segunda-feira, 2 de julho de 2012

#YoSoY 132, a rebelião contra manipulação midiática no México


Se o movimento estudantil mexicano se definiu claramente contra o representante do PRI, Enrique Peña Nieto, sua irrupção na cena política foi muito mais além da disputa pela presidência. #YoSoY 132 instaurou um espaço de debate e diálogo que soube liberar-se da camisa de força tradicional com que os meios de comunicação do sistema oficial envolvem as sociedades. Por meio da internet e das redes sociais #YoSoY 132 criou um canal paralelo de discussão e de crítica global ao Estado mexicano que não tem precedentes no país. A reportagem é de Eduardo Febbro.




Cidade do México - O impensável sempre tem lugar. Em pleno processo eleitoral mexicano, o impensável se chamou #YoSoY 132, um movimento estudantil que surgiu na Universidade Iberoamericana contra o candidato do PRI, Enrique Peña Nieto, e contra o ultraje da informação simbolizado para os jovens no canal Televisa. Se o movimento estudantil mexicano se definiu claramente contra o representante do PRI, sua irrupção na cena política foi muito mais além da disputa pela presidência. #YoSoY 132 instaurou um espaço de debate e diálogo que soube liberar-se da camisa de força tradicional com que os meios de comunicação do sistema oficial envolvem as sociedades. Por meio da internet e das redes sociais #YoSoY 132 criou um canal paralelo de discussão e de crítica global ao Estado mexicano que não tem precedentes no país.

Ainda que o contexto seja diferente e o México seja uma democracia, a sua maneira repentina e mobilizadora #YoSoY 132 segue a trajetória dos jovens revolucionários do Egito que, graças à internet, conseguiram plasmar uma rebelião contra todo um sistema. Acusado de partidarismo, de servir aos interesses do candidato da esquerda, Andrés Manuel López Obrador, dividido, contaminado pela contrapropaganda, # YoSoY 132 sobreviveu aos ataques e manipulações para deixar uma marca fresca e duradoura.

Como no Egito da Revolução da Praça Tahrir, ou como ocorreu com os indignados espanhóis, #YoSoY 132 se inscreve em uma corrente universal de renovação e saneamento da democracia contra os poderes e interesses incrustados nos grandes meios de comunicação. Como desse chamado quarto poder que é a mídia depende em grande parte a qualidade da democracia, o movimento estudantil agrupado em #YoSoY 132 inventou um quinto poder: a possibilidade de difundir uma verdade não coincidente com a informação normalizada da indústria da informação. De ator periférico #YoSoy 132 se converteu em ator central e chegou até a realizar um debate presidencial com três candidatos, do qual Enrique Peña Nieto não participou.

Ana Rolón, estudante da Universidade Iberoamericana, e Rodrigo Serrano, estudante de Comunicação na mesma universidade, fazem parte do comitê logístico de #YoSoY 132. Têm apenas 22 anos, mas se expressam com a convicção e a maturidade herdada de uma luta política que não sonhavam protagonizar quando saltaram ao primeiro plano há apenas alguns meses.

Neste diálogo com Carta Maior mantido em uma praça do bairro boêmio de Coyoacán, os estudantes-dirigentes delineiam a sociedade na qual se projetam no futuro.

Com que postulado central nasceu e se manteve o #YoSoy 132.

Rodrigo Serrano: Nosso principal postulado é a democratização dos meios de comunicação e a democracia verdadeira. Acreditamos que o candidato do PRI, Peña Nieto, pode ganhar a eleição, mas pensamos que a fraude está também na manipulação da informação. Os meios de comunicação distorcem a informação. Queremos que a democracia mexicana seja uma democracia informada e não uma democracia puramente formal.

Ana Rolon: A democratização dos meios de comunicação vai muito além desta conjuntura eleitoral. Parte do movimento lutou muito pelo voto informado, ou seja, que se ofereça uma informação que integre as propostas dos candidatos e o que cada um deles fez. O que dizemos para as pessoas é: “não vá atrás do marketing político, da propaganda, da cara do candidato”.

Como se situa o movimento com respeito à violência que sacudiu o México nos últimos seis anos e às propostas bastante tímidas dos candidatos?

Ana Rolon: Somos um movimento pacifista. Trata-se de lutar, mas com nossas armas: educação, conhecimento, leitura, cultura, arte.
Rodrigo Serrano: Nos criticaram porque protestávamos contra o governo e não contra os narcos. Mas isso é uma contradição porque o narco é criminal, não obedece à sociedade, mas sim a interesses privados. Protestar contra o narco é como protestar contra uma árvore. Em troca, em teoria, o governo funciona para escutar os cidadãos. Por isso, se queremos acabar com a violência, primeiro precisamos de um governo que escute os cidadãos. E essa é a causa pela qual estamos lutando.

Ana Rolon: Nosso movimento exige este diálogo entre governo e cidadania. Por isso nós organizamos um debate entre os candidatos onde o formato mudou totalmente em relação aos debates anteriores organizados pelo IFE, o Instituto Federal Eleitoral. O formato que escolhemos foi: “escuta os que os cidadãos têm a dizer”. Recebemos as perguntas formuladas por toda a cidadania através da internet. E aí se abriu o debate para todos, não importando se o autor da pergunta fosse ou não estudante, do Distrito Federal ou de outra parte. Recebemos 7.100 perguntas provenientes de todo o país. Tomamos o debate desde um lado distinto, dizendo: “Escutem-nos, nós somos a cidadania”.

Vocês, graças às chamadas novas tecnologias, romperam o bloco tradicional no qual funcionam os processos políticos, ou seja, onde os meios de comunicação são intermediários absolutos entre os partidos e os eleitores.

Ana Rolon: Nosso movimento partiu de um vídeo feito por 131 alunos da Universidade Iberoamericana que respondiam aos ataques. Só quisemos dizer: “cuidado, quero usar meu direito de resposta, não preciso enviar uma carta aos editores. Posso usar as tecnologias e te desmentir”.
As novas tecnologias foram então determinantes para o auge do movimento estudantil mexicano.

Rodrigo Serrano: A tecnologia é a espinha dorsal desse movimento. Nos primeiros dias havia uma imagem muito interessante que circulava no Facebook e que dizia: “não é que o México estivesse adormecido, é que não havia a internet”. Há muita gente que está aqui enojada e com as redes sociais se abre a possibilidade de se organizar.

As redes sociais serviram para romper o cerco da informação.

Ana Rolon: Sim. Graças às redes sociais não precisamos ficar esperando que os meios tradicionais informem sobre uma marcha. Não faz falta mais. Nós jogamos muito com tecnologia e com a rua. Assim nós podemos saltar por cima desses meios que nós consideramos de “duvidosa neutralidade”. Por exemplo, como os meios tradicionais sempre distorcem a informação sobre quanta gente participa realmente das marchas, nós cantamos para eles: “não somos um, não somos cem, imprensa vendida, conta-nos bem”. As tecnologias tem nos ajudado muito a limpar o viés dos meios oficiais e ir muito mais além.

Rodrigo Serrano: Muitos canais de televisão não entenderam que, agora, nós somos o meio. Transmite-se através de nosso canal. Esses canais não gostam que não necessitemos deles. Chegaram até a dizer que havíamos firmado um contrato de exclusividade com o Youtube. Mas o Youtube não é um meio, o meio é nosso canal, o canal 131. O sinal está aberto para que seja acessado, mas a produção é nossa. Isso eles não aceitam. Não conseguem entender que agora os cidadãos também podem ser meios de comunicação. O problema central no México não está no fato de que os meios de comunicação e o poder político sejam cúmplices, mas sim que são a mesma coisa. Por isso, não temos uma democracia real.

Ana Rolon: O tema da democratização dos meios de comunicação vai mais além desta eleição presidencial. Vai para sempre. Ganhe quem ganhe, vamos seguir exigindo esse diálogo, essa interação muito mais direta entre cidadãos e políticos. Seguiremos em cima dos meios de comunicação que não respeitam os interesses da cidadania, mas sim os interesses políticos e os interesses privados. Não vamos dormir. Seguiremos exigindo o diálogo. Esse é o grande símbolo.

Como vocês projetam o futuro? Qual papel e que estratégia pretendem adotar?

Rodrigo Serrano: O México já tem um século de governos autoritários e paternalistas onde o governo acredita fazer o favor de promover algumas melhoras para alguns. Mas isso não deve ser assim. Nos últimos 12 anos, nossa democracia foi meramente formal, não se meteu na vida pública. Isso que ocorreu é um sintoma de que os cidadãos se deram conta de que podem exigir e serem escutados. Nós estamos hoje em condições de organizar debates. Os candidatos, o governo ou o presidente não são deuses com os quais não podemos falar. São pessoas e estão aqui para nos atender. São servidores públicos. O que importa agora não é nosso movimento como organização, mas sim como símbolo. Graças ao debate que organizamos com os candidatos, aos protestos contra Peña Nieto, aos protestos contra a Televisa, demonstramos que é possível falar cara a cara com os governantes. Isso, no México, era algo impensável. Eu creio que, ganhe quem ganhe, isso veio para ficar. Pode ser que o PRI conserve ainda o gene autoritário e repressor, mas nós temos agora novas tecnologias de comunicação e um novo modo de pensar. Não vai ser tão fácil.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

México, Paraguai e a onda direitista


As forças políticas aliadas aos EUA e adeptas do neoliberalismo obtiveram duas expressivas vitórias na América Latina nos últimos dias. No Paraguai, elas patrocinaram um golpe “parlamentar”, abortando o frágil ciclo de mudanças iniciado pelo ex-bispo dos pobres Fernando Lugo. No México, elas garantiram o retorno do PRI ao poder, com a vitória folgada do empresário Peña Nieto. Com estes dois resultados, as forças direitistas do continente sentem-se mais fortalecidas, animadas para as próximas batalhas.
Em ambos os casos, o império estadunidense – também envolto numa disputa presidencial – foi cauteloso no seu posicionamento. Não deu apoio explícito aos golpistas paraguaios e nem se pronunciou abertamente sobre a eleição mexicana. Mas é evidente que os EUA saíram satisfeitos com os dois desfechos. Há muito se opunham ao presidente Lugo, como revelaram documentos vazados dos Wikileaks, e não gostariam de ver no México um presidente que defendia a soberania nacional, como Lopes Obrador.
A fragilidade do projeto antineoliberal
Do ponto de vista prático, imediato, os EUA cravaram mais duas vitórias – que se somam ao golpe em Honduras e às vitórias da direita no Chile e na Colômbia. México e Paraguai serão fiéis aliados do império na sabotagem a qualquer projeto de integração soberana da América Latina – seja no Mercosul, na Unasul e, pior ainda, na Alba. Eles também manterão, na essência, o projeto neoliberal de desmonte do estado, da nação e do trabalho, sendo o contraponto aos governos progressistas do continente.
As duas vitórias da direita revelam ainda a fragilidade dos projetos mudancistas, antineoliberais, na região. No caso do Paraguai, a frágil base econômica – num país em que os ricaços não pagam impostos e no qual 70% das terras estão concentradas nas mãos de 2% dos latifundiários – dificultou a adoção de políticas sociais mais avançadas. Para piorar, Lugo não contava com movimentos sociais robustos, nem estrutura partidária e nem base parlamentar – apenas um senador votou contra o seu impeachment.
Obstáculos à construção de alternativas
Já no caso do México, as três últimas décadas de hegemonia neoliberal – a princípio lideradas pelo PRI, que traiu totalmente o seu projeto original transformador, e depois pelos conservadores do PAN – dificultaram a construção de alternativas políticas mais à esquerda. O país se transformou numa autêntica colônia dos EUA, a partir da imposição do Nafta. Ele regrediu economicamente e foi vitimado por todas as suas chagas – subemprego, miséria e crescimento vertiginoso da criminalidade e do narcotráfico.
Neste trágico cenário, a esquerda não conseguiu construir alternativas e o bloco neoliberal se recompôs. Como explica o sociólogo Emir Sader, a regressão foi o caldo de cultura para o fortalecimento do PRI, agora totalmente controlado por forças de direita. Ele cresceu com o “enfraquecimento do governo de Felipe Calderón, sobretudo com o fracasso do seu carro-chefe, a guerra contra o narcotráfico”. Já o PRD de Lopes Obrador “perdeu vários governos, como resultado de crise internas constantes”.
Luta de classes mais intensa
É certo que os golpistas do Paraguai e os neoliberais do México terão muitas dores de cabeça pela frente. Na nação vizinha, cresce a onda de protestos pelo retorno à democracia e os movimentos sociais dão passos para rearticular a resistência. Além disso, os golpistas cavaram seu isolamento na região, com o Paraguai sendo suspenso do Mercosul e da Unasul e recebendo reprimendas até da dócil OEA. Mesmo que o golpe se consolide, novas eleições deverão ocorrer no início do próximo ano.
Já no México, os neoliberais terão que governar um país devastado e ensanguentado – como quase 50 mil mortos nos últimos doze anos. Como aponta o escritor Eric Nepomuceno, “o México vive uma espiral de barbárie que ninguém sabe onde vai parar. E, pior, ninguém parece saber como parar. Uma estranha guerra civil, entre traficantes... Esse descalabro é, hoje, o cerne da vida mexicana. Há uma nuvem permanente de imagens macabras – decapitados dependurados em postes e pontes, decapitados em automóveis abandonados, corpos queimados atirados em praças, parques, esquinas –, pairando sobre o cotidiano de todos e de cada um dos habitantes do país”.
“E é debaixo dessa nuvem que o novo presidente mexicano irá enfrentar o dia seguinte ao da vitória. Ele herdará um país cada vez mais atado aos desígnios de Washington. Um México que, graças a esse atestado de boa conduta, atrai capitais, gera rendimentos, se tornou um país bom para os investidores. Resta saber quando, e como, o México deixará de estar mergulhado em sangue e passará a ser um país bom para os mexicanos”.

domingo, 1 de julho de 2012

Gilson Caroni: Golpes e democracia, a pedagogia do Mercosul


Os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco em favor do aprofundamento do conceito de democracia na América Latina.

 Gilson Caroni Filho no VIOMUNDO

Ao decidir suspender o Paraguai e incorporar a Venezuela como membro pleno do Mercosul, Brasil e Argentina sinalizaram para o aprofundamento do conceito de democracia na América Latina. Uma decisão que nos compromete no fluxo da vida, pela responsabilidade que criamos em relação a novas possibilidades de presente e futuro.
Os donos de colunas fixas na grande imprensa costumavam – e ainda costumam – invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, pelo Mercado Comum do Sul e por seus países associados, que define o regime democrático como condição indispensável para a existência e para o desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se aferravam – e ainda se aferram – para protelar a aprovação da Venezuela como membro pleno do bloco.
Usam o argumento de que o “impeachment” de Lugo foi executado dentro das normas legais previstas na Constituição paraguaia, esquecendo-se o que todos sabem: nem sempre legalidade é sinônimo de licitude. O mundo jurídico é especialista em romper com o espírito da lei dentro da letra da lei.
Não houve tempo para o exercício da defesa. O golpe ruralista foi perpetrado e calculado num tempo que impedisse qualquer articulação nacional em defesa do governo democraticamente constituído.
O mesmo vale para o suposto déficit democrático da Venezuela. Nunca é demais lembrar que Hugo Chávez chegou à presidência numa eleição, em 1998, em que obteve 56,2% dos votos. Dois anos depois resistiu a uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pelas velhas oligarquias em conluio com o baronato midiático.
Em 2004, venceu o referendo revogatório da oposição para, dois anos depois, renovar seu mandato presidencial com quase 60% dos votos. Em 2008, o secretário geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, não poupou elogios ao processo democrático venezuelano ao se referir às eleições regionais.
Na ocasião, Insulza parabenizou o governo da Venezuela pela “situação de normalidade” e destacou a participação maciça da população no pleito.
Destacou também o comportamento dos partidos e agradeceu pelos “tempos de paz e tranquilidade”. Em que país os cidadãos participaram mais ativamente de processos decisórios que os 16 milhões de eleitores venezuelanos?
É chegada a hora de os historiadores e os bons jornalistas cumprirem o seu papel em um continente marcado por uma institucionalidade construída por estruturas de dependência entre as oligarquias e os interesses do imperialismo. Comparar o que éramos com o que somos é imperativo.
É fundamental que nós, latino-americanos, nos reconheçamos nas culturas e histórias que moldaram o mundo como o temos, vemos e vivemos hoje. Precisamos confrontar os que – detendo o monopólio da narrativa – impedem o diálogo tão necessário entre sociedades, tempos, histórias, gerações e sujeitos, para continuarmos lutando por um mundo justo e democrático.
Nessa tensão dialética, a vida e seus atores são mobilizados por forças centrípetas e centrífugas, por meio, principalmente, de discursos que se reproduzem no cotidiano social. No sentido dessas forças, refletindo sobre o momento histórico, os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Roussef não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco.
A luta pela hegemonia só é eficaz quando governar é educar para a mudança, desfazendo nós semânticos sobre golpes e democracia.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro

O racismo e a transformação social do Brasil

Por Dennis de Oliveira na REVISTA FORUM

O movimento negro brasileiro notabilizou-se em lutar contra injustiças sociais mais radicalizadas, como a violência social e policial, o extermínio de crianças e adolescentes negros, o aumento da miserabilidade, entre outros. Destaca-se a denúncia feita nos anos 1990 do documento da Escola Superior de Guerra, intitulado “Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI”.
Esse texto, produzido em 1988 pelo think tank da ditadura militar, alertava que havia dois focos “perigosos” para a estabilidade do sistema: os “menores” de rua e os cinturões de pobreza. Por essa razão, o documento da ESG sugeria que os poderes constituídos lançassem mão de todos os mecanismos, inclusive “pedir o concurso das Forças Armadas para enfrentar esta horda de bandidos, neutralizá-los e mesmo destruí-los para que seja mantida a lei e a ordem”.

Uma entidade, a União de Negros pela Igualdade (Unegro) denunciou esse documento no I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 no ginásio do Pacaembu,em São Paulo, lançando a palavra de ordem “Combate ao extermínio programado da população negra e pobre no Brasil”.
Foi um momento de resistência à ampliação da violência racial por conta da implementação do modelo neoliberal no País. O movimento negro participou ativamente da mobilização em prol do Estatuto da Criança e Adolescente, da campanha contra a esterilização indiscriminada de mulheres negras, contra o recrudescimento da violência policial, entre outras campanhas.
A pressão do movimento negro foi fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse, em1995, aexistência do racismo na sociedade brasileira. Naquele ano, de celebração do tricentenário de Zumbi dos Palmares, dois grandes eventos foram realizados. O primeiro, foi a Marcha Zumbi à Brasília, ocasião em que foi entregue ao então presidente da República um documento reivindicando políticas públicas de enfrentamento do racismo. O governo, ao receber o documento e constituir um grupo de trabalho interministerial, reconheceu publicamente a existência do racismo na sociedade brasileira.
Mas outro evento importante foi o Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, realizado no Memorial da América Latina,em São Paulo, em que lideranças de organizações negras do continente se reuniram para discutir o panorama das relações raciais. O resultado disso foi a constituição de redes de articulação de entidades antirracistas na América Latina, que foi fundamental na participação na Conferência da ONU de Combate ao Racismo, em 2001, em Durban, África do Sul.

Racismo estrutural

No decorrer da preparação da Conferência de Durban, participei do Foro Social de las Americas na cidade de Quito, organizado pela Agência Latinoamericana de Información (Alai). Apresentei um texto intitulado “Racismo estrutural: apontamentos para uma discussão conceitual” (disponível em http://www.movimientos.org/dhplural/foro-racismo/noticias/show_text.php3?key=96).

A ideia básica desse texto é discutir o racismo como um mecanismo ideológico que legitima desigualdades sociais, culturais e de acesso ao poder. É retirar o tema do racismo do “comportamento individual” apenas e tão somente e discuti-lo na perspectiva das estruturas sociais de poder. Naquele momento, o neoliberalismo radicalizava a exclusão e a concentração de renda, razão pela qual as formas mais cruéis de racismo apareciam no cenário político – como a ideologia nazista em países europeus.
Dessa forma, o enfrentamento do racismo tem uma natureza política. E, aí, entram aspectos importantes que precisam ser refletidos pelos movimentos sociais na sua atuação.

Primeiro:O racismo como ideologia reproduz e consolida estruturas sociais de poder desigual e de concentração de renda. Dessa forma, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária passa, necessariamente, pelo enfrentamento do racismo.

Segundo:O racismo cria privilégios de caráter racial, em maior ou menor grau, que beneficiam sujeitos mesmo entre classes sociais equivalentes. Assim, a vigilância antirracista tem de ser permanente, e não “seletiva” no sentido de “perdoar” eventuais manifestações racistas porque elas acontecem dentro de segmentos sociais que lutam por um mesmo ideal.

Terceiro:A luta contra o racismo necessita de uma ampliação do protagonismo das lideranças negras nos espaços de visibilidade pública dos movimentos sociais e organizações partidárias.
E, finalmente, o quarto aspecto: É preciso que a luta contra o racismo incorpore elementos importantes para a afirmação dos afrodescendentes como portadores de valores simbólicos próprios. A defesa das manifestações culturais de matriz africana não pode ser feita de forma meramente instrumental e até demagógica: deve ser parte efetiva de um projeto de transformação radical do País. 

sábado, 30 de junho de 2012

Um relampejo na memória social latino-americana


Em cartaz no Brasil, o filme “Violeta se fue a los cielos” debruça-se sobre a trajetória da artista chilena Violeta Parra

Deni Ireneu Alfaro Rubbo no BRASIL DE FATO

Representar avatares de personagens históricos, ainda mais aqueles de vida e obra carregadas de explosão e tortuosidade, na tela do cinema sempre trará incontornáveis riscos. Aplausos, vaias. Ainda mais quando o campo social contemporâneo está completamente dominado pela cultura da imagem e do visual.  Por exemplo, em Bird (1987), de Clint Eastwood, que procura dar luz e imagem ao percurso rebelde do músico Charlie Parker, a preocupação parece ter se centrado mais na reconstituição e recuperação estética dos lugares e objetos da época, expressando, no fim das contas, uma repetição do que é meramente representado, contemplação resignada, ou melhor – para ficarmos na expressão do crítico marxista Fredric Jameson –, um “pastiche nostálgico”, típico de uma época sedenta pelo espetáculo da estética.
Mas talvez seja exatamente o conteúdo do perigo dessa empreitada, da possibilidade da experiência vivida do contrassenso, que instigue ainda alguns (poucos) autores à sua realização. Porque apresentar e trazer à tona qualquer trajetória herética de um aventureiro(a), no sentido amplo e positivo da palavra, é também rememorar e sacudir o pensamento e a sociedade de determinada época. Assim, abrem-se fendas, bifurcações que buscam (re)colocar utopias e projetos da memória social coletiva e atualizá-la, transformando cinzas em fogo. Trata-se de uma preocupação, a um só tempo, que envolve a dimensão estética e política, forma e conteúdo.

“Violeta se fue a los cielos”, de Andre Wood (diretor do filme Machuca), em cartaz no Brasil, vem estimular esse terreno debruçando-se sobre a trajetória de Violeta Parra, uma querida personagem ainda pouco difundida no Brasil. Mulher. Chilena. Latino-americana. Mãe. Poetisa. Comunista. Índia. Pobre. Rebelde. Violeta nasce em 1917, no mês da revolução de Outubro. As marcas que leva no rosto a vida inteira são frutos deixados pela varíola contagiada durante a infância, que nutre para sempre insegurança com sua beleza. Vestia-se com a mesma simplicidade de uma camponesa, conservando os cabelos compridos e quase despenteados, em qualquer lugar que estivesse. Fez arte do bordado, da pintura, da cerâmica e, sobretudo, cantou: “a criação é um pássaro sem plano de voo que nunca vai chegar em linha reta”. Nas décadas de 1950 e 1960, sua criação barroca ecoou, continentalmente e universalmente, em meio a gerações vencidas que entoaram seu grito em diversas contestações nos países em que triunfava o partido dos vencedores provisórios, tanto em regimes de terror burocrático quanto em regimes de acumulação capitalista fordista.

Andarilha, como Che Guevara, Violeta viajou para muitas regiões, sempre junto de seus filhos, buscando e coletando a riqueza da música folclórica chilena e latino-americana, parte de extrema sensibilidade do filme de Wood. Certamente, foi pioneira em sua busca por uma música de raiz genuinamente popular, semelhante a muitos sambistas no Brasil. Considerava pertencer à linha musical da tradição camponesa, cantava sem artifícios, rusticamente, e quando sua doce voz se entrecruzava com os dedilhados no violão, como as mãos que se juntam de casais na primeira vez, parecia brotar da terra como um vulcão. Seguindo a estirpe dos românticos, amou loucamente e, por isso mesmo, jamais seus relacionamentos tiveram um curso sereno. Seu suicídio não foi exclusivamente amoroso, mas também por ter visto a dificuldade da universalização de uma cultura milenar relegada (“o mundo é maior do que eu imaginava”, diz à sua filha) ao passado em nome da técnica e do progresso que jamais evitaram os grandes desastres na periferia do capitalismo.
É preciso dizer, por fim, que o filme também contém suas fragilidades. As tensões entre vida privada e contexto político e social que vivia o país chileno, sem contar as mutações do mundo da Guerra Fria, são excessivamente suavizadas. Como se fossem secundários os cruzamentos dos ritmos sociais e culturais regionais e mundiais que eivavam à época, e como se isso não tivesse significado na formação da visão de mundo da folclorista chilena. É imperativo, no entanto, juntar os pedaços – ou os cacos, como preferem alguns – que fizeram sua materialização. É difícil também entender como o filme conseguiu simplesmente ignorar personagens que tiveram uma aproximação – inclusive pessoal – tão íntima com Parra como, por exemplo, o músico e diretor de teatro Victor Jara, assassinado pela contrarrevolução chilena, e o poeta Pablo Neruda.

Nesses casos, contudo, as músicas e os poemas sempre parecem salvar qualquer dificuldade que o filme supostamente apresenta. Talvez seja aquele paradoxal caso, mas não tão raro, de desencontro entre ritmo da protagonista e do filme – evidentemente, com a primazia do primeiro em relação ao segundo. Amamos Violeta, mas titubeamos se temos o mesmo sentimento apaixonado sobre o filme.
Em todo caso, o expectador brasileiro terá a oportunidade de conhecer essa artista tão autêntica e multifacetada, tão perigosa quanto uma guerrilheira. Para mais do que nunca, costurar, cantar e lutar pela radical diversidade na radical unidade latino-americana dos subalternos, nos milhares de “notas de pé de página”, como poderia dizer o escritor argentino Rodolfo Walsh, de ontem e hoje, dos sem-teto, dos sem-terra, dos camponeses, dos indígenas, dos operários, enfim, do conjunto heterogêneo da classe trabalhadora. Gracias Violeta. 

Deni Ireneu Alfaro Rubbo é cientista social.

Fala-se em nome dos pequenos agricultores, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros'

 Gabriel Brito, da Redação-Colaborou Valéria Nader   





Cada vez mais, os grandes debates políticos e projetos de infraestrutura são cercados pelas questões ambientais, levantando posturas apaixonadas e açodadas, mas nem sempre respaldadas por alguma profundidade argumentativa e conceitual. Tal vazio verificou-se novamente com a recém-encerrada Conferência Rio+20, promovida pela ONU em reedição da célebre Eco-92. Com a diferença de que o tema da preservação ambiental adquiriu centralidade muito maior nesses últimos 20 anos, sendo o Brasil palco de extremadas contradições na área.

Após aprovar uma nova versão do Código Florestal, do agrado dos ruralistas e bombardeado por todas as vertentes do ambientalismo, a presidente Dilma Rousseff fez todo o esforço possível para angariar ao país uma imagem vanguardista de responsabilidade ambiental. No entanto, na análise de José Juliano de Carvalho Filho, entrevistado pelo Correio da Cidadania, tal visão simplesmente “não se aplica à realidade dos fatos da macroeconomia brasileira”.

Para o professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), todas as medidas do governo em questão no campo vêm no sentido de prejudicar a preservação ambiental, além de favorecer a concentração de terras. “Fala-se em nome dos pequenos agricultores, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e permite-se o avanço das monoculturas”, critica, deixando claro que o mesmo vale para outras decisões, como as MPs 422 e 458, também em benefício do agronegócio e em detrimento do meio ambiente e da justiça fundiária.

Para além das discussões nacionais, Juliano desacredita de cima a baixo os novos conceitos de responsabilidade ambiental que o capitalismo tentar erigir e dos quais já se apropria. “Não sei se defino ‘economia verde’ como camuflagem, enganação, talvez falte um termo elegante. É preciso uma ruptura com a forma capitalista, principalmente o capitalismo financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar uma ‘economia verde’. Essas conferências servem como um espaço pra discutir, aumentar a conscientização, mas o fato é que os Brics e os países ricos não se comprometeram em nada. Não se trata de ver quem é de direita ou esquerda, a coisa é transversal, todos adotaram esse modelo macroeconômico”, resume.

A entrevista completa pode ser conferida a seguir.

Correio da Cidadania: Como o senhor avalia o novo Código Florestal aprovado no Congresso e o processo político que conduziu a este novo Código?

José Juliano de Carvalho Filho: Acho que segue aquilo que sempre acontece na nossa organização histórica, desde a escravidão. Um código que criou necessidades. Quem criou tais necessidades não foi o país, foram os ruralistas. O processo, em minha opinião, é uma história antiga, de duas vertentes, a do latifúndio e a ambiental. A tática foi criar um clima de insatisfação com o Código Florestal que vigorava e depois colocar o bode na sala. A partir disso, com o bode na sala (as propostas ruralistas), mal cheiroso, se discutiu o Código e suas alterações.

Dessa forma, foi um avanço muito grande em prol dos interesses dos chamados ruralistas – digo “chamados” porque deve ser a classe mais poderosa do país. Vai implicar em impactos muito negativos. Ainda estou tentando estudar se a MP editada pelo governo melhora ou piora a situação, mas o fato é que, comparando com o código anterior, esse é muito pior, pois permite mais derrubada de reservas, transformação legal de propriedades enormes em várias propriedades pequenas, consolidação de áreas agrícolas, além de outras contravenções do campo, como a anistia a crimes ambientais, contando também com uma justiça patrimonialista a serviço do latifúndio. São contraventores do campo, não querem recompor área, desmataram, grilaram.

O fato é que, no contexto geral, aumentou-se a vulnerabilidade da conservação ambiental brasileira, com claras vantagens aos ruralistas.

Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos que ressaltam que o Código supostamente protege os pequenos agricultores, o que se daria, por exemplo, pela não exigência de recomposição da reserva pra propriedades de até 4 módulos fiscais?

José Juliano de Carvalho Filho: É o agravante: discursar em favor dos pequenos. É idêntico ao que aconteceu no programa Terra Legal, por exemplo. Fala-se em nome dos pequenos, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e permite-se o avanço das monoculturas.

Em relação às populações tradicionais, continuarão como pobres brasileiros. Em linhas gerais é isso, com consonância muito grande com as medidas que passaram a ser editadas desde o fim do primeiro mandato de Lula, tais como as MPs que legalizaram grilagem e titulação de terras, dificultando algumas lutas indígenas pela terra, por exemplo. Não podemos esquecer de vários casos, como o dos guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul, em que se chegou a uma situação de barbárie total, com assassinatos, suicídios, esquartejamentos de índios, o que temos visto fartamente no noticiário.

É tudo muito consistente da parte deles, pois mexem com todas as regras passíveis de serem burladas. É o mesmo discurso da Transposição das águas do São Francisco, do Terra Legal etc. Faço trabalhos no campo desde os anos 70, já cansei de presenciar casos de políticas para o campo anunciadas como benéficas ao pequeno agricultor e que na verdade os prejudicava. Quando se dava crédito para pequenos em alguma área, eram as grandes empresas quem pegavam, de fato, os créditos subsidiados. A história se repete, com as mesmas relações sociais. Agora é a mesma coisa com o Código Florestal, chegando a um ótimo resultado em favor dos ruralistas. O país pagará tanto em danos sociais como ambientais.

Correio da Cidadania: Ou seja, têm sido, realmente, muitas e notórias as MPs que, nos últimos anos, beneficiam o latifúndio e os ruralistas, em detrimento da pequena produção e da agricultura familiar. E os governos Lula e Dilma seguem a tendência, certo?

José Juliano de Carvalho Filho: Sem dúvidas. Desde o final do primeiro governo Lula. A partir disso, editaram-se as MPs 422, 458 e tivemos o Terra Legal.

São duas questões a respeito da política agrária: se pegarmos todos os documentos de política agrária do PT, à época da primeira campanha vitoriosa, e também da segunda, tudo que define reforma agrária, ou seja, mexe com a estrutura agrária, como a revisão dos índices de produtividade, foi sumindo. Não ficou nada, de modo que não há compromisso do governo com a reforma agrária.

Paralelamente, podemos elencar mudanças nas políticas agrárias, com medidas que invariavelmente beneficiam o agronegócio. É uma mistura de capital fundiário de pessoas que investem no Brasil em parceria com “brasileiros” (entre aspas, porque o capital e seus agentes não têm pátria), avançando cada vez mais sobre as terras. A cana tem capital externo, o petróleo tem, e essa é a regra geral em nossas commodities. Como exemplo, no estado de São Paulo, os índices de Gini eram razoáveis, mas agora o estado é dominado pela cana, que vai crescendo sem parar, e o índice de Gini só se deteriora.

De um lado, uma série de medidas que favorecem o agronegócio e, por outro, uma série de medidas que dificultam a vida dos pequenos agricultores. Agora vemos projetos de políticas que visam criar obstáculos para a titulação e homologação de terras indígenas e quilombolas. De vez em quando se faz um mise en scène, mas os fatos são esses.

Com as alianças que fez pra governar, vemos que o governo acabou refém dessa classe ultraconservadora e nociva.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, o governo Dilma já deixou clara sua política para o campo? Ela pode vir a beneficiar em algum momento a agricultura familiar e a reforma agrária?

José Juliano de Carvalho Filho: Acho que ainda não está claro. Mas, novamente, pegando os documentos da campanha presidencial, em determinado trecho vemos que tanto Serra, candidato do PSBD, quanto Dilma, candidata do PT, com suas coligações e tal, ao apresentarem seus programas no TSE mostraram as semelhanças na “política” agrária. Assim como na Carta aos Brasileiros, do Lula, neste caso os dois programas deixaram claro, além dos discursos e convenções, que ninguém tinha compromisso com a reforma agrária. O documento do programa petista terminou apenas com generalidades.

No máximo, a Dilma poderia fazer algo como o Lula, ou seja, algumas pequenas medidas em favor dos pequenos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Entretanto, fazendo políticas que beneficiam acima de tudo o agronegócio em termos estruturais. O problema é que não se coloca a questão da propriedade como origem da pobreza e desigualdade social, o que é uma “aparente” contradição do programa petista.

Os ministérios da Agricultura e o do Desenvolvimento Agrário fazem política à parte um do outro. Aquilo que se entende como pequena política ficou subalterna; negros, pobres, índios, sem terras, podem fazer o que quiserem desde que não incomodem. Se começam a incomodar a grande política, isto é, aquilo que gira em torno da macroeconomia...

Não tenho esperança de grandes mudanças no mandato da Dilma. Os programas do PT têm a tendência de superconcentrar as terras e deixar avançar as grandes monoculturas de exportação. Já as MPs de benefício ao agronegócio tornam o governo refém de suas contradições políticas, o que redunda em políticas pífias para a reforma agrária. O que funciona mesmo é essa sustentação macroeconômica encampada pelo governo e suas metas. Temos uma especialização e reprimarização retrógradas, como diz o professor Reinaldo Gonçalves, opinião da qual compartilho.

Correio da Cidadania: Como o senhor situa as intervenções de Dilma, que não seguiu a campanha maciça de setores mais progressistas pelo veto ao novo projeto de Código Florestal, sancionando-o com 12 vetos e 32 emendas?

José Juliano de Carvalho Filho: É difícil responder com convicção, porque o melhor seria ter em mãos todas as versões: o Código Florestal anterior, de 1965, o novo, e aquelas versões que passaram e foram alteradas pela Câmara e Senado, comparando-as ponto a ponto e tendo uma avaliação mais concreta. É preciso ter cuidado com as matas ciliares, propriedades familiares, as águas... Tudo isso tem sido feito em prejuízo do meio ambiente, a exemplo também da questão das áreas consolidadas. É preciso ver tudo detalhadamente pra saber o que pode depois ser revertido na justiça. Mais que isso, não posso dizer ainda.

Correio da Cidadania: Como o senhor tem visto a atuação dos movimentos sociais, aqueles ligados ao campo em particular, bem como sua relação com o atual governo?

José Juliano de Carvalho Filho: Sou a favor dos movimentos, de modo que toda crítica que faço é no sentido construtivo, pois é neles que vejo esperança de mudanças reais na sociedade. Mas estão tímidos frente ao governo. Claro que fazem suas reivindicações por aí, mas estão tímidos. Reforma agrária e justiça no campo sempre foram conquistas, não concessões, mas as pressões por cooptação são muito fortes. E os movimentos deveriam estar mais agressivos.

Correio da Cidadania: O que pensa do papel jogado pelo Brasil, e da imagem que o país tentou vender de si, na conferência Rio+20? A propaganda oficial de desenvolvimento sustentável, com a exploração de “energia limpa”, condiz com nossa realidade?

José Juliano de Carvalho Filho: O papel do Brasil é uma grande contradição. Falando do documento final, de acordo com o próprio secretário da ONU, podemos falar que foi fraco. Não há medidas imediatas, de modo que é um fracasso maior ainda que a Eco-92, que pelo menos tinha propostas. O conceito de sustentabilidade não se aplica à realidade do nosso país e, na verdade, desde o documento que o criou, em 1987, não existiu de fato. Os povos do campo estão sendo prejudicados por essas medidas de dita sustentabilidade. Foi uma conferência muito fraca, do G-7 só a França esteve realmente presente, de modo que não saiu nada de muito importante desse encontro. Fica uma mistura de posições, ninguém sabe direito o que é isso (desenvolvimento sustentável), e todo mundo usa o conceito.

Correio da Cidadania: Falando em conceito, o que o senhor teria a dizer sobre a “economia verde”, a grande novidade no vocabulário do capitalismo global?

José Juliano de Carvalho Filho: O mercado se apropriou dessa história e começou a falar em “verde”. Um exemplo de agora, pequeno, mas emblemático do que acontece, é essa história das sacolinhas de supermercado. São eles, os supermercados, que vão mudar a cultura nacional sobre preservação ambiental? Na verdade, apenas defendem seu interesse econômico, que também está envolvido, uma vez que forneciam as sacolinhas gratuitamente aos seus clientes. A imagem que o Brasil deixou foi um pouco superior pela falta de representação dos outros países. Mas os resultados são fracos. Quais são os resultados e compromissos? Nenhuns.

Não sei se defino “economia verde” como camuflagem, enganação, talvez falte um termo elegante. Cada um entende de um jeito e passa a imagem de estar fazendo algo pela preservação. É o capitalismo buscando novas formas de se reproduzir. Com o atual momento, a Europa em sua crise não resolvida, além da concentração de renda de alguns países, é uma roupagem nova.

Não vejo esperanças de economia realmente verde, não vejo compromissos realmente sérios e um freio na acumulação capitalista. São questões políticas importantes e diretamente relacionadas. É preciso uma ruptura com a forma capitalista, principalmente o capitalismo financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar uma “economia verde”.

Outro exemplo é esse mercado de carbono, que não faz sentido, seria muito melhor taxar as empresas poluidoras. Uma empresa poluidora compra créditos de Moçambique, polui por lá, contamina grande parte do meio ambiente local, das águas, e ficamos assim. Acontece aqui no Brasil também.

Essas farsas de mercado não vão deixar de seguir a lógica do capital. Daqui a pouco vão comercializar o ar que o teu neto vai respirar no futuro, vai tudo pro mercado. Dessa forma, tal como já vemos acontecer, teremos a monopolização das águas e bens naturais mais essenciais. Empresas como Nestlé e Coca Cola estão adquirindo territórios que lhes garantem abastecimento de água, o que na verdade é uma apropriação da natureza. A Monsanto é outro exemplo dessa monopolização, como se vê com as sementes, enquanto as propostas e denúncias da Via Campesina, ainda que sendo as melhores para os povos, são ignoradas.

Lendo os cientistas (aqueles que merecem consideração), vemos que podemos atingir um desequilíbrio mundial sem retorno, com falta de bens naturais, aumentando ainda mais a pobreza, a barbárie, as disputas, impedindo os agricultores de terem sementes, tendo que se suprir de Monsantos e afins... Tais conferências e governos beneficiam esse modelo, dando pouca esperança para a humanidade.

Servem como um espaço pra discutir, aumentar a conscientização, mas o fato é que os Brics e os países ricos não se comprometeram em nada. Não se trata de ver quem é de direita ou esquerda, a coisa é transversal, todos adotaram esse modelo. Usam seus argumentos de sustentabilidade e o mundo se encaminha para mais desastres, prejudicando as populações mais pobres, um dos resultados mais diretos desse “desenvolvimento sustentável”. Os resultados pífios, mornos, da reunião não mudarão isso. E o modelo macroeconômico do país beneficia tal lógica destrutiva. Elogiei algumas medidas do governo Lula, mas elas vêm acompanhadas dessas histórias, do aumento da força da monocultura e da concentração de terras. Os camponeses saem do campo, vão pra cidade e vemos se agravarem as questões agrárias, sociais e ambientais.

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania; Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.

Fundamentalismo: muçulmano, judeu ou cristão?

Quem é o fundamentalista?


 
Definitivamente a mídia continua tratando seus leitores como idiotas.
Insiste em criar slogans usurpadores para catequizar os incautos.
De um lado temos o Ocidente Cristão “tolerante e democrático”.
De outro o Oriente muçulmano  “intolerante e fundamentalista”.
O Ocidente é representado por Estados Unidos e Europa.
O Oriente por Iraque, Líbia e Afeganistão ( não por coincidência nações invadidas, ocupadas e saqueadas”).
E a estes três últimos querem acrescentar a Síria e Iran e em quem mais eles estiverem cobiçando.
Enfim, de um lado temos os “tolerantes cristãos” e de outro os “fundamentalistas muçulmanos”.
Mas espera aí.
O Iraque de Saddam Hussein tinha como vice-presidente um cristão.
Em que país cristão há algum vice-presidente muçulmano?
No Afeganistão dos Talibãs  havia uma Mesquita de Maria.
Alguém conhece alguma igreja ou templo no Ocidente democrático de nome Muhamad?
Isso, claro, para ficar na superfície do texto.
Alguém pode dizer quando o Iraque, a Líbia, o Afeganistão, a Síria ou Iran invadiram o Ocidente Cristão?
Não preciso perguntar quantas vezes o Ocidente cristão invadiu aqueles países.
Qualquer leitor minimamente ilustrado sabe  que o Ocidente Cristão fez e ( e continua fazendo) de sua razão a invasão, ocupação e saque de nações.
E não precisa ir longe.
A nossa maltratada America é um excelente exemplo.
Claro também que posso citar a África e a Ásia.
Agora falemos de Israel que, segundo seus psicopatas dirigentes, estaria ameaçado pelo muçulmano Iran.
Porque um dirigente iraniano “teria ameaçado os judeus de extinção”.
O interessante é que no Iran vivem mais de 35 mil judeus que vivem de acordo com os preceitos da religião judaica.
E jamais foram perseguidos ou maltratados.
Mas falemos de Israel, lamentavelmente, um posto militar euro-ocidental a serviço dos Estados Unidos.
Como os “judeus” foram parar ali?
Fugindo dos cristãos ocidentais.
Que jamais cessaram de persegui-los.
Basta consultar menos a mídia e mais a História para verificar essa verdade.
Foram os ocidentais cristãos que perseguiram  e maltrataram os judeus durante séculos.
Ao contrario dos muçulmanos, que sempre os abrigaram.
A lista é longa, longuíssima, mas esse é um simples blog e não uma defesa de tese.
Mas se você tiver algum tempo consulte a História e veja como Ocidente Cristão manipula vergonhosamente os fatos.
E veja quem é o fundamentalista.
E como a mídia trata os seus leitores como idiotas.
Depende apenas de você.
E abaixo você ouve Moshe Habusha, acompanhado por Ariel Cohen, cantando em árabe Ya Jarat Al Wadi, do egípcio Mohamad Abel-Wahab. Ressalte-se que Moshe possui um conjunto musical especializado em canções clássicas árabes. Muitas delas ele verteu para o hebraico. Eu o considero um dos melhores interpretes de musica árabe em todo o Oriente Médio.
 
 

A grande mídia ataca aprovação de 10% para educação

No blog do LUIZ ARAUJO
 
Os editoriais do Estado de São Paulo e da Folha de São Paulo do dia de hoje expressam, de maneira límpida e clara, o pensamento do governo e do grande empresariado sobre a aprovação pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados de um percentual de 10% de investimento direto em educação ao final dos próximos dez anos.


Quais são os principais argumentos que a grande mídia, o governo e o grande empresariado enumeram nos dois editoriais:

1. A decisão da Comissão Especial representou um gesto eleitoreiro (“já comas atenções voltadas para a campanha eleitoral”);

2. Foi fruto da pressão das corporações da educação (de “movimentos sociais, ONGs e entidades de estudantes e de professores” ou de “de entidades ligadas ao ensino”);

3. Foi um gesto demagógico e de irresponsabilidade com as finanças nacionais (“Mais uma vez populismo, demagogia e chantagem política dão os braços no Legislativo para maquinar propostas que, sob a aparência de soluções generosas para os males do país, constituem gritante irresponsabilidade financeira” ou “sob o pretexto de valorizar o

magistério público e triplicar a oferta de matrículas da educação

profissional e técnica de nível médio”);

4. Os gastos atuais da educação já se encontram em patamar aceitável e semelhante à de outros países desenvolvidos (“o que está na média dos países desenvolvidos” ou “um percentual compatível com os padrões internacionais”);

5. A educação não precisa de mais recursos e sim gastar os existentes de forma mais responsável (“O problema da educação brasileira, contudo, não é de escassez de

recursos. É, sim, de gestão perdulária”)

6. O agravamento da crise econômica mundial indica que não se deveria apontar para aumentos de investimentos nas áreas sociais (“Como disse a presidente Dilma Rousseff, não é hora nem de promover aventuras fiscais nem de brincar à beira do precipício” ou “Um Congresso mais sério daria sua contribuição para melhorar, e não deteriorar, o quadro econômico”);

7. Certamente o Senado Federal será mais responsável que seus pares da Câmara dos Deputados (“No Senado, o Planalto espera que o projeto seja votado após as eleições, quando os senadores poderão agir mais responsavelmente do que os deputados”);

Não reconheço nos argumentos nada que não tenha sido dito e escrito por diferentes ministros da Educação e da Fazenda dos últimos governos (de FHC, passando por Lula e agora Dilma), mas cabe debatê-los de forma incisiva mais uma vez (e quantas vezes forem necessárias fazê-lo!):

1. As eleições sempre influenciam as decisões do legislativo. É justamente nesta época que os parlamentares precisam medir se seus votos implicarão em prejuízos eleitorais. Considero isso muito positivo, pois tal atitude de ouvir os anseios dos seus eleitores deveria ser seguida durante todo o mandato e não somente nos períodos eleitorais. É direito dos eleitores, dentre eles os milhões que possuem filhos em escolas públicas ou que não conseguiram exercitar este direito de forma plena, cobrar dos seus representantes que votem em propostas que ampliem e/ou consolidem direitos inscritos na Constituição, dentre eles o direito à educação de qualidade para todos e em todos os níveis;

2. Hás um reconhecimento importante feito pelos editoriais: a votação foi fruto da pressão da sociedade civil organizada. É óbvio que o olhar do empresariado (que financia a grande mídia) é que organizações não governamentais, entidades sindicais e estudantis são empecilhos ao desenvolvimento do país, leia-se desenvolvimento pleno do capital sem entraves que limitem a sua “desejável” taxa de lucros. Mesmo de maneira preconceituosa e conservadora os editoriais conseguiram captar uma verdade importante: com luta e organização a sociedade conquista direitos!;

3. Realmente os movimentos sociais se mobilizaram guiados pelo que a mídia chama de “pretexto”. Queremos a garantia plena do direito a educação. Isso significa mais vagas nas escolas (em todas as etapas), crescimento público da oferta de vagas, elevação do padrão de qualidade e assim por diante;

4. E, obviamente, que o centro das críticas é sobre a necessária responsabilidade fiscal e de como devemos enfrentar os efeitos da crise econômica mundial. Aqui fica clara uma concordância do empresariado e do governo: ambos advogam redução de gastos públicos como um bom remédio para equilibrar as finanças nacionais. Não há disposição para cortar recursos destinados aos bancos, especialmente os destinados a pagamentos de amortização, juros e rolagem da dívida pública, que é a principal fonte da crise mundial. Advogam a receita que está destruindo os direitos sociais gregos, portugueses, espanhóis e italianos. Todos que se levantarem contra esta política de jogar nas costas dos trabalhadores o ônus do pagamento de uma crise provocada pelo sistema financeiro serão tratados como “irresponsáveis”, que “querem jogar o país no precipício”. Eles jogaram o mundo no precipício e querem que nós paguemos a conta do resgate;

5. Não é verdade que o dinheiro aplicado em educação em nosso país seja suficiente, mesmo que parte destes recursos seja desviada pela corrupção e pela má gestão. No Nordeste, por exemplo, os governos municipais dispuseram de apenas R$ 1800,00 por aluno ano para garantir funcionamento de suas creches. Sem corrupção renderia um pouco mais estes recursos, mas mesmo assim seriam insuficientes. E temos milhões de brasileiros fora da escola, em todos os níveis e etapas. A campanha Nacional pelo Direito à Educação produziu Nota Técnica que demonstra a necessidade de pelo menos 10% para cumprir as metas necessárias à melhoria da educação brasileira;

6. Não é verdade que nossos investimentos estejam compatíveis com os realizados por outros países desenvolvidos. É necessário analisar duas variáveis: o quanto estes países desenvolvidos aplicaram em educação quando tinham desafios educacionais do tamanho dos que temos hoje no Brasil e qual o universo de educandos que precisam atender proporcionalmente ao PIB de cada país. Quem quiser conhecer melhor os limites destas comparações pode baixar a apresentação feita pelo professor Nelson Cardoso (UFG) em audiência pública da Comissão Especial da Câmara;

7. A esperança do governo, do empresariado e da mídia é que, passadas as eleições, os parlamentares voltem a se comportar de “maneira responsável”, ou seja, que no Senado Federal os nossos representantes ouçam a “voz do mercado” ou a “voz do governo” e tampem os ouvidos para “a voz do povo”. Certamente a sociedade civil organizada trabalhará para que as conquistas arrancadas pela mobilização na Câmara sejam consolidadas e novas conquistas sejam alcançadas.

Os editoriais são uma demonstração nítida de como será travada na próxima etapa de tramitação do Plano Nacional de Educação.

Vivendo no fim dos tempos: o apocalipse do capital



Em seu novo livro, "Vivendo no fim dos tempos" (Boitempo Editorial), Slavoj Zizek defende que o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final.


Ele identifica os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.

Zizek apresenta sua obra como "parte da luta contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta".

Não deveria haver mais nenhuma dúvida: o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final. Slavoj Žižek identifica neste livro os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais. E pergunta: se o fim do capitalismo parece para muitos o fim do mundo, como é possível para a sociedade ocidental enfrentar o fim dos tempos?

Para explicar porque estaríamos tentando desesperadamente evitar essa verdade, mesmo que os sinais da “grande desordem sob o céu” sejam abundantes em todos os campos, Žižek recorre a um guia inesperado: o famoso esquema de cinco estágios da perda pessoal catastrófica (doença terminal, desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) proposto pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, cuja teoria enfatiza também que esses estágios não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes.

De acordo com Žižek, podemos distinguir os mesmos cinco padrões no modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. “A primeira reação é a negação ideológica de qualquer ‘desordem sob o céu’; a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (‘Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes...’); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento; finalmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar. Ou, como Mao Tsé-Tung coloca: ‘Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente’”.

Os cinco capítulos se referem a essas cinco posturas.

O capítulo 1, “Negação”, analisa os modos predominantes de obscurecimento ideológico, desde os últimos campeões de bilheteria de Hollywood até o falso apocaliptismo (o obscurantismo da Nova Era, por exemplo).

O capítulo 2, “Raiva”, examina os violentos protestos contra o sistema global, em especial a ascensão do fundamentalismo religioso.

O capítulo 3, “Barganha”, trata da crítica da economia política, com um apelo à renovação desse ingrediente fundamental da teoria marxista.

O capítulo 4, “Depressão”, descreve o impacto do colapso vindouro, principalmente em seus aspectos menos conhecidos, como o surgimento de novas formas de patologia subjetiva.

E, por fim, o capítulo 5, “Aceitação”, distingue os sinais do surgimento da subjetividade emancipatória e procura os germes de uma cultura comunista em suas diversas formas, inclusive nas utopias literárias e outras.

Žižek é otimista quanto ao que pode surgir desse processo de emancipação e apresenta sua obra como parte da luta contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta. Para ele, engajar-se nessa luta significa endossar a fórmula de Alain Badiou, para quem mais vale correr o risco e engajar-se num Evento-Verdade, mesmo que essa fidelidade termine em catástrofe, do que vegetar na sobrevivência hedonista-utilitária. Rejeita, assim, a ideologia liberal da vitimação, que leva a política a renunciar a todos os projetos positivos e buscar a opção menos pior.

Trecho do livro

“Essa virada na direção do entusiasmo emancipatório só acontece quando a verdade traumática não só é aceita de maneira distanciada, como também vivida por inteiro: ‘A verdade tem de ser vivida, e não ensinada. Prepara-te para a batalha!’. Como os famosos versos de Rilke (“Pois não há lugar que não te veja. Deves mudar tua vida”), esse trecho de O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse, só pode parecer um estranho non sequitur: se a Coisa me olha de todos os lados, por que isso me obriga a mudar? Por que não uma experiência mística despersonalizada, em que ‘saio de mim’ e me identifico com o olhar do outro? E, do mesmo modo, se é preciso viver a verdade, por que isso envolve luta? Por que não uma experiência íntima de meditação?

Porque o estado ‘espontâneo’ da vida cotidiana é uma mentira vivida, de modo que é necessária uma luta contínua para escapar dessa mentira. O ponto de partida desse processo é nos apavorarmos com nós mesmos.

Quando analisou o atraso da Alemanha em sua obra de juventude Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx fez uma observação sobre o vínculo entre vergonha, terror e coragem, raramente notada, mas fundamental:

É preciso tornar a pressão efetiva ainda maior, acrescentando a ela a consciência da pressão, e tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública. É preciso retratar cada esfera da sociedade alemã como a partie honteuse [parte vergonhosa] da sociedade alemã, forçar essas relações petrificadas a dançar, entoando a elas sua própria melodia! É preciso ensinar o povo a se aterrorizar diante de si mesmo, a fim de nele incutir coragem.”

Sobre o autor

Slavoj Žižek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós‑modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck de Londres.

Vivendo no fim dos tempos é o seu sétimo livro traduzido pela Boitempo. Dele, a editora também publicou Bem‑vindo ao deserto do Real!, em 2003, Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917), em 2005, A visão em paralaxe, em 2008, Lacrimae Rerum, em 2009, Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa, os dois últimos em 2011.

Ficha técnica
Título: Vivendo no fim dos tempos
Título original: Living in the end times
Autor: Slavoj Žižek
Tradução: Maria Beatriz de Medina
Orelha: Emir Sader
Páginas: 368
Editora: Boitempo

Fonte: Redação Carta Maior

Um Congresso que debate “cura para gays”: Mais um capítulo da teocracia brasileira


Procurei bastante por aí, mas não encontrei. Até onde pude averiguar, não há precedente moderno, em nação democrática, de um Congresso Nacional prestando-se ao ridículo papel de discutir “cura para homossexuais”. Você encontrará, claro, deputados individuais dando declarações que sugerem “cura para gays”, como é o caso do homofóbico costarriquenho Juan Orozco. Mas não consegui achar, em casa legislativa de país democrático, um vexame comparável ao que se prestou a Câmara dos Deputados brasileira nesta quinta-feira. A Câmara se reuniu para um “debate”, uma audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família, acerca de um pedaço de lixo, em forma de Projeto de Decreto Legislativo, defecado por João Campos, evangélico tucano de Goiás e homofóbico-mor do Congresso. O projeto se arroga o direito de sustar uma resolução do Conselho Federal de Psicologia que, com muito atraso, em 1999, definiu que os profissionais da área não patologizarão práticas homoeróticas e não colaborarão com serviços e eventos que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Como notou Antonio Luiz Costa, da Carta Capital, mais esdrúxulo ainda é que o pseudo-debate, pasmem, foi convocado por um deputado do Partido Verde.

O estado de exceção em que vivemos se converteu em regra a tal ponto que uma monstruosidade dessas é discutida como se se tratasse de um debate razoável, com duas ou mais posições em comparável condição de reinvindicar a razão ou a verdade. O fato é noticiado como se não fosse absurdo. Votações online colocam as opções como se se tratasse de uma escolha entre termos simétricos, e não a justaposição entre uma posição consensualmente científica e um delírio de psicopatas fundamentalistas. No mundo realmente existente, claro, não há qualquer discussão, em nenhuma disciplina séria, sobre se a homossexualidade é ou não é doença, desvio, aberração ou anormalidade a ser curada. Num país em que se assassina um gay ou lésbica (ou cidadã[o] confundido[a] com gay ou lésbica) a cada 36 horas – lembrando sempre que esses números são brutalmente subrreportados –, aceitar um “debate” nesses termos já é, por definição, sujar as mãos de sangue.

É evidente que, no interior de uma sociedade homofóbica, a violência real e simbólica perpetrada contra gays e lésbicas produzirá sofrimento que, em maior ou menor grau, poderá ter consequências que se encaixam entre as tipicamente tratadas num consultório de psicólogo, psicanalista ou terapeuta. Também é evidente que, nesses casos, o que será tratado ou “curado” – e há toda uma discussão sobre o que essa palavra pode significar, seu clássico sendo o Análise Terminável e Interminável, de Freud – não será, jamais, o desejo, a afetividade ou a prática homoerótica em si, e sim a condição produzida no sujeito, seja lá ela qual for, a partir da violência homofóbica. A Resolução de 1999 do Conselho Federal de Psicologia simplesmente estabelece, como parâmetro ético inegociável para o exercício da profissão, o reconhecimento desse fato, em conformidade com resolução análoga da Organização Panamericana de Saúde.

Há que se atentar que a iniciativa homofóbica dos Deputados João Campos (PSDB-GO) e Roberto de Lucena (PV-SP) vem, toda ela, embrulhada no discurso da liberdade de expressão.  “Deixa a pessoa ter o direito de ser tratada”, diz a pseudo-psicóloga homofóbica Marisa Lobo, estrela do “debate” e convidada de Gleisi Hoffmann a eventos oficiais no Palácio do Planalto (enquanto a tropa de choque governista nas redes sociais inventa cada vez mais malabarismos para dizer que o governo não tem responsabilidade no surto de assassinatos homofóbicos). A baliza ética expressa na resolução do CFP e universalmente aceita entre profissionais de todas as psicoterapias – a saber, a de que homossexualidade não é doença a ser “tratada” – é apresentada por João Campos nos seguintes termos: “É como se o Conselho Federal de Psicologia considerasse o homossexual um ser menor, incapaz de autodeterminação”. No mundo realmente existente, claro, é o jovem gay de 15 anos de idade, e não a corja fundamentalista, que é morto a pauladas na rua. Mas os nossos Deputados acham que é o seu ódio que ainda está sendo cerceado em seu direito de expressão.

Alguns amigos acharam que minha ênfase, ao longo desta sexta-feira no Twitter, no ineditismo desse fato – um Congresso nacional discutindo o direito de se “curar” gays – era contraproducente. Discordo. É importante afirmar: barbárie como esta que está acontecendo no Brasil é raramente encontrada em sociedades democráticas modernas. O evento desta quinta-feira no Congresso é mais uma reiteração dessa barbárie. A única postura que cabe em relação a esse “debate” é denunciar sua própria existência.