para merecer a capa da edição, é um
rosário de imprecações opiniáticas, no mais grosseiro e primário estilo,
num desabamento de qualidade em relação à Carta ao Leitor.
História desrespeitada
Em tom professoral digno de um sábio de almanaque Capivarol, o editor
da sucursal de Brasília, distinto e ilustre desconhecido (ainda, claro),
faz gracejo insosso com o fracasso da estratégia de Lula de usar a “CPI
do Cachoeira” como manobra diversionista para tirar o foco do
julgamento dos integrantes da “quadrilha do mensalão”.
Tentando reparar o efeito inverso gerado pela iniciativa, Lula procurou
o ministro Gilmar Mendes, do STF, para um acerto, “movimento tão
indecoroso que, ao contrário do imaginado pela falconaria petista, se
voltou contra o partido”, sentencia o jornalista.
Não sou petista. Nunca fui. Também não sou nem nunca serei filado a
qualquer partido político, enquanto minha profissão me conceder um
espaço para opinar e interpretar. É onde faço política: tentando armar o
meu leitor para ter sua agenda atualizada aos grandes temas ao alcance
da sua vontade.
Votei uma única vez em Lula para presidente da República, na primeira
tentativa dele, contra Collor, em 1989. Ninguém encontrará um artigo de
louvor a ele no meu Jornal Pessoal. Como não moro em Brasília,
São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, mas em Belém do Pará,
distante dois mil quilômetros da capital federal, não me atrevo a
escrever reportagens a respeito dele.
Para isso, precisaria estar em contato com pessoas do centro do poder,
testemunhar acontecimentos, criar fontes com acesso às informações
diretas. Mas minhas análises, feitas à distância, não ultrapassam o
limite da possibilidade de demonstrar com fatos o que digo. E só digo o
que os fatos me autorizam.
Ao autorizar um repórter, encarregado de produzir uma reportagem, que
requer tudo que está fora do meu alcance, justamente porque não disponho
dos recursos ao alcance de Daniel Pereira, Veja mostraque não
respeita a si, aos seus jornalistas e ao leitor. Desrespeita a própria
história, que a fez ocupar um lugar tão destacado na imprensa mundial e
ter-se estabilizado há muitos anos em 1,2 milhão de exemplares de
tiragem.
Alma vendida
O respeito e a admiração que as pessoas têm hoje pelos jornalistas da
TV Globo era o mesmo, com outra substância, do início dos anos 1970,
quando Veja se consolidou como a mais importante novidade na
imprensa brasileira. Antes de passar a trabalhar na revista, via-me
diante de humilhação partilhada por repórteres das outras publicações,
como as minhas. Depois de dar entrevista coletiva, o personagem da
reunião se desculpava e atendia à parte o representante de Veja, que costumava assistir calado ao pingue-pongue de perguntas e respostas entre os colegas e o entrevistado.
Mas não ficávamos furiosos ou nos revoltávamos pelo privilégio dado ao
concorrente. Veríamos, quando a revista circulasse, que o tratamento
diferenciado tinha uma motivação fundamentada na qualidade do trabalho
da revista. Por opção editorial, as matérias não eram assinadas. Mas
tanto os profissionais que iam às ruas atrás das notícias eram bons como
ótimos eram aqueles que reescreviam tudo na redação, estabelecendo uma
homogeneidade de alto nível em todos os textos, do primeiro ao último.
Essa boa novidade levou ao exagero da padronização, logo corrigido pela
liberação dos freios da centralização: cada jornalista pode desenvolver
seu estilo e as matérias começaram a sair assinadas.
Muitas das matérias que forniram as páginas da revista eram do melhor
jornalismo, vizinho dos textos de autores da melhor literatura. Tanto
pelo domínio do vernáculo como pela consciência de que jornalismo é a
vida pulsando todos os dias em sua materialização factual, sempre
sujeita ao humano, demasiado humano (o que serviu de halo para o “novo
jornalismo” americano).
Com a sucessão de textos do tipo que agride a essência do jornalismo já há bastante tempo, Veja está
prestando um grave desserviço ao Brasil, a pretexto de brecar o avanço
do “lulismo” tirânico e irresponsável. Está fazendo o país retroceder a
um jornalismo praticado até seis décadas atrás, quando o Diário Carioca introduziu o lide no manual de redação jornalística. Sucederam-se a partir daí os aperfeiçoamentos que Veja consolidou.
A começar pelo curso de formação que deu aos seus futuros integrantes
antes de começar a circular, uma revolução em matéria de recrutamento de
quadros. E pelo elevado padrão de profissionalismo que estabeleceu,
tornando-se uma meta para todos aqueles que queriam avançar no seu
ofício e ter uma vida digna, decente e confortável – conquistas das
quais só a última era frequente, à custa da venda da alma ao diabo; até Veja demonstrar que jornalista também pode ganhar bem sem se prostituir.
Efeito Jim Jones
É profundamente lamentável que essa mesma revista esteja agora, num
paroxismo editorial difícil de explicar e mais difícil ainda de
entender, renunciando a todas essas conquistas para se entregar a uma
voragem de apoplexia palavrosa, se a tipologia cabe nessa forma
surpreendente de patologia. Lula pode sobreviver a esse tipo de vírus. O
jornalismo, não.
Querendo ser a coveira de um líder político esquivo e ambíguo, Veja está,
na verdade, cometendo um haraquiri patético, capaz de arrastar consigo
muito mais gente do que a que sucumbiu sob outro desses líderes em
transe: Jim Jones.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]