sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Golpe: a CNTE está abandonando a defesa do reajuste do piso para favorecer o governo federal, governadores e prefeitos


*Josenildo Vieira de Mello
 
No apagar das luzes, no final de ano, a CNTE golpeia a luta pela aplicação do Piso do Magistério, isso depois de ter corretamente lutado há anos em sua defesa e conquistado por meio de sucessivas mobilizações o Piso Salarial dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública, assegurado no artigo 5º da Lei no 11.738/08, que estabelece:
Art. 5º - “O piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009”.  Parágrafo único. A atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei n11.494, de 20 de junho de 2007.”

A CNTE dá um passo atrás

Após este artigo ter gerado mais uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) de no 4.848, quando os governadores pedem a suspensão do critério do calculo atual, de forma retroativa e sugerem o INPC, como mecanismo do reajuste do piso, a CNTE, de forma conservadora e sem nenhum diálogo com a base das entidades fechou posição que vai contra a política de  valorização da categoria garantida através do artigo 5º da Lei 11.738/08, abrindo um precedente absurdo na luta histórica dos profissionais do magistério público da educação básica em defesa da valorização profissional, aumentando a dívida histórica que os governos têm para com o conjunto da categoria.
Em reunião com o Conselho Nacional de Entidades, no dia 19 de setembro de 2012, no Recife- PE, a CNTE aprovou uma proposta, no mínimo absurda pela posição política que ela representa, contrapondo ao artigo 5º da Lei, baseado no argumento da crise financeira que passam os municípios, os estados e a União, com dificuldades de manter a atual política de valorização da categoria e a grande possibilidade do cálculo passar a ser feito pelo INPC, de acordo com o Projeto de Lei nº 4.375/12, propondo assim, aplicação do valor do INPC + 50% do crescimento da receita agregado do FUNDEB, alegando que esta proposta supera todas as demais, como a do custo aluno ano ou a da variação do INPC, além de assegurar um ganho real permanente, mesmo na crise financeira, tendo ainda como preservar a capacidade financeira dos entes federados.
De que lado estão os dirigentes da CNTE e das entidades de base filiadas com esta tomada de posição, que vai contra todas as lutas e mobilizações dos últimos 30 anos de nossa categoria?
Como justificar para os profissionais do magistério a renuncia do avanço da Lei 11.738/08, no seu artigo 5º, em contraposição a esta postura que se alinha mais as reivindicações dos governadores e prefeitos, além de reduzir os gastos públicos com a educação?
A CNTE não buscou chamar uma discussão com a base dos profissionais do magistério nas suas entidades e já no dia 30/10/2012, em uma reunião de emergência com a UNDIME e Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, chegaram a um consenso em cima da posição da Confederação, que para Daniel Cara, Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, foi muito positiva: “um dos principais méritos da nossa proposta coletiva é que ela permitirá, entre 7 a 10 anos, que o piso do Magistério alcance, ao menos, um patamar equivalente ao salário mínimo do DIEESE, que calcula uma remuneração capaz de garantir todas as necessidades do consumo para viabilizar um padrão mínimo de qualidade de vida. E esse é um importante passo”. Pura desfaçatez!
Ora, se as metas 17 e 18 do Plano Nacional de Educação dizem que os profissionais do magistério da educação básica, devem ter uma valorização para equiparar seus salários ao rendimento médio dos demais profissionais com escolaridade equivalente (hoje está em torno de R$ 3.432,02), com essa nova proposta que é contrária a estas duas metas, em 07 a 10 anos, o Piso Salarial do Magistério ficará em torno de R$ 2.616,41 (dois mil, seiscentos e dezesseis reais e quarenta e um centavos), ou seja, provocará uma perda salarial de aproximadamente mil reais ao magistério em poucos anos. Se tomarmos como referência o cálculo do reajuste de 2013, que em vez de ser de 21.75%, que é a variação da média do custo aluno ano dos últimos dois anos, os reajustes passariam a ser de 12,71%, sendo 5,5% do INPC e 7,21% da média das receitas do FUNDEB, que em 2012 foi de 14,42%, claramente gerando um grande retrocesso no campo da valorização profissional e uma perda salarial inadmissível.
Esta proposta foi apresentada ao presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Marcos Maia (PT) no dia 31/10/2012 e que deverá receber ajustes finais para ser anunciada à Presidente Dilma, para que possa ser transformada em uma medida provisória, que tirará inclusive a eficácia a ADIN no 4.848 interposta pelos governadores. Ela teve o apoio da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), UNDIME (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e a CONSED (Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação), todos representantes patronais dos entes federados, além da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, uma organização não governamental que representa os mais variados interesses, principalmente dos grupos econômicos que financiam suas atividades e dos representantes da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, formada por representantes do Governo e da oposição e que em nada divergem da atual política de investimento de recursos públicos na educação.
A proposta da CNTE, que teve consenso de todos os demais que integram a Comissão de Educação encarregada de discutir os reajustes da categoria junto ao MEC, pegou a todos de surpresa. É uma política de conciliação entre as esferas da federação e os representantes dos trabalhadores da educação básica pública, o que para nós e entidades sindicais representativas deste segmento de trabalhadores e os próprios profissionais do magistério, não pode ser admitida. Trata-se de uma capitulação escancarada às políticas de ajustes fiscais impostas pela equipe econômica do Governo Dilma. Os professores e profissionais da educação não podem ser penalizados para supostamente  garantir aos governos sobras de recursos públicos, que com  certeza, irão ser canalizados para a corrupção ou desviados para finalidades obscuras, além de ajudar fazer o país atingir a meta do Superávit Fiscal Primário, encomendada pelos organismos financeiros internacionais, como o FMI .

Lutar e barrar esse retrocesso 

Esse famigerado acordo construído pela CNTE e seus “parceiros”, fará com que os governos das três esferas entrem com a “corda”, e nós trabalhadores na educação com o “pescoço”. Já tivemos grandes perdas salariais em 2009, 2010 e 2011, e por sinal estamos buscando nossos direitos na justiça, exatamente para assegurar os reajustes negados pelos governos, em especial o Governo Federal, o principal descumpridor da lei, que não assegurou o reajuste correto do Piso desde a sua implantação em 2008 conforme determina o artigo 5º da Lei 11.738/08, do qual agora a CNTE quer abrir mão, tentando desconstruir este direito já assegurado em Lei.
A CNTE precisa rever a sua posição e retirar esta proposta indecente da mesa de negociação sobre o reajuste salarial do Piso Salarial Profissional Nacional do Magistério e fazer valer o critério já está assegurado na Lei 11.738/08. Temos que lutar para não haver recuo financeiro em relação à garantia de valorização nos percentuais do custo aluno ano, que por sinal, nos países desenvolvidos, ultrapassa dez mil reais. Sem essa batalha não teremos garantidas as condições de assegurar aos nossos filhos o mínimo de direitos. Não teremos educação pública e gratuita.
A única saída para mantermos a política de valorização dos Profissionais do Magistério da Educação Básica é chamar à Greve Geral Nacional destes trabalhadores. Só assim poderemos assegurar a correção do Piso conforme determina a Lei e garantir, ao longo dos próximos oito anos, a equiparação salarial aos demais profissionais com a formação equivalente.. Esta luta tem que chegar a todas as regiões e rincões do Brasil, dando um norte político a partir de políticas reivindicativas, organizativas e de lutas, trazendo assim, avanços econômicos e sociais e garantindo melhores condições de trabalho para com isso assegurar uma educação verdadeiramente gratuita, publica e de boa qualidade para todos os filhos e filhas dos trabalhadores e para a maioria do povo.
A CNTE tem que cumprir o papel para a qual foi criada, a defesa intransigente dos direitos já assegurados à nossa categoria e a busca de avanços e novas conquistas. Ela não foi criada para desenvolver um papel de correia de transmissão ou braço sindical dos governos que sempre negaram a valorização dos profissionais do Magistério e desprezaram a educação pública e gratuita no Brasil. Estes governos que a CNTE quer salvar sempre representaram os interesses das elites econômicas e políticas que sempre deixaram a educação pública ao descaso e ao relento, como se fosse um mal necessário para manter os explorados e oprimidos subjugados. Queremos o direito humano universal de uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos.
Ao se encerrar o ano letivo a categoria deve se preparar para a luta no ano que vem e desde já denunciar o engodo realizado pela CNTE!

Sindicato é pra lutar e não para conciliar!

Os trabalhadores não pagarão pela crise! Que a paguem os patrões!

* Josenildo é Coordenador Geral do SINDUPROM-PE e militante da Esquerda Marxista

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

TV Globo e os terroristas do campo

Por Altamiro Borges
Em outubro de 2009, integrantes do MST ocuparam uma fazenda grilada pela empresa Cutrale no município de Iaras (SP). Revoltados com a lentidão da reforma agrária, ativistas destruíram pés de laranja com tratores. Apesar da direção do movimento ter criticado a iniciativa, a cena foi superexplorada pela mídia ruralista. A TV Globo, já em campanha para a sucessão de 2010, reproduziu o vídeo inúmeras vezes. Ontem, porém, ela silenciou sobre uma ação terrorista dos ruralistas em terras indígenas no Mato Grosso.
Segundo relato dos jornalistas Daniel Carvalho e Juca Varella, na Folha deste domingo, os fazendeiros que invadiram ilegalmente terras dos índios xavantes Marãiwatsédé, na cidade Alto da Boa Vista (MT), utilizaram métodos terroristas para sabotar ontem uma ação de despejo liderada por agentes do Incra e da Polícia Federal. “Eles usam táticas de guerrilha contra forças federais para tentar impedir despejo, queimam ponte, bloqueiam estrada e armam um ataque frustrado”. A emboscada poderia até ter causado mortes.
Emboscada e coquetéis molotov
Os grileiros chegaram a fabricar coquetéis molotov. “Quem está com bomba fica desse lado. Quem não está fica desse outro”, dizia um deles, de cima de uma caminhonete. “Era uma emboscada para os agentes de segurança. A ideia era atacá-los e depois tocar fogo ao caminhão com a mudança, em protesto. Um produtor da região, de cerca de 60 anos, puxou conversa com os jornalistas. Em tom jocoso, questionou se o repórter não estaria disposto a ‘pegar umas pedras’ e se juntar aos manifestantes”, descrevem os repórteres.
Ainda segundo os jornalistas, “a tensão ia aumentando. Uns, mais preocupados, diziam: ‘Dessa vez não vai ser bala de borracha’. Um homem retrucou: ‘Mas aqui também tem [bala de verdade]’. De repente, as luzes se apagaram. A escuridão era quebrada apenas pelos faróis do comboio de 20 carros de polícia que se aproximava. Um grupo de quatro manifestantes se aproximou do primeiro carro, de onde saíram quatro soldados armados. ‘Nem mais um passo, senão a gente atira’, gritou um soldado da Força Nacional”.
A seletividade da mídia ruralista
“O barril de pólvora que se armou na região não havia explodido até a conclusão desta reportagem, mas a disposição de quem está em Posto da Mata deixava claro que pode ser apenas uma questão de tempo. ‘Vai morrer homem, mulher. Estou disposto a morrer pelo que tenho’, dizia Odemir Perez”. A invasão da reserva dos Marãiwatsédé foi planejada por ricaços ruralistas, que alistaram pequenos produtores e contam com o apoio de políticos da direita. Dom Pedro Casaldáliga há muito denuncia o clima de tensão na região.
O conflito, porém, nunca foi destaque na mídia ruralista. Quando da ocupação da fazenda grilada da Cutrale em 2009, jornais, revistas e emissoras de tevê fizeram um baita escândalo. Eles ajudaram a criar o clima para a instalação da CPI do MST, visando criminalizar o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Agora, a mídia nada fala sobre a ação terrorista dos ruralistas no Mato Grosso. Nem sequer um vídeo no Jornal Nacional da TV Globo. E ainda tem gente que acredita na neutralidade da imprensa burguesa!

domingo, 16 de dezembro de 2012

Mercado solidário na Suíça. Quando Natal rima com solidariedade


Sergio Ferrari
Colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER
Tradução:ADITAL
- ONG de cooperação e migrantes juntos sob o mesmo teto
- "Que a população desfavorecida também possa festejar”



Esse ano, o Natal começou antes na Suíça. De 13 de dezembro até o sábado, 15, mais de 30 associações de cooperação e de solidariedade com o Sul animam o mercado solidário. Uma forma nova de antecipar as festas.

Produtos e comidas provenientes da América Latina, da África e da Ásia; um clima festivo e de encontro intercultural; cerca de 2 mil visitantes esperados durante os três dias; mais de 30 mil francos de benefício projetado. Em síntese, um exercício ativo de solidariedade.
Após a primeira jornada "já percebemos que esse sexto mercado será novamente coroado com um êxito total”, expressa Maxime Gindroz, responsável de comunicação da Federação de Cooperação do Cantão de Vaud (Fedevaco). Recordando o slogan que motivou a atividade: "para que o Natal seja também uma festa para a população desfavorecida do Sul”.
Com essa filosofia de referência, a Fedevaco, junto com o Centro de Animação Cultural Polo Sul, promovem uma vez mais, como há seis anos, esse espaço de encontro, festejo e vendas, assegurando a participação de ONGs e associações sustentadas por cooperantes ou projetos em diferentes países. Desde o Equador até a Índia, passado pelo Peru, Brasil, Tibet, Togo, Madagascar, Marrocos, Serra Leoa ou Palestina.
Um carrossel de culturas com um ponto de encontro comum e a perspectiva de promover uma relação de proximidade "entre migrantes que vivem na Suíça e os povos do Sul, aproximando essa dupla realidade à população do Cantão de vaud”, enfatiza Fabio Cattaneo, responsável animador de Polo Sul, o local anfitrião, localizado no bairro de Flon, em pleno centro de Lausanne.
Um posto da Bolsa de Trabalho, ativa associação de apoio aos migrantes, particularmente no setor da formação de mulheres, "agrega um valor especial a esta edição”, enfatiza o responsável por Polo Sul ao avaliar a contribuição intercultural dessa inovadora iniciativa.
Para Cattaneo, esse mercado solidário "constitui uma ponte adicional de encontro” do mundo da cooperação ao desenvolvimento e das comunidades migrantes. "Todo esse processo de preparação; o trabalho de instalar o mercado e os três dias partilhando espaços comuns permitem aproximar realidades, conhecer-se melhor e promover novas sinergias com vistas o futuro”. Na concepção do responsável pelo Centro Intercultural, a vivência dos imigrantes que chegam a Suíça e a Europa e a de suas comunidades de origem –muitas vezes beneficiárias da cooperação- constituem duas caras de um mesmo espelho social.
O mercado natalino solidário é uma importante iniciativa, "um espaço privilegiado que permite confluir ideias, utopias e atividades muito práticas, como oferecer uma comida típica de um país distante ou vender um produto autóctone do Sul, que se converterá em um presente muito especial para celebrar as festas”, insiste.

‘Vidraça’ do Sul

As organizações "estamos convencidas da contribuição que há em oferecer às pessoas da Suíça o típico de outras culturas, abrindo uma janela especial no Cantão de Vaud a realidades muito distantes”, enfatiza Maxime Gindroz, que reconhece também para a importância de valorizar a tarefa de cooperação ao desenvolvimento promovida pela Fedevaco e pelas organizações que a integram.
Apesar de que uma prioridade essencial de "nosso trabalho é chegar à classe política, sensibilizando-a sobre a cooperação, abrir esses espaços adicionais ao grande público é também transcendente”, reflete. Facilitar que se conheça o diferente reduz medos infundados e diminui as distâncias e incompreensões,
Gindroz ressalta dois aspectos significativos do evento: o contínuo fluxo em aumento do público a cada ano desde o começo do primeiro mercado, em 2006. E a forte presença, também em crescimento, de jovens, muitos dos quais têm entre 20 e 25 anos. "Eles manifestam um interesse particular em conhecer melhor a realidade de outros povos e culturas”, explica.
Ao avaliar saltos qualitativos em relação às edições anteriores, Gindroz não duvida em enumerar vários elementos. O vídeoclipde apresentação do mercado solidário 2012, que permitiu fazer uma publicidade ativa nas redes sociais. O apoio midiático do jornal Le Courrier, cuja linha editorial é particularmente sensível à temáticas do Sul. A mobilização de um público cada vez mais numeroso e interessado. Sem menosprezar o próprio resultado econômico do mercado solidário, que permite reforçar projetos latino-americanos, asiáticos e/ou africanos.
Dinâmica de participação cidadã, segundo Gindroz, que "fecha um 2012 muito positivo para as ONGs suíças, devido ao aumento do orçamento oficial destinado à cooperação ao desenvolvimento, resultado da mobilização da sociedade civil suíça que anos atrás impulsionou com êxito a petição ‘Unidos contra a Pobreza’, exigindo esse incremento.
[Sergio Ferrari, em colaboração com swissinfo.ch e E-CHANGER, membro da Fedevaco].

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

‘Mídia brasileira ataca ´Ley de Medios` argentina por temer projeto semelhante no Brasil’

 Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA



Após cinco anos de sua idealização, a Argentina conseguiu concretizar a vigência de uma nova Lei de Mídia, redigida a fim de regulamentar a arena das comunicações e reordenar a ocupação do espectro eletromagnético, quebrando os monopólios da mídia comercial. Neste contexto, vários anos se passaram com os mesmos grupos empresariais dominantes bombardeando o governo de Cristina Kirchner, que estaria a “atentar contra a liberdade de expressão”.

Dessa forma, é para elucidar a chamada Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais que o Correio da Cidadania entrevistou o estudioso das comunicações, e editor da revista Caros Amigos, Laurindo Lalo Leal Filho. Com anos de estudo sobre os diferentes níveis de regulação midiática encontrados mundo afora, Lalo assegura que a nova lei é da mais alta consistência, além de amplamente debatida na sociedade: “são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política”.

Como se trata de uma legislação que assegura grande parte das concessões audiovisuais para veículos de comunicação estatais e comunitários, abrindo grande campo para que movimentos e expressões sociais, inclusive minoritários, se manifestem, não foi nada imprevisível o rancor da mídia burguesa, cujos veículos comerciais se apresentam como únicos arautos da democracia.

“A Sociedade Interamericana de Imprensa (órgão que representa a mídia comercial nas Américas) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações sobre as quais ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa”.

Para avançarmos no debate da democratização das comunicações, Laurindo Lalo também recomenda que a lei argentina seja estudada nas escolas de comunicação do país, o que poderá gerar uma real compreensão de sua importância. Uma boa saída para o Brasil, haja vista nosso atual estágio de monopólio midiático, ao lado das dificuldades a serem enfrentadas para a aprovação de uma lei com tal conteúdo em um Congresso densamente permeado pelos interesses dos donos de concessões rádio-televisivas.

“Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora”.

A entrevista completa com o jornalista pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o projeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais, promulgada pelo governo argentino em 2009 e que passou a vigorar a partir do último dia 7 de dezembro, ainda que sob embargo de instâncias intermediárias da justiça local?

Laurindo Lalo Leal Filho: Por ora está embargado, é preciso aguardar um pouco, mas nos próximos tempos devemos ter nova decisão. De toda forma, avalio que essa lei de regulação audiovisual é a mais moderna e avançada de todo o mundo no momento. Serve como exemplo para a América Latina. São dois os objetos centrais da formulação da lei – de 2007. O primeiro é de que foi construída a partir de uma ampla análise jurídica e até acadêmica das legislações hoje existentes em países democráticos de todo o mundo, em relação à radiodifusão. Ela incorpora o que há de mais moderno e avançado em legislações da Europa, EUA e até América Latina.

A lei é muito consistente do ponto de vista teórico, pois, incorporando um pouco de cada uma das leis estudadas, avança para além delas, inclusive sobre os recentes avanços tecnológicos, respondendo também às exigências tecnológicas de hoje. Tenho dito que é muito importante que as escolas de comunicações estudem essa lei, discutindo-a com seus alunos, pois a partir daí vão descobrir como os países democráticos estão estruturados para dar conta das novas tecnologias da comunicação hoje em dia, no campo do audiovisual.

O segundo aspecto que dá consistência à lei é o fato de ter sido formulada através de um amplo debate na sociedade. É uma lei claramente construída de baixo pra cima. Quem tiver paciência de olhá-la por inteiro, poderá perceber que vários artigos e determinações são oriundos de propostas feitas por entidades do movimento social, dentre outras representações da sociedade, incluindo empresariais. Não foi formulada por um grupo fechado, de políticos ou acadêmicos, e imposta à sociedade. Começou com algumas e chegou, ao final de sua elaboração, a contar com praticamente 300 organizações sociais. É uma lei amplamente democrática, consolidada a partir da vontade popular.

Portanto, são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política.

Correio da Cidadania: A seu ver, quais são os pontos mais importantes e que justificariam a aprovação da “Ley de Medios”?

Laurindo Lalo Leal Filho: O primeiro e mais polêmico, que segue dando pano pra manga e foi o que mais dificultou a aprovação da lei, é aquele que rompe um processo não só argentino, mas latino-americano, de concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos. Esse é o aspecto central, pois faz com que a lei amplie a liberdade de expressão na Argentina. Ou seja, um espectro eletromagnético hoje ocupado por poucos grupos passa a ser ocupado por um número maior de atores. Setores da sociedade que estão calados por não terem espaço de colocarem suas vozes terão agora a oportunidade. Como diz o documento “Hablemos todos”, todos têm o direito de falar.

Assim, esse é o aspecto prático mais importante da lei, dividindo o espectro de forma mais equilibrada, seja para as emissoras públicas, estatais ou comerciais. É uma lei que amplia a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que quebra monopólios. Isso tem um desdobramento político muito importante porque representa um aprofundamento da democracia. Não é só uma questão do campo das comunicações. Quando se amplia o número de vozes, idéias e valores, amplia-se a participação democrática da sociedade. Exemplo disso é o ponto que garante o espaço também para os grupos originários, como o de Bariloche, cujo grupo de habitantes de povos originários está colocando no ar sua emissora de TV. Um grupo que sempre esteve calado. Mas, com um terço do espaço reservado às emissoras públicas, agora também poderão falar à sociedade.

Portanto, esse é o aspecto fundamental, a voz a setores sempre silenciados. Mas existem outros, como a garantia da produção nacional, o que abre espaço a muitos grupos que querem mostrar seu trabalho. Há a classificação indicativa estabelecida em lei, porcentagens máximas de publicidade, enfim, uma série de aspectos, todos voltados não só ao aumento da participação pública, mas também à qualidade do que é oferecido ao público.

Correio da Cidadania: Como se viu, é necessário um grande movimento para levar adiante um combate aos monopólios midiáticos, tocando fortes interesses políticos e econômicos com diversos tentáculos de influência. O que teria a dizer, neste sentido, da decisão parcial da justiça de permitir que o grupo Clarín siga adiando seu processo de desmembramento, no qual deve abrir mão de boa parte de seus veículos de comunicação?

Laurindo Lalo Leal Filho: O grupo Clarín, como o grupo Globo aqui, foi ocupando os espaços, gradativamente, pela falta de uma presença mais forte do Estado na regulação. Quando o espaço estava vazio, era como um terreno baldio, e foi se criando o latifúndio. E depois se consolidou um grupo muito forte, como se viu, com 240 concessões de TV a cabo, 4 de TVs abertas, 9 emissoras de rádio AM e FM... É um grupo que tem um poder econômico e político muito grande.

Se fosse qualquer outro ramo social ou comercial, poderia ter só o poder econômico. O problema nas comunicações é que, quando se detém o poder econômico, também se detém o poder político. É um poder muito grande, que sempre se confrontou com o Estado, jogando muita influência sobre os outros poderes, isto é, o legislativo e judiciário. O poder judiciário também sofre muitas pressões do grupo Clarín. A lei foi promulgada em outubro de 2009 e até agora não se conseguiu aplicá-la pelas diversas ações promovidas pelo grupo Clarín sobre os vários poderes.

Superados pelo executivo e legislativo, que já deram vigência à lei (o judiciário também, em suas instâncias maiores), restam as instâncias intermediárias do judiciário para pressionar e conseguir recursos no sentido de adiar a aplicação da lei. O que acontece agora é uma disputa entre um grupo poderoso e os poderes da República.

Correio da Cidadania: O que você responderia aos setores críticos da lei, inclusive aqueles do próprio meio midiático, como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)?

Laurindo Lalo Leal Filho: A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações que ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa. Quer defender os mercados nos quais atua. Portanto, não tem sustentação política alguma.

É uma organização comercial, que tem a sustentá-la empresas comerciais da América que sempre sustentaram governos conservadores e até ditaduras. As ditaduras da América latina, dos jornais e da própria SIP. Basta lembrar que ela foi fundada durante a ditadura de Fulgencio Batista, antes da revolução cubana. Tem uma articulação com os regimes conservadores de direita muito grande.

Na verdade, quando esses governos populares da América Latina – como os da Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela – começaram a colocar algum limite ao poder de seus filiados, a SIP obviamente saiu em defesa deles. Mas é uma defesa de mercado, não tem nada a ver com cidadania, liberdade de expressão, de imprensa. Tem a ver com os interesses comerciais das empresas que a SIP representa.

Correio da Cidadania: Ainda quanto às críticas à nova lei, e talvez nesse mesmo sentido explicado, a maioria dos meios de comunicação de nosso país bombardeia que, a despeito de serem razoáveis as precauções contra o monopólio das comunicações, o que se vê na Argentina é uma “descarada perseguição movida pela presidente Cristina Kirchner contra um grupo de mídia, o Clarín, cujo principal pecado é publicar reportagens e opiniões que a desagradam” (segundo Editorial da Folha de S. Paulo, 09/12/2012). O que diria frente a um argumento desta natureza?

Laurindo Lalo Leal Filho: É uma forma de distorcer o debate, ofuscar o debate real. A mídia ressalta essa divergência existente entre o governo e o grupo Clarín para esconder a realidade da lei, que é a ampliação da liberdade de expressão. Pegam um aspecto – o confronto – e o colocam em destaque. O grupo Clarín representa hoje a oposição política ao governo Cristina. Mas isso é um aspecto parcial, é direito deles fazer oposição ao governo. Isso não tem nada a ver com uma questão muito maior, o debate em torno da ampliação do espaço para outras vozes e grupos, a fim de que possam estes também se manifestar.

Pra deixar claro, a lei não toca em momento algum nos meios impressos. É uma lei de comunicação audiovisual. E quando os jornais, como Folha, Estadão e Globo, falam em “ataques do governo ao Clarín” parece que o governo argentino está querendo intervir no jornal Clarín. Este jornal continuará fazendo o que faz hoje, com liberdade total. O que acontecerá com a aplicação da lei é que o grupo Clarín, não o jornal, será obrigado a abrir mão de licenças de rádio e TV que vão além do limite estabelecido pela lei.

Creio ser um aspecto importante porque aqui no Brasil os meios de comunicação gostam de misturar mídia impressa com eletrônica. A lei argentina é sobre a mídia eletrônica. A lei de mídia que se começa a discutir no Brasil também é sobre a mídia eletrônica. Porque a nossa lei é de 1962. O que esses grupos brasileiros fazem, para atacarem a Ley de Medios argentina, na verdade revela seu temor de que o exemplo argentino sirva de inspiração para os movimentos populares do Brasil e leve, finalmente, o governo a apresentar projeto de lei semelhante. O governo Lula, no final de seu segundo governo, através de seu ministro Franklin Martins, chegou a deixar pronto o projeto de lei, repassado ao governo Dilma para ser levado ao Congresso, guardando semelhanças com a Ley de Medios argentina.

Portanto, a carga que a mídia brasileira traz sobre o projeto argentino é uma forma de tentar evitar uma “contaminação” no cenário brasileiro pelo avanço ocorrido na Argentina.

Correio da Cidadania: E trazendo o assunto para o Brasil, como acredita que deveríamos olhar para a lei argentina e que tipo de debate podemos levar adiante?

Laurindo Lalo Leal Filho: Já cansamos de falar, mas o Brasil está atrasado em mais de 50 anos. A lei brasileira das comunicações é de 1962, assinada por João Goulart, e mesmo assim houve uma série de vetos deste governo, que foram derrubados por um Congresso onde os rádiodifusores tinham domínio total - como continuam tendo, configurando o poder que sempre se contrapôs ao avanço de uma legislação da área no Brasil.

Temos muita dificuldade em avançar porque essa é uma questão que ainda não está enraizada no Brasil. Não temos massa crítica para um debate público e popular, como o que existe na Argentina. Mas estamos avançando. Se formos pensar em quinze anos atrás, não tínhamos o debate que hoje já temos. O principal exemplo foi a realização da Conferência Nacional das Comunicações, no final de 2009, que mobilizou entidades da sociedade em número já razoável, indo além dos debatedores tradicionais, que eram as universidades, os sindicatos... Hoje não, temos associações de classe, mulheres, movimento negro, movimentos sociais, entidades regionais, que já começam a discutir pelo país a criação de uma Lei de Mídia.

O caminho para acompanharmos esse processo natural é mais ou menos o modelo argentino. É preciso enraizar socialmente o debate, mas é preciso também contar com o governo. Apesar de toda essa participação popular, o impulso final foi dado pelo governo de Cristina Kirchner, que sem dúvida alguma sancionou a lei usando, principalmente, os canais públicos de rádio e TV para conseguir levar o debate à sociedade. Enquanto isso não acontecer, fica muito difícil para o cidadão comum entender o que significa uma lei dessas.

Correio da Cidadania: Como analisa o governo brasileiro em sua atuação no campo das comunicações e sua relação com os grupos midiáticos?

Laurindo Lalo Leal Filho: Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Escrevi um artigo chamado “A síndrome Jango, aos 50”, no qual coloco que o fato de os grupos de comunicação terem praticamente empurrado pra rua o governo Jango, colaborando muito para o golpe de 64, que depois sustentaram, fez com que todos os governos de lá pra cá tenham muitos cuidados, estejam sempre cheios de dedos para dialogar com a mídia. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. Não só esse, mas todos os governos sempre tiveram um receio muito grande de ir à frente com um debate pra colocar a mídia e, principalmente, os meios eletrônicos em um enquadramento democrático.

Podemos perceber algumas pesquisas que mostram que, desde 1988, da Constituinte pra cá, já foram elaborados 20 projetos de lei pelos governos, mas que nunca foram colocados em debate na sociedade, muito menos levados ao Congresso Nacional. Pois, em determinado momento da discussão, vinha a ameaça de que o governo poderia ser alvo de uma campanha difamatória muito grande, que poderia até levá-los à desestabilização.

Portanto, é uma disputa muito delicada, sendo necessária uma vontade política muito grande. Mas essa vontade é necessária. E para ser vitoriosa, não basta que seja vontade política dos governos. É preciso que seja combinada com os movimentos sociais. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora.

Correio da Cidadania: Acredita que o governo Dilma possa se espelhar no exemplo argentino e buscar caminhos para uma maior democratização do espectro midiático, tão dependente de poucos grupos empresariais?

Laurindo Lalo Leal Filho: Tenho visto a presidente Dilma tomar medidas que antes a gente achava impossíveis de serem tomadas. São os casos da redução da taxa de juros e agora da redução da tarifa da energia elétrica – mais a disputa que trava agora com as três empresas elétricas controladas pelo PSDB. Ela mostra muita coragem nesses enfrentamentos. Não posso descartar essa possibilidade, ainda mais agora que percebemos que ela tem uma estreita relação com a Cristina Kirchner. Assim, parece-me que a Dilma acompanha bem de perto o que acontece lá com a Ley de Medios. Acredito que o exemplo ela tem, o modelo está traçado. O modelo argentino cabe perfeitamente no Brasil, com pequenas adaptações.

É difícil dizer se fará ou não. É difícil acreditar totalmente porque o Brasil tem uma dificuldade a mais: a presença no Congresso Nacional de muitos parlamentares radiodifusores, ou seus representantes, e que fazem parte da base de apoio ao governo, principalmente dentro do PMDB. Esta é uma dificuldade real, coisa que na Argentina acabou sendo enfrentada, e a lei passou.

Não sei até que ponto o governo teria possibilidade de ir à frente numa lei de mídia contando com tal base de sustentação política no Congresso. É luta política, de conquista de apoio, indo à frente e enfrentando essa dificuldade. É muito difícil saber se será possível travá-la no primeiro mandato de Dilma, embora o movimento social e a luta pela democratização da comunicação já tenham claro que estamos muito atrasados, e ficaremos cada vez mais em relação a outros países latino-americanos.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, quais seriam os pontos mais importantes de uma imaginária “Ley de Medios à brasileira”?

Laurindo Lalo Leal Filho: Sem dúvidas, tal como lá, um ponto é a divisão do espectro para ampliar a participação de outras vozes no debate político e cultural brasileiro. Em outras palavras, enfrentar o monopólio. Estabelecer limites máximos pra que grupos econômicos tenham determinado número de concessões de rádio e TV, permitindo que outros grupos da sociedade civil possam participar das disputas. Creio ser esta a questão central, tanto na Argentina como no Brasil.

E temos de ir além, porque o Brasil, com as dimensões continentais que tem, necessita de uma lei que dê conta de uma difusão maior nas concessões, estimulando a produção regional. Isso porque tivemos não só a concentração dos meios nas mãos de poucas empresas, mas também uma concentração regional dos meios, determinando que todas as pautas e valores que circulam pelo país continuem sendo produzidos no eixo Rio-São Paulo, passando um pouco por Brasília. A regionalização é fundamental e a lei precisa dar conta disso.

Além do mais, há outras coisas importantes, que nada mais são que a necessidade de regulamentar a Constituição Federal brasileira. A lei tem de vir pra regulamentar artigos da Constituição que garantem uma maior democratização da comunicação e que até hoje não foram colocados em prática. Tem a ver com a regionalização, tem a ver com cotas pra produção nacional, cotas pra produção independente... A lei deve dar conta de tudo isso, para que a comunicação seja algo de todos para todos, e não como é hoje, (feita) de poucos para muitos.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma resistência de século



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carlosbarrientos

Guatemala - Brasil de fato - [Pedro Carrano] Monocultivos, megaprojetos e ataques à vida camponesa ainda assolam o país centro-americano

Ainda hoje, os movimentos sociais se posicionam contra os projetos voltados para o monocultivo e o extrativismo voltado à exportação. O recente governo de Otto Perez Molina, na avaliação de Carlos Barrientos, configura-se como de direita, no momento em que as oligarquias não aceitaram sequer as medidas assistenciais do governo anterior, de Álvaro Colom.
Carlos Barrientos tenta traduzir, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, o atual cenário político do país, que não pode ser desvinculado da opressão e da formação socioeconômica, marcada pela resistência contra o processo de colonização. Ele integra o Comitê de Unidade Campesina (CUC), da Guatemala.
A repressão e a militarização se acentuam no país. A dependência econômica em relação aos Estados Unidos e a criminalização dos movimentos sociais seguem do mesmo modo na vida desse povo.


Brasil de Fato – Na condição de país atrelado ao Acordo de Livre Comércio da América Central com os EUA, qual tem sido o impacto da crise mundial do capitalismo na Guatemala?

Carlos Barrientos – A crise se sente, mas não em termos tão fortes. Por um lado, os EUA são o principal mercado da produção guatemalteca, que é sobretudo agrícola. Basicamente, o que se produz na Guatemala é café, em quantidade importante, cana, banana, borracha. Então houve sim uma baixa no montante que vem do setor empresarial, o que afetou os setores mais despossuídos, porque há um aumento da inflação. Todavia, não foi tão dramático como se esperava, porque, no caso do café, temos tido anos em que se recuperou o preço, comparado com o ano de 2000, quando houve uma crise dos preços do café.
Por outro lado, a produção de cana-de-açúcar se expandiu não só para o açúcar, mas para etanol. O mundo incrementou o consumo de etanol e agrocombustíveis, então isso permitiu que o impacto não fosse maior.
Creio que o impacto [da crise] veio de um fenômeno que se dá não só na Guatemala, como em muitos países da América Latina, da população que migra aos EUA e envia remessas. Em 2010, houve uma recuperação das remessas familiares.

Qual o papel dos agrocombustíveis na expansão do capital na Guatemala?

O outro fator que reduziu o impacto é que há uma posição dos setores empresariais e governamentais de abrir o país ao investimento estrangeiro que se deu no ramo de agrocombustíveis, monocultivo, e também na mineração. Curiosamente, nesses tempos de crise certos produtos estão tendo bom preço no mercado internacional, o que ajudou que o impacto fosse menor. Isso digo em termos econômicos, agora em termos da vida do povo, e da situação do país, estes processos de abertura comercial, ampliação da produção de cana e da palma africana tiveram um golpe muito forte.
Em alguma medida, nós fazemos a comparação entre o que está acontecendo agora com o que aconteceu quando entrou o cultivo do café, ao final do século dezenove, porque há certos padrões que se repetem. Um deles é que há novamente a expulsão dos indígenas e camponeses. O outro é a reconcentração de terras por diversas modalidades. Quando se introduziu o cultivo de café se modificou a área que se usava para certos cultivos. Só que agora é a cana, a palma africana, ou a mineradora e a construção de grandes hidrelétricas, com a ideia de vincular-se ao que era o antigo Plano Puebla Panama [agora Plano Mesoamericana], com o fim de exportar energia elétrica ao norte, uma vez que os EUA consomem a quarta parte da energia do mundo.

Na política, há um processo de perseguição do atual governo contra lideranças sociais?

Colom defendeu os interesses empresariais. Mas as pequenas medidas sociais foram mal vistas pela oligarquia guatemalteca. Preocupada, a oligarquia apoiou a extrema-direita, gerou um clima de muito terror, uma vez que a Guatemala é rota do narcotráfico.
O atual presidente, Otto Perez Molina, aproveitou isso muito bem. Ele é ex-militar, contrainsurgente, esteve em lugares como Nebaj (oeste da Guatemala), onde foi oficial no destacamento, um dos lugares onde houve uma quantidade muito grande de massacres. Mas ele foi oficial de Inteligência Militar e tem uma trajetória terrível. Conhece muito bem como criar um clima de guerra psicológica que lhe seja favorável, sobretudo nos centros urbanos.

Como tem sido a sua relação com os movimentos sociais e com o povo guatemalteco?

O governo de Colom encerra seu período, uns oito ou nove meses antes que terminasse, com um despejo massivo de treze comunidades que haviam ocupado terra em um lugar ao norte onde se está expandindo a cana-de-açúcar. Há camponeses assassinados, vários capturados e se despejou 800 famílias dessas distintas comunidades.
Há medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para que se proporcionasse segurança a estas famílias. Afinal, os guardas armados do engenho eram a lei e ordem na região, por isso havia que garantir segurança às famílias, mas o governo não faz nada, e se põe ao lado das famílias mais ricas da Guatemala.
Quando começa o novo governo de Perez Molina, há muito temor sobre sua postura. Todavia, as comunidades desalojadas, organizadas na Via Campesina, decidiram em março deste ano realizar uma marcha de 200 km, no sentido da capital, à qual se juntaram uma série de organizações, para demandar basicamente quatro grandes blocos: o problema da terra; que finalizasse a criminalização, processo que vem desde os governos anteriores; fim das explorações mineiras, monocultivos e megaprojetos; leis de desenvolvimento para comunidades camponesas.

Desde o Brasil, a impressão que temos é que a esquerda na Guatemala não tem uma expressão forte no campo eleitoral. Como você pode explicar isso?

Houve organizações guerrilheiras que por muito tempo lograram a implantação de um projeto militar, como o que se projetava no caso da Guatemala. Chegou- se a um momento de impasse, que nem Exército e nem a guerrilha poderiam vencer. Havia quatro organizações guerrilheiras, que se articularam em uma organização mais ampla que se chamou Unidade Revolucionária Nacional de Guatemala. Porém, quando a guerrilha se constitui em partido político, se dá um processo de entrar em cheio na dinâmica eleitoral, o que levou a guerrilha a se distanciar de sua base social tradicional, camponesa e indígena, e então começa a converter-se em partido com a mesma lógica dos demais. Isso gerou resultados eleitorais pobres e resultou em fracionamentos. Entre a esquerda inserida nos movimentos sociais, há também uma divisão entre luta política e luta social, o que não ajudou em nada. Então, a presença da esquerda (no parlamento) é muito pequena. Temos apenas dois deputados em um congresso de 158 pessoas. E sete prefeituras dentre 333, uma presença muito pequena. Esse é o grande desafio da esquerda: como articular o social com o político e como recuperar o que anteriormente foram suas bases de sustentação.

Você vê uma possibilidade de síntese entre a teoria marxista e a visão indígena?

Um primeiro aspecto é de caráter histórico. Os povos originários em Guatemala tem 500 anos de luta e resistência. Em uma sistematização se pode dizer que, durante quinhentos anos, não houve uma geração no território maia que não tenha experimentado uma rebelião, um levante; algum fato em que teve que enfrentar as autoridades constituídas, coloniais, republicanas, capitalistas, burguesas e assim por diante. Então, há uma trajetória de luta e resistência muito forte, algo que a oligarquia tratou de esconder e sequestrar, senão daria um mau exemplo se dissesse nas escolas que o povo maia nunca se rendeu e sempre lutou. É difícil encontrar informações sobre isso. Mas, sim, há evidências históricas desse processo de luta e resistência.
Há outro elemento capaz de falar de uma confluência. Na Guatemala, a riqueza se levantou sobre a base da expropriação do fruto do trabalho da população camponesa, e do despojo das comunidades originárias. Então, são duas contradições principais, uma é a contradição classista Capital e Trabalho, explorados e exploradores, a outra contradição é entre os Estados nacionais e os povos originários, porque nesse processo histórico os povos originários mantiveram sua cosmovisão e suas práticas de distinto tipo.

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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

De punho em riste: quem é a garota que desafiou a ocupação israelense?

 


Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, enfrenta os soldados israelenses e diz que a dor já faz parte de sua vida



Oren Ziv/ ActiveStills no OPERA MUNDI



No meio de uma estrada deserta, cercada de paisagem árida, uma pequena menina com a insígnia da paz estampada no peito enfrenta dezenas de soldados, protegidos com capacetes e metralhadoras. O contraste da imagem choca, mas nem as armas em punho foram capazes de amedrontar a garotinha, que continuou a gritar e empurrar os oficiais em busca de respostas (veja o vídeo abaixo).
Os risos jocosos dos militares, que se entreolhavam em desprezo, apenas alimentaram o desespero e raiva da jovem. No fim, a única resposta recebida foi o disparo de balas de borracha. As imagens da bravura da menina, na reedição de uma espécia de batalha entre Davi e Golias, correram o mundo. Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, queria apenas saber para onde o irmão, Waed, de 15 anos, havia sido levado durante os protestos do dia 2 de novembro em Nabi Saleh, pequeno vilarejo na Cisjordânia onde vivem.
Sentada na cama do hospital em Ramallah com a mão envolta em curativos, a palestina não reclama do ferimento de balas de borracha e conta que a dor já se tornou parte de sua vida. Filha do líder comunitário Bassem Tamimi, considerado pela União Europeia um “defensor dos direitos humanos” e pela Anistia Internacional “um prisioneiro de consciência”, Ahed já teve de lidar com o encarceramento de seus pais, a morte de dois tios e a violência cotidiana de soldados israelenses contra sua família e amigos.
“Eu lembro que o pior período da nossa vida foi quando prenderam o meu pai pela primeira vez e as autoridades israelenses não nos deram autorização para visitá-lo”, afirmou ela a Opera Mundi. Detido por oficiais israelenses por seu papel de liderança nos protestos pacíficos, Bassem teve de enfrentar a corte militar de Israel por 13 vezes e chegou a passar mais de três anos no cárcere sem nenhum julgamento.
Há mais de três anos, os residentes de Nabi Saleh se concentram toda sexta-feira às 13:30 no centro da vila e tentam caminhar com bandeiras da Palestina nas mãos até a Alqaws, fonte de água da cidade confiscada pelos oficiais israelenses em 2009 e agora, de uso exclusivo e livre acesso para os colonos. O recurso era necessário para as plantações na aldeia de predominância agrícola e também utilizado como local de lazer, mas Israel restringiu a visita a indivíduos e proibiu a construção de qualquer tipo de infraestrutura no local pelos palestinos.
ActiveStills (24/08/12)

Ahed e sua prima tentam impedir a prisão de sua mãe Nariman em um protesto contra os assentamentos em Nabi Saleh
“Toda sexta-feira, choques começam quando tentamos começar nosso protesto pacífico contra o assentamento que nos cerca”, conta a garota. Idosos, como sua avó de 90 anos, crianças, mulheres e homens são atingidos indiscriminadamente por munições e projéteis.
Com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e o líquido “skunk”, os soldados impedem que a passeata chegue ao seu local de destino, mas, pela primeira vez em junho deste ano, o grupo conseguiu entrar na fonte.
Depois dos primeiros protestos, as Forças de Defesa de Israel começaram a fechar todas as entradas e saídas da vila, impedindo a chegada de ativistas internacionais e de outras cidades palestinas e restringindo a manifestação às ruas da vila.
“O uso de todos os meios para finalizar o protesto pelas forças de segurança é excessivo e ocorre mesmo quando os manifestantes não são violentos e não representam ameaça. As forças disparam enormes quantidades de gás lacrimogêneo dentro da área urbana da vila, que é o lar de centenas de pessoas”, diz relatório da organização israelense B’TSelem. “Em um protesto, pelo menos 150 latas de gás lacrimogêneo foram disparadas”.
Mortes
Foi em uma dessas vezes que Ahed perdeu um de seus primos. Há exatamente um ano, Mustafa morreu quando foi baleado na cabeça com uma bomba de gás lacrimogêneo durante os protestos. De acordo com testemunhas, ele jogava pedras contra um tanque israelense e um soldado não identificado mirou a arma em sua cabeça.
ActiveStills

Ahed Tamimi (no fundo à direita), sua mãe, Nariman, abraçada a seu irmão, Waed, no funeral de Rushdi Tamimi
Mas, segundo organizações de direitos humanos e residentes de Nabi Saleh, os oficiais não usam inadequadamente apenas munições menos letais, mas também armas de fogo. No dia 19 de novembro, o tio de Ahed, Rushdi, policial palestino de 31 anos, faleceu de complicações médicas depois de ferimentos com balas de fogo no intestino.
Apesar da crescente repressão, Ahed e sua família continuam a participar dos protestos semanais na aldeia de 500 habitantes contra os assentamentos israelenses e o muro que separam os territórios.  Sob o argumento de que a manifestação é uma “reunião ilegal”, os oficiais prendem civis e tentam dispersar o grupo logo nos primeiros minutos.
Prisões
“Minha mãe disse a eles para saírem das nossas terras e o soldado, com raiva, respondeu que estávamos em uma zona militar. Minha mãe, então, disse a ele para retirar os colonos também e ele ordenou sua prisão”, lembra Ahed da manifestação do dia 24 de agosto (vídeo). Junto de suas primas, a garota protestou contra a detenção e acabou apanhando dos militares. Nariman foi libertada e logo, voltou a participar das manifestações com sua câmera e kit de primeiros socorros.
ActiveStills (24/08/12)

Nariman, coberta com o lenço palestino, é levada pelos oficiais israelenses; Ahed tenta impedir que eles levem sua mãe
Seu pai foi preso, novamente, no dia 24 de outubro deste ano em uma manifestação a favor do boicote contra o supermercado israelense Rami Levy e condenado a 4 meses de prisão e a uma multa de NIS 5 mil poucos meses depois de ter sido solto. Após uma semana, seu filho mais velho foi levado pelos soldados, mas permaneceu detido poucos dias na delegacia do assentamento Sha’as Benyamin.
“A prisão de Waed Tamimi enquanto ele estava andando pacificamente em sua vila aponta para o contínuo abuso do ativista Bassem Tamimi, de sua família e da comunidade de Nabi Saleh pelas forças militares israelenses”, afirmou Ann Harrison da Anistia Internacional. “Este abuso e assédio deve parar”, acrescentou ela.
Ocupação e os jovens: peça-chave para a repressão
A presença militar de israelenses não é restrita, no entanto, às sextas-feiras na vila palestina. A emissora israelense canal 10 junto com a B’TSelem denunciou que os oficiais fazem rondas noturnas em Nabi Saleh, nas quais invadem as residências dos palestinos e tiram fotos das crianças.
As Forças de Defesa usam as fotografias para identificar os menores que jogam pedras contra os oficiais nos protestos e depois, voltam às suas casas durante a noite para prendê-los. Segundo a organização palestina Addammeer, que luta pelo direito dos presos políticos, o depoimento desses jovens é fundamental para Israel construir denúncias contra os líderes do movimento. O interrogatório de uma criança de 10 anos que levou à prisão de Bassem.
Ahed conta que os oficiais estão por perto “toda vez que quero brincar com meus amigos, quando vou à escola e quando estou em casa”.
Oren Ziv/ActiveStills

Bassem e Nariman Tamimi se reencontram depois de periodo de encarceramento
Mesmo quando os soldados não estão por perto, os palestinos lembram diariamente de que sua terra está sendo ocupada e confiscada. Nabi Saleh, assim como toda a Cisjordânia, é cercada por um muro de 10 metros de altura e por todos os lados da aldeia, os apartamentos modernos dos colonos construídos ilegalmente em seu território podem ser vistos. A falta de parentes e amigos que estão presos ou foram mortos impedem que essas pessoas se esqueçam da sua realidade.
Sonhos de uma criança
“Eu gostaria que toda a minha família fosse libertada assim todos os outros prisioneiros palestinos logo e quero ver o meu grande sonho de um dia viver em uma Palestina livre”, afirma, com emoção, Ahed.
Reproduçao Facebook
O sentimento de tristeza e desespero estranho demais para a vida de uma criança também preocupa os pais de Ahed. “Durante as minhas visitas ao meu marido, Bassem me pediu que os corações dos nossos filhos fossem purificado de todo e qualquer ódio por conta das sementes de amor que plantamos neles”, reconhece Nariman. “Agora, nós estamos esperando por redenção, felicidade, justiça e liberdade”.
(Waed Tamimi vestido com lenço palestino durante protesto do dia 7 de dezembro para se proteger das bombas de gas lacrimogeneo)
A libertação nacional parece estar longe da vida de Ahed e dos Tamimi. Enquanto a família ainda enfrenta uma ordem de demolição de sua casa em Nabi Saleh, as autoridades israelenses já anunciaram que vão continuar com a expansão dos assentamentos nos territórios palestinos.
No entanto, o espírito de resistência dessa família não parece diminuir, apesar das seguidas provações pelas quais passaram. Metaforicamente, os Tamimi são a Palestina.

"O que Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que o apartheid sul-africano”.

          

Para Ronnie Kasrils, Israel só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. "Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu.


        
 


Ele tem 73 anos e nasceu numa comunidade judaica de Joanesburgo, formada por fugitivos do extermínio em Vilna e em Riga, na Lituânia, no início do século XX. Aos 9 anos, numa sessão de cine-notícias entre filmes, viu as imagens que começavam a circular, no mundo, dos campos de concentração nazistas. Voltou para casa e perguntou a sua mãe, a quem diz dever a sua consciência frente à opressão e à intolerância, se o que acontecia na sua vizinhança e no seu país, com a população negra, era a mesma coisa. Se a pobreza, a humilhação e a segregação a que estavam condenados pelos brancos era a mesma coisa que, no cine-notícia que acabara de ver, chamaram de antissemitismo. “A minha mãe, que não era uma intelectual, cuja família tinha uma delicatessen, mas que frequentou a escola até os 16 anos, disse que não, que não era a mesma coisa. Mas que aquilo que eu tinha visto e que tinha acabado de acontecer com o nosso povo na Europa tinha começado dessa mesma maneira que eu descrevera, ali (na África do Sul)”. Esse é o tipo de coisa que Ronnie Kasrils começa a contar, assim que senta na mesa e pede que nos apresentemos, para uma conversa com alguns dos mais proeminentes participantes do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que começa nesta quinta (29) e vai até domingo, em Porto Alegre.

Ronnie, ou “Ronaldo”, como ele gosta de se chamar, aqui, é um homem extraordinário e um sujeito adorável. Parece muito mais jovem, talvez pela exuberância, talvez pela natureza de seu compromisso moral com o mundo. É muito raro, quando se trata da questão palestina, que algum militante abra sorrisos tão largos e demonstre tamanho otimismo, como o faz Kasrils, um escritor, ativista, ex-ministro de estado da África do Sul pós-apartheid e membro do Tribunal Russell para a Palestina. Ele começou a falar de sua vida, de suas trajetórias e de suas escolhas. É difícil de acreditar, mas Kasrils, aos dez anos, fez parte do Betar, o movimento da juventude sionista criado por Ze'ev Jabotinsky, o pai do revisionismo sionista, um movimento de extrema direita, que defende o que chamam de Israel bíblica, algo que hoje implicaria a incorporação da Síria, do Líbano, da Jordânia e do norte do Egito. Ronnie contou esse fato pitoresco rindo, para em seguida deixar claro: “Éramos muito influenciados por um professor, que estimulava um sentimento de violência e de conflito, inclusive entre nós, e mesmo físico, como se isso nos fortalecesse, como um projeto pedagógico. Éramos meninos, tínhamos pouco mais de dez anos, mas entendemos que ele era doente. Era um louco”. O seu engajamento no Betar se desfez com essa descoberta e também com a entrada no ensino médio, num colégio da elite branca, onde conheceu um professor história, Teddy Gordon, também judeu, que lhe ensinou sobre a Revolução Francesa.

É difícil descrever à altura o brilho nos olhos do sul-africano, quando falou de seu professor, a quem atribui a mudança mais definitiva na sua vida. Ronnie Kasrils é um homem poderoso e mundialmente conhecido, pegou em armas com Mandela, foi ministro de estado, mas quem mudou a sua vida, em termos políticos, foi o professor de história que lhe deu aula sobre um acontecimento chamado Revolução Francesa. “Eu era, até então, um péssimo aluno, eu era um atleta, não era da ala dos intelectuais, como Richard Goldstone, que era meu colega. Mas quando esse professor começou a dar aula eu me tornei o melhor aluno, e saí do colégio de maneira promissora”, disse, sorrindo, convincente. Kasrils tem aquela capacidade rara de nos ensinar a mirar a história com ganas de atribuir-lhe sentido e com a confiança em tal coisa. A escolha por nos contar essa história, essa pequena parte dela, era uma operação deliberada e ao mesmo tempo refinada. Era como se ele estivesse nos dizendo: olha aqui, gurizada, eu passei a levar a sério um ponto de vista universalista e é deste ponto de vista que eu estou aqui.

A ligação com a esquerda judaica e a luta contra o apartheid sul-africano

“Mas eu também saí do Betar por uma outra razão”, conta, rindo. “As meninas do Habonim Dror eram muito mais bonitas” e, na época, Kasrils não era exatamente um militante da esquerda judaica socialista, que buscava criar um lar nacional judaico a partir da cultura e da educação e da vida kibutziana.

“O que me tornou de esquerda foi o massacre de Shaperville, de março de 1961, em que 69 militantes pacifistas negros foram mortos e centenas ficaram feridos. Ali eu tomei a decisão de que iria fazer alguma coisa. A minha família nunca foi militante, de esquerda, mas eu tinha um tio na Cidade do Cabo que era advogado e comunista. Eu peguei um ônibus e fui para a casa dele. Cheguei lá e disse: eu quero me juntar a vocês”. Ele nos olha bem sério, encosta-se na cadeira, abre um sorriso e completa: “Então foi assim que eu comecei. Eu tinha de pôr em contato os núcleos da resistência ao apartheid, os membros dos partidos comunistas, da esquerda. E o meu tio estava isolado, noutra cidade. Eu disse que iria fazer isso. E fiz”.

Quando Mandela convocou à luta armada, após os acontecimentos de Shaperville, Kasrils se juntou a ele. Treinou na União Soviética, recebeu formação militar e esteve em vários países africanos, quando se tornou chefe de inteligência militar do movimento Lança de Uma Nação, o braço armado do Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Passou cinco anos na cadeia, perdeu o emprego como executivo de uma empresa de telefonia, foi perseguido e banido da comunidade branca sul-africana. E se tornou ministro de estado da África do Sul pós-apartheid. Foi então que se voltou para a questão palestina.

A luta contra o apartheid israelense

Com o fim do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul, Kasrils se tornou ministro de estado. E, depois do ministério da defesa, foi nomeado ministro para assuntos de água e florestas, de 1999-2004. Nesse período, ocorreu a segunda intifada e o muro de anexação de territórios palestinos, pelo então governo de Ariel Sharon, começou a ser erguido, anexando territórios palestinos para construir assentamentos, esmagando casas e vilas palestinas, segregando bairros, vilas e famílias, dividindo a região e instaurando um sistema identificado pelo sul-africano como muito mais hostil que o apartheid sul-africano. Em 2001 ele redigiu a “Declaração de Consciência de Sul-Africanos Judeus”, contra as políticas israelenses nos territórios palestinos ocupados. Passou a ser acusado de antissemita, pela direita judaica local, e viajou para a Cisjordânia, como ministro para assuntos de água e florestas. Lá conheceu Jamal Juma, que dava início ao movimento de resistência não violenta Stop the Wall.

O que você defende como solução, os dois estados, as fronteiras da linha verde, um só estado para dois povos? Eu perguntei e isso parece não ter ecoado como uma questão a ser respondida. Kasrils olha para mim e diz que Israel só vai mudar, só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. Mas é preciso constranger economicamente, não apenas politicamente. O programa de Desinvestimento e de Boicote significou o começo do fim do apartheid e nós terminamos vencendo. Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu. Para Kasrils, o fato de que em Israel os cidadãos palestinos são cidadãos de segunda classe, com direitos limitados e sem o grau de liberdade civil dos israelenses configura apartheid. “No regime do apartheid, diante de um mestiço que não se sabia ao certo se era negro ou não, passavam um pente para ver se iria ou não deslizar sobre o cabelo. Caso o pente parasse, a pessoa iria para os setores dos negros”.

Em Israel não é assim, mas não precisa ser, lembrou. Há um muro que consegue separar as sociedades, anexando territórios dos palestinos, mas que afasta completamente os dois povos, promovendo limpeza étnica e criando “coisas como rodovias em que só judeus podem trafegar. Isso é uma violência que nem o apartheid sul-africano cometeu. O que o estado de Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que aquilo que acontecia no apartheid sul-africano”, concluiu.


A seguir, a chegada de Jamal Juma, o seu diagnóstico sobre a iminência da eclosão da Terceira Intifada e o pessimismo contrastante com o otimismo de Kasrils.


Fotos: Carlos Carvalho

domingo, 9 de dezembro de 2012

Bram Stoker vive!

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Não, ele não morreu. Acima, Christopher Lee como Drácula.

O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100 anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula, a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso. Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90, assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico vitoriano.

Lugosi em momento de concentração

Drácula é um excelente livro. Bem construído, elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes) carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem, ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.

Bram Stoker: até virar título do filme de Coppola, o autor fora engolido por seu personagem

Bram Stoker

Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker — um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27 anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta, contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.

Henry Irving: ator do qual Stoker era agente

Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos. Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.

Gary Oldman, o Drácula de Coppola, em momento de descontração

Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912, em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.

Vlad Dracul: muitas mortes e respeitável bigode

Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato, assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno – além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período, para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários, cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente, às mulheres.

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (1922), de Murnau

Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos” camponeses da Transilvânia.

As mulheres: portas escancaradas para o mal

Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca — no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina, Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da vida de esposa e mãe.

Winona Ryder: a Mina do filme de Coppola



A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios), figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
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A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora