Blog do Sakamoto
Há um ano, uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego flagrou crianças trabalhando em matadouros no interior do Rio Grande do Norte em condições de dignidade zero. Limpavam tripas, arrancavam gordura, retalhavam carne, descalças, lambuzadas de sangue e fezes. As fotos ganharam a mídia de todo o país e o poder público local prometeu resolver a situação. Contudo, recebi um triste relato, dizendo que pouca coisa mudou:
Boi da Cara Preta, por Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho e coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador do RN
Cenário de um matadouro: Curral, bois, fezes, cordas, varas, marreta, facas, limas, machado, sangue, gritos, fumaça, fogo, urubus, cães, muitos homens, muitas crianças e adolescentes.
Cena 1 - Dentro de um curral que dá suporte ao matadouro, meninos batem com varas e cordas nos animais para que caminhem até o corredor da morte. Vacas prenhas, em instinto maternal, engancham seus chifres na cerca para não seguirem seu inevitável destino. Meninos batem na vaca com uma vara e ela resiste, até que um deles quebra com as mãos o rabo do animal ou enfiam-lhe a vara no ânus. Vencida pela dor, a vaca caminha. Recebe um golpe de marreta de ferro. Diferentemente dos bois, ajoelha-se e se levanta. Não pode morrer, tem um filhote na barriga – ela sabe. E, assim, são desferidas sucessivas marretadas, até que ela tomba, mas luta pela vida até seu sangue se esvair pela veia do pescoço, empoçando o chão do matadouro. Um adolescente pula sobre a virilha do animal para o sangue jorrar mais depressa – sequer tenho tempo para recobrar a respiração e outro animal é abatido.
Cena 2 - Um adolescente retira o couro do animal, as vísceras e retalha a sua carne. Ele me diz que bom mesmo é beber o sangue do boi ainda quente, com cachaça! Crianças descalças pisam no chão sanguinolento e seguem com baldes nas mãos, arrecadando pedaços de sebos, de pelancas e pedaços de carne que levarão para alimentar as suas famílias. Um menino espera ansioso pelo “fato”, como chamam o órgão que contém a bílis. O garoto fura o fato e o fel escorre em um balde, transportando-o para um tonel de cem litros. Um comprador mensal lhe pagará R$ 100,00 pelo líquido armazenado. A carne é pesada e levada por adolescentes para uma carroça que foi lavada por uma criança desde a madrugada ou para um caminhão. Esses veículos farão a distribuição para açougues e supermercados.
Cena 3 - O cenário agora é a Casa de Fato – local onde adultos e crianças cozinham as vísceras em caldeirões, com fogo a lenha, disseminando um forte cheiro de fezes cozidas. Ao longo do piso de cimento, vários montes de fezes e restos de comida retirados dos animais abatidos, tripas reviradas, patas aferventadas. Um adolescente mergulha as mãos dentro de um tonel repleto de fezes bovinas, lavando algumas peças de boi. Do lado de fora, cães e urubus se refestelam. Os cães ganham de presente um bezerro todo formado, que foi retirado do ventre de uma das vacas. O motivo de se abater uma vaca com um bezerro no ventre? Simples! A vaca estava doente, ia ser perdida mesmo e, depois, quem vai saber? O churrasco vai ser comido do mesmo jeito. Um menininho espera com seu carro de mão o resto dos restos para levar para a sua família.
Cena 4 - Em um galpão, ao lado da Casa de Fato, meninos estendem os couros frescos em um tanque, jogam sal por cima e pisoteiam descalços para compactar a salga. O odor de carniça é insuportável e alguns vermes fervilham sob um couro no chão.
Cena 5 - Amanhece o dia. Feira livre. A carne que vi sendo “produzida” é comprada pelos cidadãos daquele município e de outros próximos. Dezenas de meninos, conduzindo carrinhos de mão, transportam, por R$ 1,00 a “mercadoria” para as casas e carros dos compradores.
Cena 6 - Um matadouro moderno, construído e inaugurado há um ano, entregue pelo Governo do Estado e pelo Governo Federal, permanece fechado, repleto de teias de aranhas. O matadouro, de métodos medievais, por sua vez, continua em intensa atividade e as crianças de berços esplêndidos continuam sonhando com bois da cara preta. Já as crianças de berços não tão nobres assim, encarando e matando outros bois. E é então que, no domingo, enquanto os abastados saboreiam os seus churrascos, os pobres engolem os seus sebos e pelancas. Fecho a cortina.
PS: Lembrando a todos que 12 de junho, para além de ser Dia dos Namorados, é o Dia Internacional do Combate ao Trabalho Infantil.