Durante 100 dias, de 6 de abril a 4 de julho de 1994, o mundo inteiro assistiu, passivamente, ao extermínio brutal e desumano de 800 mil ruandeses, na maior parte, membros da etnia Tutsi. Para Rony Brauman, um dos fundadores e ex-presidente da organização Médicos sem Fronteiras, a ação da justiça internacional no caso de Ruanda foi extremamente limitada. "Estes crimes continuam impunes, metodicamente ignorados pela comunidade internacional, pela imprensa e pelos observadores de Ruanda", critica.
Marta Fantini - Especial para Carta Maior
Em agosto de 1993, o governo formado por representantes Hutus e a Frente Patriótica Ruandesa (FRR), Tutsi, assinaram um tratado de paz, após três anos de uma guerra civil que provocou a morte de milhares de pessoas, o deslocamento de milhares de refugiados e que deixou a economia do país paralisada.
No dia 6 de abril de 1994, o presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira morreram em um misterioso acidente aéreo. Assim que a informação foi divulgada, a inimizade irrompeu entre a comunidade Hutu, numericamente superior e dominate, e os Tutsis, grupo minoritário. Neste mesmo dia, a guarda presidencial, setores das forças armadas, a milícia civil e uma parte da população se lançaram no assassinato sistemático dos Tutsis e dos Hutus pró Tutsi. E o que parecia uma revolta limitada, tornou-se um massacre que ultrapassou a imaginação, numa lógica de eliminação recíproca.
Neste mesmo ano, 1994, Rony Brauman, um dos fundadores e ex-presidente de Medécins Sans Frontière (Médicos sem Fronteira), organização humanitária que recebeu o prêmio Nobel da Paz em 1999 - publicou “Diante do Mal, Ruanda : um genocídio ao vivo”. Desde os primeiros dias do conflito, as organizações humanitárias, presentes no território ruandês, alertaram as autoridades a respeito do massacre. A mídia transmitia, diariamente, imagens terríveis da violência da exterminação, sem que os dirigentes mundiais reagissem.
Médico, diplomado em epidemiologia e medicina tropical, engajado desde 1977 no setor da ação humanitária, Rony Brauman esteve presente no palco de atrocidades humanas na Etiópia, na Somália, no Kosovo, etc. Rony Brauman é também ensaísta e publicou várias obras de reflexão sobre a intervenção humanitária, entre elas “Pensar na Urgência: percurso crítico de um humanitário”. De origem israelense, ele é considerado um traidor pela comunidade judaica, por criticar a política de Israel. “A discórdia: Israel-Palestina, os judeus e a França” que Brauman publicou, em 2006, em parceria com o filósofo Alain Finkielkraut, é o produto das análises controvertidas sobre a questão israelo-palestina.
Rony Brauman aceitou o convite da Carta Maior para evocar os 15 anos do genocídio do Ruanda e o papel da Corte Penal Internacional.
Marta Fantini: O presidente da etnia Hutu, Juvenal Habyarimana, chegou ao poder através de um golpe de Estado, em 1973. Católico e próximo da rica Igreja ruandesa, que se sentia ameaçada pelos socialistas Tutsis, Habyarimana usava o racismo como base do seu discurso político. Apesar de todos estes fatores, a França apoiava o seu regime. Na época, os Médicos sem Fronteiras criticavam a posição francesa por ignorar as intenções do presidente ruandês.
Rony Brauman: A política não faz parte das nossas preocupações essenciais. O objetivo de uma organização humanitária não é o de criticar as relações ou escolhas políticas dos países onde ela atua, senão, seria impossível agir nas zonas de conflito. No entanto, criticamos a estratégia francesa na África. Talvez para manter sua influência no Conselho Permanente de Segurança da ONU, a França defende, a qualquer preço e quaisquer que sejam as consequências, os regimes considerados como amigos. Esta tradição da França de manter as antigas amizades do período pós colonial é criticada, não somente pelas ONGs.
MF: Os santuários sagrados, locais de paz inviolável - serviram de armadilha para o massacre de centenas de crianças, mulheres e idosos que neles buscavam refúgio. Algumas destas igrejas foram transformadas em museus, onde crânios das vítimas estão expostos para “exorcizar o Mal”. Vários testemunhos acusam a participação ativa ou passiva, por medo de represália, da Igreja Católica Ruandense, durante o genocídio. Duas freiras foram julgadas e condenadas, na Bélgica, por cumplicidade. Outros membros da Igreja foram igualmente perseguidos pela Justiça. Como recentemente a Igreja provocou vivas reações no mundo ocidental, em relação à excomunhão, será que o Vaticano baniu, ou puniu os eclesiáticos implicados neste massacre?
RB: Um processo foi lançado contra um religioso, que acabou por ser inocentado. Parece que não houve nenhum testemunho realmente convincente em relação a sua culpa. Ele tinha sido acusado de proteger um grupo de Tutsis, perseguido pelas forças governamentais, para entregá-lo, algum tempo depois, às milícias. O único caso, na minha lembrança, em que houve um processo judiciário, mas sem consequências. A ação da Justiça Internacional no caso do Ruanda é extremamente limitada. Os fatos remontam a 1994. Os massacres cometidos antes desta data não entram no domínio da competência da CPI. A Corte Penal Internacional foi criada pelo Tratado de Roma, em julho de 1998.
O Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR) se interessa pelos próximos do regime de Habyarimana, pelos responsáveis pelo governo de transição, ou seja os suspeitos pelo atentado que causou a morte de dois presidentes. Este governo transitório foi, sem dúvida, o estrategista do genocídio. Esses indivíduos são visados através de diferentes processos. Todavia, não podemos esquecer que houve massacres cometidos também pelos adversários do regime Habyarimana, crimes de massa perpetrados pelo Exército Patriótico Ruandês, o setor armado do partido político Frente Patriótica Ruandesa, as forças dirigidas pelo atual presidente Robert Kagamé.
Estes crimes continuam impunes, metodicamente ignorados pela comunidade internacional, pela imprensa e pelos observadores de Ruanda. Não se trata de confrontar as vítimas do genocídio com seus carrascos. O que deve ficar claro, é que houve uma guerra civil e um genocídio. Os responsáveis pelo genocídio foram julgados em condições discutíveis, mas foram julgados. Enquanto que os militares, que assassinaram milhares de pessoas, no contexto de uma guerra civil, escaparam a todo tipo de perseguição.
MF: Depois da sua criação, a Corte Penal Internacional livrou quatro mandados contra os governos da República Democrática do Congo, Uganda, República Centro Africana e o Sudão. Desde que a sentença contra o presidente Omar El Bechir foi promulgada pelo procurador da CPI, Luis Moreno-Ocampo, o senhor se tornou uma voz dissonante, apontando os riscos que tal medida poderia provocar. Georges Clooney e seu pai, Nick Clooney, produziram o documetário “Um dia em Darfur : crônica de uma viagem”. Esta midiatização mundial do conflito poderia ter influenciado a decisão da Corte Penal Internacional de lançar um processo contra o presidente sudanês?
RB: Sim, eu acredito que seja o caso. O processo contra El Bechir me parece estar em relação direta com a campanha internacional da qual George Clooney foi um dos representantes mais célebres. Não tenho nenhuma razão de duvidar da sinceridade dele. Somente quero precisar que ele recusou o diálogo com todos aqueles que não concordavam com o tema da sua mobilização.
Assim que os Médicos sem Fronteira constataram que não havia genocídio em Darfur, entraram em contato com o ator norteamericano. Havia, porém, uma outra razão importante para solicitar este encontro: a fundação de George Clooney havia proposto dinheiro para as ações de MSF, em Darfur. Mas, como este dinheiro poderia exalar um forte perfume político e ideológico, seria delicado utilizá-lo. MSF queria, antes de mais nada, explicar a George Clooney as razões pelas quais este dinheiro não poderia ser aceito. Clooney recusou a receber seus representantes, não em razão da doação, mas por não aceitar os argumentos e os testemunhos de MSF, que eram incompatíveis com a sua posição.
É provável que haja uma relação direta entre esta campanha midiatizada e a não condenção de El Bechir. Há realmente pontos concordantes nos argumentos do procurador da CPI, Luis Moreno-Ocampo, que repete afirmações e análises provindas diretamente de “Safe Dafur" ou “Urgence Darfur France” que são, de maneira geral, seus correspondantes, seus afiliados. Afirmações, segundo as quais milhares de pessoas continuam a ser perseguidas e que os campos de refugiados são locais de genocídio em potencial, são sem fundamento.
Seguir a lógica da CPI é entrar numa inflação judiciária em que, por falta de percepção ou de informações, todos os conflitos acabarão por ser genocidários. Ora, o emprego de milícias, da tortura e o deslocamento forçado das populações são, infelizmente, práticas de guerra. Confundi-las com genocídio, é subtrair da História e da Política as relações de compromisso e de diálogos diplomáticos.
Tanto o regime sudanês como as milícias cometeram atrocidades contra a população. Mas afirmar que houve intenção de exterminar os povos de Darfur é pura especulação. Se fosse o caso, como explicar que mais de dois milhões de darfurianos procuraram refúgio junto ao exército de suas províncias, ou que um milhão deles vivem em Kartum, sem nunca terem sidos incomodados? Seria possível imaginar os Tutsis pedirem proteção às forças armadas ruandesas, em 1994 ou os judeus à Wehrmacht em 1943?
O enorme dispositivo humanitário, implantado no Darfur, contribuiu para salvar milhares de vida. A incrimação de Omar El Bechir destrói a ajuda humanitária, que sustenta a vida cotidiana destas populações, e arrruína toda possibilidade imediata de negociação entre os rebeldes e o governo.
MF: Apesar da existência de organismos internacionais criados para evitar os conflitos entre os povos e punir os responsáveis de crimes de guerra e genocídios, a Históra se repete, com transmissão ao vivo, via satélite, do que é capaz a selvageria humana. Alguns países, como os Estados Unidos, a Rússia, China e Israel jamais retificaram o Tratado de Roma, talvez por temerem suas próprias ações : Estados Unidos no Iraque; China na questão do Tibete e Israel em relação a ocupação dos territórios palestinos e os crimes cometidos em janeiro.
RB: A extrema violência dos ataques contra Gaza já seriam suficientes para serem declarados como crimes de guerra. Mas não houve guerra, houve um ataque. Além disso, me pergunto se seria possível existir guerra sem crime de guerra. Seria uma ficção. O problema fundamental da CPI, é que ela está sob autoridade direta do Conselho de Segurança da ONU. Somente a Organização das Nações Unidas pode fazer apêlo à Corte ou suspender uma decisão por ela emitida. Além disso, ela não exclui a aplicação do artigo 16 que permite suspender, durante um ano, qualquer investigação ou processo, se o Conselho de Segurança considerar as hostilidades uma ameaça à paz.
O que é evidente, por razões explicitamente políticas, que nem Putin, cuja responsabilidade nos massacres na Chechenia é imensa, nem os dirigentes chineses, americanos ou israelenses serão incomodados por quem quer que seja. Estes países ocupam posições Permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Não é o caso de Israel, mas a lógica é a mesma, já que este país é protegido pelos EUA. A impressão que ressalta da CPI, de imediato, é que alguns países são sancionados e outros, cujos crimes são tão graves ou piores, nenhuma punição é invocada. Nestas condições, podemos dizer que a CPI é seletiva, que não se trata de Justiça, mas acerto de contas, que é o oposto da verdadeira Justiça.
MF: Existe, então, pouca chance que Israel seja julgado pelos crimes cometidos contra os palestinos de Gaza?
RB: Sim. Não podemos imaginar, num futuro previsível, que estes crimes serão punidos. Algumas investigações serão efetuadas pelo próprio exército israelense e talvez uma comissão de juristas apresentará alguns relatórios. As conclusões serão contraditórias e os erros apontados serão atribuídos igualmente aos responsáveis de cada campo. Alguns soldados, que cometeram atos inaceitáveis, serão condenados para celebrar os méritos da democracia israelense e passaremos a outra coisa, como aconteceu sistematicamente com todos os crimes cometidos pelo exército israelense. Depois a imprensa evocará outros eventos, a vida seguirá seu rumo, e tudo será enterrado.
Aproveito para frisar que o ataque particularmente sanguinário e espetacular de Gaza, faz parte de uma estratégia que é, de uma certa maneira, mais grave do que os acontecimentos de janeiro. Esta estratégia visa a enfraquecer e a expulsar os palestinos, num processo lento e seguro de ganhar cada vez mais partes de territórios e aumentar a fronteira de Israel, em contradição com todas as obrigações teoricamente impostas aos israelenses pelo direito internacional. Este é o problema central do caso israelo-palestino e que evidentemente não é tratado pela CPI. Talvez a presidência de Obama tente uma abertura para o processo de paz, mas isso não quer dizer que sanções penais serão aplicadas contra os dirigentes israelenses.
MF: A presença de Ehud Barak e dos Trabalhistas no governo Benyamin Nétanyahou seria uma maneira de temperar as preocupações internacionais provocadas pela controversa nomeação de Avigdor Lieberman, chefe do partido de extrema direita ? A política deste governo será a mesma ou pior em relação ao conflito com os palestinos ?
RB: Pelo que tudo indica, penso que não haverá mudança política. Será talvez mais brutal, em razão do perfil da composição do novo governo israelense. Não devemos esquecer que Ehud Barak possui um título de glória particularmente célebre, além de seu talento de pianista: ele foi um membro ativo, um oficial do esquadrão da morte, no Líbano, nos anos 80. Seus feitos de armas heróicos consistem na sua participação na eliminação física da maior parte dos intelectuais e dos ativistas palestinos refugiados no Líbano. Não há nada a esperar da parte dele, ao contrário. Ehud Barak aceita, e o que parece lógico, fazer parte de um governo de coalizão com a extrema direita nacionalista e fascista.
O que poderá ser positivo, nisto tudo, é que este governo será dificilmente frequentável . Aqueles que hesitam a apertar as mãos de extremistas, em outras partes do mundo, como é o caso dos líderes da Palestina, vão se sentir constrangidos com a obrigação de cumprimentar Avigdor Liberman, o grande admirador de Putin, que literalmente destruiu a Chechenia. Eis o sonho de Avigdor Liberman: aplicar os métodos de Putin na Palestina. Minha única expectiativa é que a presença dos extremistas israelenses no poder, aumentará o isolamento de Israel e contribuirá, talvez, para mudar o ponto de vista da comunidade internacional. É apenas uma esperança e não uma análise
Marta Fantini é produtora e apresentadora do programa "Le Brésil en Noir & Blanc", na Rádio Campus Bordeaux - France
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