"Na atual globalização o mundo está se tornando quadrado e estão atribuindo cantos às minorias indóceis. No entanto, surpresa. O mundo é redondo, e uma característica da redondeza é não ter cantos. Queremos que não existam nunca mais cantos onde se possa desfazer dos indígenas, da gente que incomoda, para escondê-la como se esconde o lixo para que ninguém veja"
Com essa entrevista, concedida pelo subcomandante Marcos ao editor da revista Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet, pretendo iniciar aqui uma série de artigos sobre os já chamados neozapatistas. Desde 1994, quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) deflagrou o que foi para muitos uma inesperada guerra contra o então governo monolítico do México, representado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), grande parte da esquerda, não só a brasileira, entrou em um estado de alerta e de entusiasmo. Qual era o conteúdo programático de uma guerrilha que emergiu de uma hora para outra combatendo, de frente, um governo que estava no poder há mais de 70 anos e que insistia em afirmar e reafirmar o seu falso teor democrático?
Que democracia é essa que pretendiam os zapatistas? De um lado, veio a comemoração. Afinal, em um momento de crise da esquerda internacional os zapatistas teriam resgatado a idéia de revolução e transformação. Logo, e não poderia ter sido diferente, a direita rotulou o movimento zapatista de atrasado, isolado e mesmo xenófobo.
Para alguns setores da esquerda, no entanto, após o entusiasmo veio a perplexidade e preocupação. Como pensar a transformação do capitalismo sem a tomada de poder? Parafraseando o pensador John Holloway, como mudar o mundo sem tomar o poder? Logo então proclamaram: é um movimento de pavio curto, pois é exclusivamente indígena e não pertence à classe operária. Os zapatistas não passam de sociais democratas ou revisionistas, além de etnicista, disseram outros, tanto da direita, como da própria esquerda.
Nesse contexto, o "inesperado" conflito bélico, conflagrado pelos zapatistas no início de 1994, talvez tenha significado muito mais do que a simples proposição luta armada/tomada do poder de Estado, sendo essa dualidade vista em grande parte da historiografia da esquerda revolucionária como a única e inexorável forma de encontrarmos no final da linha o ideal, muitas vezes profético, do denominado socialismo.
Desde o pós-guerra, os zapatistas vêm "gritando" por justiça, democracia, liberdade e autonomia. Mas o que é, na prática, esse "grito" e como "nós" podemos "gritar" sem a necessidade de pegar em arma e nos tornar zapatistas strito senso? Como ser zapatista em nosso dia-a-dia, em nossa cidade, ou seja, em nossa resistência? E o que é, para os zapatistas, resistir?
Todas essas reflexões, e muitas outras que com certeza emergirão no caminho, são dilemas que venho questionando desde que visitei o México entre os anos de 1994 e 1995, exatamente no período em que se "comemorava" o primeiro ano do levante zapatista. Desde aquele período, todo um pulsar jamais deixou de ecoar em meu modo de ser e de pensar o mundo e a política.
É nessa perspectiva que temáticas políticas, econômicas, sociais e culturais serão tratadas daqui para frente, sempre levando em consideração a importância de se vincular a problemáticas relevantes não só para países como o Brasil, mas também para alguns dilemas enfrentados pelo homem contemporâneo, além da possível influência, nesses 15 anos de existência dos zapatistas, na já chamada nova geração de movimentos anti-sistêmicos na América Latina.
O que é, afinal de contas, o zapatismo, ou melhor, o ser zapatista? No que uma luta por justiça social travada em uma região distante pode estar relacionada ao nosso país? O que nos une é apenas a desigualdade social? Se assim for, seremos tão somente um "nós" solidário com a luta "deles"? Em linhas gerais, o intuito dos artigos será o de procurar mostrar que, na prática, a lição dos zapatistas tende a passar por um necessário redimensionamento de como "nós" habitualmente olhamos o concebido negativamente como "o diferente", sempre visto e tratado como algo menor e inferior.
Os comunicados e as lutas zapatistas, que já ecoam por vários cantos do planeta como uma voz resistente e sem fronteiras, podem pelo menos estar contribuindo para a possível quebra de um paradigma social e político, construído histórica e culturalmente, sobretudo pelo mundo ocidental, de que de um lado temos nós, os iguais, e de outro os rotulados negativamente como diferentes.
Trata-se aqui, e esse pode ser o principal ensinamento dos zapatistas, junto com sua luta política, de positivar e potencializar a diferença. E daí fortalecer a nossa própria luta por um país mais justo, livre e solidário. O EZLN, nesse contexto, pode estar nos revelando um outro modo de ser e de estar no mundo que realmente se contraponha ao cerco massificante e homogeneizante do sistema capitalista.
Esse mesmo sistema que busca se preocupar como "o diferente" apenas quando ele se predispõe a ser "incluído" em suas garras consumistas, visando tão somente o lucro e uma abertura cada vez maior para o chamado, pelo próprio Marcos, novo deus da contemporaneidade: o mercado. Vejamos, só para exemplificar, o que diz o subcomandante a esse respeito. "A estranha alquimia da globalização dos de cima conseguiu a mundialização de um novo dogma: liberação da humanidade é igual à liberação dos mercados... E, como os deuses anteriores, o mercado não caminha com racionalidades de números, estatísticas, leis de oferta e procura, cálculos financeiros. Não, o novo deus tem passo de morte e destruição, de guerra. Apesar disso, nunca irá reconhecer que está destruindo, mas sim que reparte, democraticamente, uma homogeneidade com um vaivém de identidades limitadas: comprador/vendedor. Tudo e, sobretudo, todos os que não podem ou não querem ser uma coisa ou outra, no compasso estridente e frenético do mercado são os outros".
É nesse sentido que como pesquisador do projeto Xojobil convido você agora a embarcar nessa viagem de pensarmos a realidade zapatista como uma disparadora de reflexões sobre nossos comportamentos e conceitos sobre a política e as relações sociais. Talvez possamos estar iniciando aqui uma rede de conversação sobre o que é ser zapatista e não apenas estar nos preocupando em conceituar e compreender o que é o zapatismo. Apesar da distância geográfica, como criar vínculos existenciais com o que se passa por lá? Como os zapatistas concebem, por exemplo, o ser igual e diferente na sociedade contemporânea?
Como fazer política e viver a partir da proposição "caminhar perguntando"? O que é, nesse sentido, o ato de escrever sobre o "zapatismo"? Os zapatistas são apenas um "eles" passíveis de "nossa" ajuda e solidariedade humanitária? Ou os zapatistas "somos nós"? Marcos sempre afirmou em seus comunicados que "não sou ‘eu’ e sim ‘nós’, os mortos e os vivos que lutaram e lutam nesses mais de 500 anos de injustiça, conflitos e tentativas de estabelecer diálogos com os governantes e a sociedade civil".
Marcos, nessa perspectiva, é por si só "vários". Ele, enfim, "somos todos nós". Vamos construir, juntos, o que é o ser zapatista. Caminhando e perguntando.
Guga Dorea é jornalista, sociólogo e educador. Atualmente é pesquisador dos princípios zapatistas no projeto Xojobil.