Se Gramsci estivesse vivo, tenho certeza que ele faria o máximo possível para divulgar a necessidade de se democratizar as comunicações, afinal ele propunha a chegada ao poder via Democracia. E é lógico, sem diversidade de pontos de vista não existe a tal Democracia.
Para que ninguém pense que eu sou dado a estrelismos e nem me chamem de convencido, já vou avisando: escolhi a imagem do italiano Antonio Gramsci só porque acho que ele é “o cara” em termos de pensamento político. Não, não me pareço nem um pouco com ele, nem fisicamente e nem em inteligência. E também não sou assim um especialista em Gramsci, não li a sua obra completa. Não li nem os cadernos do cárcere, que ele escreveu enquanto mofava em uma prisão entre 1926 e 1934. Resumindo, seu eu fosse criancinha hoje, gostaria de ser que nem o Gramsci quando crescer. Com certeza, alguém vai aparecer para falar que isso tudo não é “original”, mas quem disse que tudo precisa ser “original” na vida?
O Gramsci foi original. Ele pegou a doutrina marxista e deu uma volta no velho barbudo. Concluiu e provou que o Socialismo não seria alcançado apenas com a luta direta do proletariado pela apropriação dos meios de produção, via Revolução.
Ele propôs que os trabalhadores, antes de conquistar a posse dos meios de produção, deveriam estabelecer por conta própria uma Hegemonia na super-estrutura, ou seja, deveriam estabelecer na cultura e na política os seus próprios pontos de vista como consenso.
Eu acho que ele estava coberto de razão. A própria burguesia fez isso para chegar ao poder. Estabeleceu os seus valores de classe como os “válidos” na sociedade, colocou o Aristocracia na sinuca (inclusive economicamente) e depois sim é que partiu para a Revolução.
Gramsci mostrou que, apesar da infra-estrutura (a produção econômica) determinar o tipo de sociedade em que vivemos, a super-estrutura (a cultura, a política, a ciência, etc.) tem um papel fundamental para quem se propõe chegar a uma transformação social. E como se tudo isso não bastasse, Gramsci propôs que o Socialismo poderia ser alcançado democraticamente, justamente através do estabelecimento de uma Hegemonia Cultural por parte do proletariado. Eu acho esse ponto de vista bárbaro.
Mas interessante mesmo seria analisar a realidade do nosso contexto a partir do ponto de vista do Gramsci, aliás isso precisa ser feito também por causa do nome da coluna (Última Análise), afinal eu não sou ninguém para escrever uma análise derradeira sobre a filosofia do nosso Antonio.
E eu acho que do ponto de vista do Antonio (olha aí, já ganhei proximidade com “o cara”), o mundo passa por um momento em que a Hegemonia do capital financeiro sofreu um abalo considerável, abrindo um vácuo para que as esquerdas proponham novos pontos de vista e se candidatem a uma Hegemonia na cultura e na política.
O Consenso de Washington não é mais consenso algum, a especulação financeira colocou os países ricos de joelhos, os países emergentes estão se saindo melhor na crise e isso ocorre justamente por causa da ação do Estado na economia. Tudo isso contradiz aquela fé ortodoxa na capacidade dos Mercados se auto-regularem.
Nesse contexto, o Brasil cresceu como nunca, diminuiu a desigualdade como nunca, controlou a inflação como nunca e passou a ser reconhecido no plano global como exemplo de condução econômica e social eficiente. Foi através da ação do Estado que o Brasil estabeleceu o maior programa de complementação de renda do mundo, aumentou o salário-mínimo, está investindo fortemente na infra-estrutura produtiva, aumentou o número de empregos formais, equalizou a questão da previdência e civilizou o atendimento, descobriu o Pré-Sal e por aí vai.
Há pouco tempo, mesmo a contragosto, a mídia teve que anunciar que no mês passado o país gerou um saldo positivo de 240 mil postos de trabalho formais. Esse é também mais um resultado do governo Lula, que conseguiu combater a maior crise internacional desde a década de 1920 utilizando recursos equivalentes a 1% do PIB e mais nada. Só para comparar, a China “torrou” nada menos do que 13% do PIB. Muito mais.
Sim, as conquistas no governo Lula são inquestionáveis, mas a mídia não mostra isso. Com certeza as famílias que gerem a mídia conhecem algo de Gramsci ou mandaram os seus “feitores” ler os escritos do nosso Antonio. Eles manipulam, distorcem e mentem. Pois sabem que o fato objetivo é que um operário conduziu bem o Brasil nos tempos de calmaria e recentemente salvou o nosso “navio” de uma tempestade perfeita.
Se as famílias Marinho, Civita e Mesquita assumissem essa realidade, estariam dando pano pra manga. Teriam de concordar que existe uma transformação na Hegemonia Política em que os donos do poder perdem eleição e perdem a moral também. E isso não pegaria bem para o “andar de cima” desse país não é mesmo? Daí é que eles dizem que esse Lula tem mesmo é “sorte” e fim de papo.
Agora falando sério: está em andamento na Argentina a aprovação de uma nova lei do audiovisual, que vai democratizar no país o controle dos meios de comunicação.
No Brasil também existem iniciativas semelhantes, mas elas encontram uma rejeição enorme por parte da própria mídia, que por sua vez representa os verdadeiros “donos do poder”.
Se Gramsci estivesse vivo, tenho certeza que ele faria o máximo possível para divulgar a necessidade de se democratizar as comunicações, afinal ele propunha a chegada ao poder via Democracia. E é lógico, sem diversidade de pontos de vista não existe a tal Democracia.
Chega daquela velha (e mesma) opinião formada sobre tudo na nossa mídia. A grande maioria da população tem muito interesse nesse tema e muitos precisam ser avisados disso.
Todas as pesquisas da inteligência contemporânea sobre a crise mundial deságuam nesta unânime conclusão: a civilização burguesa sofre da ausência de um mito, de uma fé, de uma esperança. Ausência que e a expressão de sua falência material.
Mariátegui
A experiência racionalista teve a paradoxal eficiência de conduzir a humanidade à triste convicção de que a Razão não lhe pode oferecer nenhum caminho. O racionalismo serviu apenas para desacreditar a razão. Afirmou Mussolini que os demagogos sufocaram a idéia Liberdade. Mais exato é, sem dúvida, que os racionalistas sufocaram a idéia Razão. A Razão extirpou da alma da civilização burguesa os resíduos de seus antigos mitos. O homem ocidental colocou, durante algum tempo, no retábulo dos deuses mortos a Razão e a Ciência. Entretanto, nem a Razão nem a Ciência podem ser um mito. Nem a Razão nem a Ciência podem satisfazer toda a necessidade de infinito que há no homem. A própria Razão encarregou-se de demonstrar aos homens que ela não lhes basta. Que unicamente o Mito possui a preciosa virtude de preencher seu eu profundo. A Razão e a Ciência corroeram e destruíram o prestígio das antigas religiões. Eucken, em seu livro sobre o sentido e o valor da vida, explica de maneira clara e certeira o mecanismo deste trabalho destruidor. As criações da ciência deram ao homem uma sensação nova de sua potencia. O homem, antes intimidado diante do sobrenatural, descobriu logo um exorbitante poder para corrigir e retificar a Natureza. Esta sensação desalojou de sua alma as raízes da velha metafísica. Mas o homem, como a filosofia o define, é um animal metafísico. Não se vive fecundamente sem uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito. Renan destacava melancolicamente, em tempos de orgulhoso positivismo, a decadência da religião e inquietava-se pelo futuro da civilização européia. "As pessoas religiosas escrevia vivem de uma sombra. Depois de nós, viver-se-á de quê?" A desolada interrogação aguarda ainda uma resposta. A civilização burguesa caiu no ceticismo. A guerra parece ter reanimado os mitos da revolução liberal: a Liberdade, a Democracia, a Paz. Mas a burguesia aliada os sacrificou, em seguida, aos seus interesses e aos seus ressentimentos na Conferência de Versailles. O rejuvenescimento desses mitos serviu, entretanto, para que a revolução liberal se realizasse plenamente na Europa. Sua invocação condenou à morte os resquícios de feudalidade e de absolutismo que ainda sobrevivem na Europa Central, na Rússia e na Turquia. E, sobretudo, a guerra provou uma vez mais, de forma cabal e trágica, o valor do mito. Os povos responsáveis pela vitória foram os povos capazes de conceber um mito multitudinário. II O homem contemporâneo sente a peremptória necessidade de um mito. O ceticismo e infecundo e o homem não se conforma com a infecundidade. Uma exasperada e às vezes impotente "vontade de crer", tão aguda no homem pós-bélico, era já intensa e categórica no homem pré-bélico. Um poema de Henri Frank, A dança diante da arca, é o documento que tenho mais à mão a respeito do estado de ânimo da literatura dos últimos anos pré-bélicos. Neste poema lateja uma grande e profunda emoção. Por isto, sobretudo, quero citá-lo. Henri Frank nos diz da sua profunda "vontade de crer". Israelita, trata, primeiro, de reavivar na sua alma a fé no deus de Israel. A tentativa é vã. As palavras do Deus de seus pais soam estranhas nesta época. O poeta não as compreende. Declara-se surdo ao seu sentido. Homem moderno, o verbo do Sinai não pode captá-lo. A fé morta não e capaz de ressuscitar. Sobre ela pesam vinte séculos. “Israel morreu por haver dado um Deus ao mundo”. A voz do mundo moderno propõe seu mito fictício e precário: a Razão. Mas Henri Frank não pode aceitá-lo. “A Razão – diz – a razão não e o universo”. “La raison sans Dieu c'est la chambre sans lampe.” O poeta parte em busca de Deus. Tem urgência em satisfazer sua sede de infinito e de eternidade. Mas a peregrinação é infrutífera. O peregrino queria contentar-se com a ilusão cotidiana. “Ah! sache franchement saisir de tout moment - la fuyante fumée et le suc éphemère”. Finalmente acredita que “a verdade é o entusiasmo sem esperança”. O homem traz sua verdade em si mesmo. “Si l'Arche est vide où tu pensais trouver la loi, rien n'est réel que ta danse.” III Os filósofos nos trazem uma verdade análoga à dos poetas. A filosofia contemporânea varreu o medíocre edifício positivista. Esclareceu e demarcou os modestos limites da razão. Formulou as atuais teorias do Mito e da Ação. É inútil, segundo estas teorias, procurar uma verdade absoluta. A verdade de hoje não será a verdade de amanhã. Uma verdade e válida apenas para uma época. Contentemo-nos com uma verdade relativa. Mas esta linguagem relativista não e acessível e não e inteligível para o vulgo. O vulgo não sutiliza tanto. O homem resiste em seguir uma verdade enquanto não a crê absoluta e suprema. É inútil recomendar-lhe a excelência da fé, do mito e da ação. É preciso propor-lhe uma fé, um mito e uma ação. Onde encontrar o mito capaz de reanimar espiritualmente a ordem que sucumbe? A pergunta exaspera a anarquia intelectual, a anarquia espiritual da civilização burguesa. Algumas almas lutam por restaurar a Idade Média e o ideal católico. Outras trabalham por um retorno ao Renascimento e ao ideal clássico. O fascismo, através da boca de seus teóricos, atribui-se uma mentalidade medieval e católica; crê representar o espírito da Contra-Reforma, embora, por outra parte, pretenda encarnar a idéia da Nação, idéia tipicamente liberal. A teorização parece comprazer-se com a invenção dos mais apurados sofismas. Mas todas as tentativas de ressuscitar mitos passados estão destinadas ao fracasso. Cada época quer ter uma intuição própria do mundo. Nada mais estéril que pretender reanimar um mito extinto. Jean R. Bloch, num artigo publicado na revista Europe, escreve, a tal respeito, palavras de profunda verdade. Na catedral de Chartres ouviu a voz maravilhosamente crédula da longínqua Idade Média. Mas adverte quanto e como essa voz e estranha às preocupações desta época. “Seria uma loucura escreve pensar que a mesma fé repetiria o mesmo milagre. Buscai ao vosso redor, em alguma parte, uma mística nova, ativa, suscetível de milagres, apta a encher de esperança aos desgraçados, a suscitar mártires e a transformar o mundo com promessas de bondade e de virtude. Quando a tiverdes encontrado, designado, nomeado, não sereis absolutamente o mesmo homem”. Ortega y Gasset fala da “alma desencantada”. Romain Rolland fala da “alma encantada”. Qual dos dois tem razão? Ambas as almas coexistem. A “alma desencantada” de Ortega y Gasset é a alma da decadente civilização burguesa. A “alma encantada” de Romain Rolland é a alma dos forjadores da nova civilização. Ortega y Gasset vê apenas o acaso, o crepúsculo, der Untergang. Romain Rolland vê a aurora, a alvorada, der Aurgang. O que mais nítida e claramente diferencia, nesta época, a burguesia e o proletariado e o mito. A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei num artigo sobre Gandhi, e uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais. Há algum tempo que se constata o caráter religioso, místico e metafísico do socialismo. Georges Sorel, um dos mais altos representantes do pensamento francês do século XX, dizia em suas Reflexões sobre a violência: “Encontrou-se uma analogia entre a religião e o socialismo revolucionário, que se propõe a preparação e ainda a reconstrução do indivíduo para uma obra gigantesca. Mas Bergson nos ensinou que não somente a religião pode ocupar a região do eu profundo; os mitos revolucionários podem também ocupá-la com. o mesmo título”. Renan, como o mesmo Sorel lembra, referia-se à fé religiosa dos socialistas, constatando sua inexpugnabilidade a todo desalento. “A cada experiência frustrada, recomeçam. Não encontraram a solução: a encontrarão. Jamais os assalta a idéia de que a solução não exista. Eis aí sua força”. A mesma filosofia que nos mostra a necessidade do mito e da fé, torna-se incapaz geralmente de compreender a fé e o mito dos novos tempos. "Miséria da filosofia", como dizia Marx. Os profissionais da Inteligência não encontrarão o caminho da fé; o encontrarão as multidões. Aos filósofos caberá, mais tarde, codificar o pensamento que brote da grande gesta multitudinária. Acaso souberam os filósofos da decadência romana compreender a linguagem do cristianismo? A filosofia da decadência burguesa não pode ter melhor destino. Reproduzido de MARIÁTEGUI, J. C. El hombre y el mito. In: “El alma matinal” 3ª ed., Lima, Amauta, 1964. p. 23-8 – Ediciones Populares, 3. José Carlos Mariátegui ( 1895 - 1930)
*Sociólogo e jornalista peruano foi o criador de um pensamento absolutamente original para a América Latina, fundamentado no socialismo, cujas raízes buscou nas civilizações andinas. Tais idéias, mais particularmente expostas em sua obra “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”, foram resultado de uma elaboração gradativa e constante, a partir de sua experiência européia e de sua vivência da realidade peruana. Nasceu em Moquegua, no dia 16 de julho 1894. A partir de 1914 trabalhou como o editor no jornal La Prensa e colaborou em muitos outros. Atuou em diversos gêneros literários e em 1919 criou o diário A Razão, de onde prestou apoio à Reforma Universitária e as lutas do povo trabalhador. Viajou pela Europa graças a uma bolsa de estudos e retornou ao Peru em março de 1923. Colaborou em diversos jornais e exerceu a cátedra de professor na Univerdidad Pupular González Prada. Em 1924, devido a um velho ferimento, teve amputada uma perna. Fundou a revista Amauta em 1926 e sofreu várias vezes as agruras do cárcere, assim como prisão domiciliar em 1927 durante o processo contra os comunistas. Em 1928 quebrou com o PARA e fundou o Partido Socialista, a revista proletária Labor e publicou seu clássico “Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana”. Um ano mais tarde, fundou a Confederação de Trabalhadores do Peru. Morreu em Lima no dia 16 de abril de 1930.
Werner Herzog, na realidade Werner H. Stipetic (croata: Stipetić) (Munique, 5 de setembro de 1942), é um brilhante e premiado cineasta alemão. Ele sempre é associado ao movimento do novo cinema alemão, juntamente com Rainer Werner Fassbinder, Margarethe von Trotta, Volker Schlöndorff, Wim Wenders e outros. Seus filmes sempre contem heróis com sonhos impossíveis ou pessoas com talentos únicos em áreas obscuras.
Werner Stipetić nasceu em Munique, na Alemanha. Ele adotou o nome artístico Herzog, que significa "duque" em alemão, um pouco mais tarde em sua vida. Seus pais eram Croatas. Seu pai lhe (junto com a mãe) abandonara cedo, ainda na infância, quando voltou de um campo de prisioneiros de guerra depois da Segunda Guerra Mundial. Sua família, então, se mudou para uma cidade na Austria, após uma casa próxima a deles ter sido destruída durante um bombardeio no final da Segunda Guerra. Quando ele fez 12 anos, ele e sua família mudaram-se novamente para Munique, e compartilharam um apartamento com Klaus Kinski no bairro de Elisabethstraße in Munich-Schwabing. Sobre este fato, Herzog declarou: "Eu sabia naquele momento que eu me tornaria um diretor de cinema e que eu iria dirigir Kinski."
Neste mesmo ano Herzog foi aconselhado a cantar em frente a sua classe na escola e ele se recusou veementemente. E por isto ele quase foi expulso do colégio e até os 18 anos ele não ouviu música alguma, não tocou instrumento nenhum e muito menos estudou qualquer instrumento. Depois ele chegou a declarar que daria 10 anos de sua vida para ser capaz de tocar algum instrumento. Aos 14 anos ele se inspirou em um termo de uma enciclopédia sobre cinema, que ele diz que "continha tudo que ele precisava para começar" como cineasta - isto e a câmera 35mm que Herzog roubou da Munich Film School. Ele recebeu seu diploma pós-secundarista na Universidade de Munique e apesar de ter ganhado uma bolsa escolar para a Duquesne University in Pittsburgh, Pennsylvania, ele abandonou a faculdade em poucos dias e viajou até o México onde ele trabalhou em um rodeio. No início dos anos 60 Herzog trabalhou como metalúrgico em uma fábrica de aço como forma de ajudar a financiar seu primeiro filme.
Herzog casou-se por três vezes e teve 3 filhos. Em 1967, Herzog casou-se com Martje Grohmann, com quem teve um filho no ano de 1973, Rudolph Amos Achmed. Em 1980 a sua filha Hanna Mattes nasceu do casamento com Eva Mattes. Em 1987, Herzog casou com Christine Maria Ebenberger. O filho deste casamento, Simon David Alexander Herzog, nasceu em 1989. Em 1995 Herzog conheceu a fotógrafa Lena Pisetski (agora de sobrenome Herzog) e se mudou para os EUA. Eles se casaram em 1999 e agora estão morando em Los Angeles.
Trabalhou várias vezes com seu amigo Klaus Kinski, apesar da relação tumultuosa entre os dois.
Todo fato político de primeira grandeza é sempre o desfecho natural de um longo processo. Nessa condição, constitui um resultado pré-determinado, independentemente de circunstâncias fortuitas ou da ação política dos atores que nele intervém.
Sem dúvida, é sempre possível que surjam acidentes capazes de impedir ou mudar momentaneamente o desfecho natural de um processo em curso.
O episódio da morte de Vargas, em 1954, poderia ser visto como negação da tese aqui exposta, pois, como se sabe, a notícia do suicídio do presidente fez os tanques de guerra, já nas ruas para depô-lo, retornarem rapidamente aos quartéis, temerosos da reação popular, e que a UDN, líder da conspiração golpista, visse a vitória esvair-se entre seus dedos no curso daquele mesmo 24 de agosto de 1954.
Mas se a análise desse episódio for além do meramente factual e entrar no exame do processo que o mesmo integra verá que o gesto de Vargas apenas atrasou o resultado que se obteria com sua deposição. Em outras palavras: em 24 de agosto de 1954, o desfecho do processo adiado com o suicídio de Vargas já estava traçado inexoravelmente. Com Juscelino Kubitschek, eleito alguns meses depois, o processo de industrialização prosseguiu sob o comando do capital estrangeiro e não, como queria Vargas, sob o comando do Estado brasileiro.
Por que a esquerda não pôde evitar esse desfecho, apesar de o gesto de Vargas tê-la colocado momentaneamente na ofensiva? Porque, desde a reabertura democrática de 1945, não foi capaz de fazer uma leitura correta da conjuntura, não estudou suficientemente a dialética da industrialização brasileira, não formou militantes e dirigentes em número suficiente - enfim, não se preparou com a indispensável antecedência para um confronto que a própria teoria dizia ser inevitável.
O mesmo se diga do fato-golpe de 1964 e de outros dois grandes processos que se lhe seguiram: o retorno dos civis à presidência da República (1974-1985) e a liberalização da economia brasileira (1985-2002).
O primeiro processo terminou com a substituição de uma facção da burguesia por outra facção da mesma burguesia no exercício do poder do Estado. Nada do que a esquerda pudesse ter feito após o "acórdão" entre as duas facções em disputa no interior da burguesia (centro e direita) teria o efeito de alterar o resultado.
Aliás, a tentativa petista de manter a massa na rua e radicalizar a campanha das "Diretas-Já" terminou com o fracassado comício na praça do Pacaembu, em São Paulo, que não reuniu mais do que umas cinco mil pessoas. O acidente da morte de Tancredo não teria igualmente alterado o resultado, mesmo que o empossado tivesse sido, como se cogitou na época, o Ulysses Guimarães, pois, com ele ou com Sarney, o conteúdo político da Aliança Democrática estava selado.
Se Lula tivesse vencido a eleição para a presidência, em 1989 (o que não aconteceu por uma diferença de menos de 2%), o processo de liberalização da economia (1985-2002) poderia ter sido interrompido por algum tempo (embora não se possa ter nenhuma certeza disso), mas não a impediria, porque Lula e o PT não tinham recursos de poder suficientes para evitar o desfecho de um processo impulsionado por uma força muito superior à deles: o imperialismo e a burguesia brasileira unidos no propósito de alterar a posição da economia brasileira no sistema capitalista.
A melhor prova disso é a vitória de Lula em 2002, cujo resultado consistiu unicamente em pôr em prática a mesma política de seu antecessor. Se quisesse mudar, Lula seria deposto, e isto apenas atrasaria um resultado que, em 1989, já estava determinado.
Esta análise é crucial para definir os objetivos dos partidos de esquerda em 2010. Nem que, contra toda e qualquer expectativa, der a maior "zebra" na eleição presidencial, a vitória de um candidato da esquerda não terá o condão de alterar o processo de reversão neocolonial posto em marcha com o neoliberalismo e concretizado com a vitória de Collor em 1989. A maioria de votos e o apoio da massa popular que o governo de esquerda teria – como tinha Allende e não foi suficiente para manter-se no poder, nos anos setenta – não seriam força suficiente para alterar o curso de um processo comandado pelos setores que detêm hegemonicamente todo o instrumental requerido para o exercício do poder (a burguesia brasileira e o imperialismo). Nesse sentido, a vitória de Lula em 1989, com um programa anti-capitalista, interromperia por um tempo (e poderia até mesmo dar origem a um outro processo que provavelmente até nem seria revolucionário, como se viu na "Concertación" chilena), mas não alteraria uma trajetória nacional inexorável.
Portanto, o objetivo de qualquer candidatura de esquerda à presidência da República, em 2010, só terá sentido se objetivar o reinício, expurgado de seus defeitos, de um processo que vem se desenvolvendo muito lenta e sincopadamente, desde os anos trinta: o processo de amadurecimento da luta de classes no Brasil – processo este que se encontra, neste momento, provavelmente no seu nível mais baixo.
O erro a ser expurgado consiste em acreditar ser possível reformar o capitalismo brasileiro e dar-lhe uma cara mais humana – erro este que acompanha a esquerda desde os anos quarenta e que a tem impedido de expressar realmente (e não ilusoriamente) a luta concreta (embora difusa, dispersa, confusa e contraditória) que o proletariado brasileiro vem travando contra a dominação burguesa.
Não é fácil mostrar essa realidade a uma massa popular alienada, pouco instruída, presa nas malhas da "cultura do favor"; menos ainda, formular uma estratégia de longo prazo da qual derive diretamente uma tática coerente (coisa que não aconteceu até hoje) de execução.
No quadro básico da dependência externa do país, inalterado desde sua independência política, a nova divisão do trabalho criou uma situação inteiramente inédita para o Brasil – inédita e paradoxal.
Por um lado, a substituição do modelo industrial por um modelo primário-exportador aprofunda a dependência e provoca, além de permanente instabilidade econômica, um forte movimento de regressão neocolonial, que se expressa, maiormente, no plano da cultura das elites e do povo; por outro lado, a evidente viabilidade do modelo primário-exportador (tanto pelo lado da demanda externa como das potencialidades de oferta da economia nacional) traduz-se na possibilidade de um ritmo de crescimento econômico, insuficiente para assegurar a justiça social, porém suficiente para incorporar crescentemente alguns setores da massa num nível de consumo baixo, mas superior ao que estavam acostumados. O resultado óbvio desse processo é a legitimação do modelo e do regime.
A instabilidade econômica constitui, sem dúvida, uma característica inerente ao modelo posto em prática, mas não afetará sua legitimidade, enquanto não houver uma força de esquerda coerente e suficientemente forte para capitalizar politicamente os momentos de oscilação.
Todo paradoxo consiste, em essência, numa perplexidade diante do choque gerado pela presença de duas verdades incompatíveis entre si: é verdade que o país caminha para um desastre social e ecológico de proporções monumentais; mas é igualmente verdade que, após ter conseguido gerar sua dívida externa, depois de 25 anos de marginalização do sistema financeiro, está de volta a uma prosperidade, que, embora medíocre e inferior à de outros países emergentes, permite o simulacro de um processo de incorporação da população na economia de massas, e, conseqüentemente, lhe confere um certo grau de legitimação.
Rendendo-se à evidência deste paradoxo – e procurando conhecer a fundo a realidade dos dois processos contraditórios e simultâneos –, possivelmente a esquerda encontrará formas de atuar no interior de ambos e, desse modo, articular suas ações com uma estratégia revolucionária.
O problema que precisa ser imediatamente resolvido para dar início a este processo de renascimento consiste em montar uma campanha capaz de fazer um discurso inteligível, senão para toda a massa (o que é impossível), pelo menos para uma pequena parte dela, a fim de galgar um patamar de diálogo social que lhe permita estruturar-se, no curso das próximas décadas, como uma força política real.
Em janeiro de 1970 a Unidade Popular ainda não tinha decidido quem seria o seu candidato à presidência da República. Existia certa resistência ao nome do socialista Salvador Allende que havia sido derrotado por três vezes consecutivas. Enquanto se desenvolviam as negociações, o Partido Comunista lançou o seu próprio candidato: o poeta Pablo Neruda. No entanto, a situação exigia a unidade das forças de esquerda e, finalmente, chegou-se a um acordo em torno do nome do candidato socialista.
A Unidade Popular (UP) foi composta pelos partidos socialista, comunista, radical, social-democrata, Movimento de Ação Popular Unitário (Mapu) e Ação Popular. As duas principais forças eram a socialista e a comunista. O Partido Socialista podia ser considerado a extrema-esquerda da Internacional Socialista. Muitos de seus dirigentes se diziam marxista-leninistas e defendiam Cuba socialista. O Partido Comunista do Chile, por sua vez, era o maior partido da esquerda e, nas últimas eleições, tinha conseguido aproximadamente 17% dos votos e eleito 21 deputados e 5 senadores.
A campanha da UP ganhou o país e mobilizou centenas de milhares de trabalhadores. Todos pressentiam que chegara a hora da esquerda chilena. Mais de 400 mil pessoas se reuniram no último comício realizado na capital. Em 4 de setembro de 1970 Allende venceu por uma margem bastante apertada. Ele obteve 36,6% dos votos, Jorge Alessandri do Partido Nacional (direita) 34,8% e Radomiro Tomic da Democracia Cristã 27%. Uma multidão tomou as ruas de Santiago.
Contudo, a guerra ainda não havia sido ganha. Como nenhum dos candidatos obteve maioria absoluta dos votos cabia ao Congresso Nacional, no qual a UP era minoria, confirmar o candidato vencedor. Começou, assim, uma intensa pressão da burguesia sobre os parlamentares democrata-cristãos para que não aceitassem o resultado das urnas.
A CIAtramacontra a posse de Allende
Num discurso pronunciado em 14 de setembro de 1970, o secretário de Estado estadunidense Henry Kissinger afirmou: "É muito fácil prever que a vitória de Allende possibilitará o estabelecimento de um governo comunista. Nesse caso, não se trata de um governo desse tipo numa ilha sem tradição e nem impacto na América Latina (...). A evolução da política chilena é muito séria para os interesses da segurança nacional dos Estados Unidos".
Em 21 de setembro a CIA enviou um telegrama aos seus agentes em Santiago: "O propósito da operação é evitar que Allende assuma o poder. O suborno do Parlamento foi descartado. O objetivo é a solução militar". Um relatório da embaixada norte-americana enviado à Kissinger afirmava: "o general Schneider tem que ser neutralizado, tirado da frente se por preciso". O comandante-em-chefe do Exército, general René Schneider, era um legalista e se opunha aos projetos golpistas da direita militar. Por isto, segundo a CIA, ele precisava ser eliminado.
No começo de outubro outra mensagem chegou à capital chilena: "Criar um clima de golpe mediante propaganda, desinformação e atividades terroristas destinadas a provocar a esquerda para ter um pretexto para um golpe". Alguns dias depois um agente da CIA em Santiago informou sua sede em Washington que o "general Viaux propôs seqüestrar os generais Schneider e Prats dentro das próximas 48 horas". A resposta foi: "Informar a esses oficiais golpistas que o governo dos EUA lhes dará apoio total no golpe." Os americanos não só sabiam do plano terrorista de matar o comandante do Exército chileno como o apoiavam. O próprio adido militar dos Estados Unidos entregou três metralhadoras aos oficiais golpistas, liderados por Viaux e Valenzuela, que assassinariam o general Schneider no dia 25 de outubro.
O fato ocorreu poucas horas antes da votação no Congresso que deveria homologar o nome de Allende. A CIA exultou: "24 horas da reunião do Parlamento, um clima de golpe existe no Chile (...) o atentado contra o general Schneider produziu conseqüências muito próximas das previstas no plano de Valenzuela (...). Em conseqüência, a posição dos conspiradores foi reforçada". Ledo engano.
O país ficou consternado e o resultado acabou sendo desfavorável às forças de direita. A ala democrática da Democracia Cristã venceu e, em 24 de outubro, o congresso acabou reconhecendo a vitória de Allende. Em troca exigiu a aprovação do Estatuto de Garantias Constitucionais pelo qual o novo governo socialista ficava proibido de mexer nos meios de comunicação privados, na educação e nas Forças Armadas. Um acordo que o novo governo cumpriu religiosamente nos seus mil dias conturbados.
O primeiro ministério refletiu a nova correlação de forças existente no Chile. Dele participavam cinco ministros socialistas, três comunistas, três radicais, um do MAPU, um da AP e um da esquerda independente. A esquerda havia conquistado o governo e não o poder. Os poderes legislativo e judiciário continuavam firmes nas mãos de representantes da burguesia. A subestimação deste dado da realidade criou perigosas ilusões no seio das forças socialistas chilenas.
As medidas econômicas e sociais do governo Allende
Uma das principais bandeiras da UP foi a nacionalização das minas de cobre. O cobre representava cerca de 80% das exportações chilenas e estava nas mãos de três grandes monopólios estrangeiros: a Anaconda, a Kennecott Cooper e a Serro.
A lei de nacionalização foi aprovada em 11 de julho de 1971 com o voto unânime do congresso nacional - nem a direita entreguista teve coragem de votar contra um anseio tão profundo da nação chilena. O governo também nacionalizou as indústrias do ferro e do salitre. Interveio na Companhia de Telefones do Chile, que era filial da poderosa ITT norte-americana e estatizou o sistema bancário, nele se incluía o City Bank. As nacionalizações feriram profundamente os interesses privados das companhias estadunidenses.
Após a estatização dos bancos o governo orientou o crédito para os pequenos e médios produtores e para projetos de desenvolvimento industrial e social. Houve uma significativa redução dos juros. Reativou-se o setor de construção civil, adotando uma ousada política de construção de casas populares.
Foram estabelecidas relações diplomáticas e comerciais com Cuba, China, Vietnã e Coréia do Norte. Realizou-se uma reforma agrária abrangente que resultou na quase extinção do latifúndio improdutivo. Neste período expropriaram-se cinco milhões de hectares em benefício de mais de 40 mil famílias.
As medidas econômicas e sociais adotadas levaram a que no primeiro ano de governo a produção industrial aumentasse em 12% e o PIB crescesse 8,3%, índice inédito até então. Reduziu o nível de desemprego e ocorreu um processo rápido de recuperação salarial. A participação dos assalariados na renda nacional subiu de 53% para 61%. A CUT foi legalizada e passou de 700 mil para 1 milhão de filiados.
Todas as crianças chilenas passaram a ter o direito a meio litro de leite por dia. O governo Allende ampliou drasticamente os serviços médicos e escolares. Estas medidas levaram a uma redução significativa da mortalidade infantil e dos níveis de analfabetismo. A previdência foi estendida para 330 mil pequenos comerciantes e feirantes e 130 mil pequenos industriais, artesãos, desportistas profissionais etc.
Em abril de 1971, a UP teve mais uma estrondosa vitória nas eleições municipais. Ela conseguiu 50,2% dos votos enquanto a DC atingiu 27% e o PN apenas 20%. A votação refletiu a rápida mudança de espírito das massas populares - um deslocamento para esquerda - e reforçou a tese sobre a possibilidade de um "via chilena para o socialismo". Esta se daria pela articulação do avanço institucional da esquerda, através das eleições, e a mobilização e organização das massas populares.
A ofensiva conservadora contra o governopopular
Desde a posse de Allende o imperialismo norte-americano, em conluio com setores da grande burguesia, implementou um plano metódico de destruição da economia chilena. De repente, os créditos externos desapareceram, houve uma corrida aos bancos e os capitais foram enviados ilegalmente para o exterior.
No mês de outubro de 1972 eclodiu a greve dos caminhoneiros que foi seguida por uma greve no comércio, nos transportes urbanos, nos hospitais particulares etc. Era uma greve insurrecional da burguesia. Neste período mais de trezentas mil cabeças de gado foram contrabandeadas e dez milhões de litros de leite atirados nos rios para que não chegassem nas mesas das crianças pobres. A terra não foi semeada e a produção de alimentos caiu catastroficamente.
Em pouco tempo começou a faltar alimentos nas grandes cidades. Proliferou o mercado negro e incentivou-se o processo inflacionário. O governo só não caiu graças a mobilização e a auto-organização popular. Diante da tentativa da burguesia em parar a nação, os trabalhadores ocuparam as fábricas fechadas e as mantiveram produzindo num ritmo superior a média anterior. Os camponeses ocuparam as fazendas paralisadas. Nas cidades, as comunas organizaram o abastecimento e montaram brigadas para ir ao campo ajudar na colheita e no transporte. Realizaram-se tentativas heróicas de furar o cerco imposto pela greve dos caminhoneiros. Diante da ameaça de golpe formaram-se os "cordões industriais", como instrumento de autodefesa proletária. O povo chileno tomou em suas mãos desarmadas a defesa da revolução.
O resultado desta ofensiva golpista foi a redução do nível de crescimento e o PIB caiu para 5% em 1972. Mesmo assim, esse índice não foi tão catastrófico como poderia ter sido sem a mobilização dos trabalhadores para vencer a sabotagem do imperialismo e dos monopólios. A situação econômica se tornou mais grave em 1973.
A Democracia Cristã: entre a cruz e a espada
A eleição de Allende só foi possível graças aos votos dos deputados da DC - liderados por Tomic. Durante mais de seis meses existiu um relativo entendimento entre congresso e o executivo. No entanto, vários acontecimentos minaram esta relação e colocaram a maioria da DC no colo do Partido Nacional.
Em 8 de junho de 1971 um agrupamento de extrema-esquerda assassinou o ex-ministro democrata-cristão Edmundo Zukovic. Existia uma forte suspeita que por trás das mãos dos terroristas estava a CIA. A ala direita da DC aproveitou-se da oportunidade para neutralizar a ala democrática do partido e exigiu o rompimento de todos os acordos com o governo.
Ainda em julho ocorreu, em Valparaíso, uma eleição complementar para a vaga de um deputado da DC que tinha falecido. Ali a UP havia conseguido 49% dos votos em março. Allende, então, propôs que ela apoiasse o candidato da DC e colocasse como condição que ele não fosse contra o governo. A UP recusou e lançou candidato próprio. O Partido Nacional retirou sua candidatura e apoiou, pela primeira vez, o candidato democrata-cristão - a condição agora é que ele fosse da oposição. A campanha foi dura e houve troca de acusações. O resultado da disputa foi a derrota da UP e o fortalecimento da ala direita da DC. No mesmo mês a ala esquerda daquele partido se desligou e formou o Movimento de Esquerda Cristã, que solicitou ingresso na UP.
A CIA compreendeu a importância desta eleição e destinou 150 mil dólares para o candidato oposicionista. Rompeu-se assim o equilíbrio partidário que permitiu a vitória de Allende em 1970 e foi se constituindo uma ampla frente de oposição que adquiriu um caráter golpista. O governo começou a ficar isolado no parlamento. Dias mais difíceis viriam.
No dia 10 de novembro de 1971 Fidel Castro chegou ao Chile para uma visita. Ele ficou no país por três semanas. Antes que partisse, milhares de mulheres da burguesia e das classes médias realizaram uma grande manifestação denominada "Marcha da Panela Vazia". A manifestação "pacífica" era acompanhada por grupos paramilitares de direita que tentavam provocar os carabineiros e criar distúrbios nas ruas.
O resultado das provocações direitistas foi um grave confronto que deixou vários feridos. Pela primeira vez na história chilena a polícia desbaratava, com firmeza, uma manifestação provocadora da burguesia. Indignado o presidente da Federação dos Estudantes da Universidade Católica afirmou: "acusamos o governo de transformar o corpo de carabineiro em um aliado impudico das forças marxistas". Formou-se uma cadeia nacional contra o governo Allende. Todo este movimento de "guerra psicológica" era patrocinado pelo governo norte-americano. Foi decretado o Estado de Emergência na capital para conter novas manifestações da direita.
Consolidou-se, assim, o rompimento da DC com a UP e sua aproximação definitiva com o Partido Nacional. O Congresso passou a exigir a demissão do ministro do interior, José Toha. A Câmara de Deputados votou a destituição do ministro. A decisão inconstitucional foi confirmada pelo Senado. Os três comandantes em chefe das Forças Armadas reconheceram o direito de Allende de nomear e demitir ministros. A Corte Suprema também confirmou a prerrogativa constitucional do presidente da República. No final de 1971, a legalidade ainda jogava do lado da UP.
Esta foi uma clara manobra da direita parlamentar no sentido de alterar o regime político, passando poderes do presidente progressista para um congresso conservador. Tentativa que, naquele momento, não obteve o resultado esperado. Estabeleceu-se, assim, uma clara ruptura entre os poderes da República. O parlamento se constituiu num obstáculo permanente para a ação do governo legítimo. O congresso não aprovava mais nenhum projeto do executivo e, ao mesmo tempo, não tinha quorum suficiente para destituí-lo. Abriu-se uma crise institucional de grande proporção.
As ClassesMédias e o Governo Allende.
Apesar disto, um setor importante das classes médias veio a engrossar o movimento oposicionista ao governo Allende. Por trás desta posição estavam certas predisposições ideológicas provenientes de sua posição social particular no modo de produção capitalista. Um das principais características da ideologia da classe média é o medo da proletarização.
No caso dos países capitalistas dependentes existia um agravante, como afirmou Altamirano: "as classes médias dos países de capitalismo dependente (...) gozam de um quadro de privilégios relativos. Seu padrão de vida é significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas da cidade e do campo. Aqui existe um desnível de vida consideravelmente maior que nos países capitalistas avançados, entre as massas populares, de um lado, e grande parte dos intelectuais, dos empregados e da pequena burguesia ligada ao comércio, aos transportes, de outro. Essa particularidade dificulta uma aliança objetiva com o proletariado; como o processo revolucionário deve forçosamente impor uma distribuição de renda eqüitativa para as grandes massas, a deterioração relativa dos setores médios é quase inevitável".
Para entender a essência do discurso da direita para as classes médias, utilizando de seus preconceitos arraigados, o autor utilizou uma imagem bastante interessante: "Foi como se a burguesia lhes tivesse sussurrado ao ouvido: 'Cuidado! Nós somos os primeiros, mas depois virão vocês (...). Hoje expropriam as grandes empresas, mas terminarão por estatizar até os pequenos negócios (...). Foi sempre assim em todos os países socialistas (...). De modo que a gente precisa se defender juntos'". E assim foi feito. Quando do golpe militar a propaganda terrorista anticomunista já tinha realizado o seu trabalho e uma parte da classe média estava plenamente convencida que "comunista bom é comunista morto!" e quem ainda apoiava Allende só podia ser comunista.
Terrorismo e Golpe de Estado
O clima de guerra civil e as dificuldades econômicas, impostos pela grande burguesia e o imperialismo, não haviam conseguido diminuir o prestígio do governo diante das classes populares. Nas eleições parlamentares de março de 1973, a UP conquistou 44% dos votos e se consolidou como principal organização política do Chile. O aumento do número de parlamentares progressistas inviabilizou a idéia do golpe branco, parlamentar, visando destituir Allende. Agora só havia um caminho para a oposição rebelada: o golpe militar.
Apesar da relativa redução dos votos, em relação às eleições municipais de 1971, o que podia ser constatado era um aumento constante do número absoluto de eleitores da UP: um milhão em 1970, um milhão e quatrocentos mil em 1971 e um milhão e seiscentos mil em 1973. A maioria dos trabalhadores assalariados ainda estava com Allende.
Acompanhando o crescimento da UP ocorreu o crescimento da violência promovida pela extrema-direita. Em fevereiro de 1972 o alto comando militar já havia desbaratado um plano para assassinar Allende. Foram presos vários oficiais e civis ligados ao grupo fascista "Pátria e Liberdade". Por trás do complô estavam alguns generais. Neste mesmo período, dezenas de militantes de esquerda foram assassinados. Em 26 de julho de 1973 o próprio comandante Arturo Araya, adido naval do presidente, foi morto num atentado. Nos últimos meses do governo Allende a direita cometeu, em média, 21 atos terroristas por dia.
Sob a alegação de combater a violência crescente, o Congresso aprovou a Lei de Controle de Armas. O controle voltou-se, exclusivamente, contra o movimento popular. As Forças Armadas realizaram centenas de incursões nos bairros operários, nas fábricas, nas universidades em busca de armas. Os grupos para-militares de direita não foram molestados. Era uma medição de forças para o combate que se aproximava.
Os acontecimentos se sucederam num ritmo que atropelou a própria esquerda. Em maio de 1973, setores militares ujá haviam decidido dar o golpe de Estado. Para ajudar no clima de desestabilização, os empresários patrocinaram uma greve no transporte urbano. Em resposta, em 21 de junho, a Central Única dos Trabalhadores chilena realizou uma greve geral contra o golpismo e em apoio ao governo. Um milhão de trabalhadores desfilou pelas ruas de Santiago.
Poucos dias depois, no dia 29, ocorreu uma primeira tentativa golpista. Um regimento de blindados tentou atacar o Palácio presidencial. O próprio general Prats, numa ação corajosa, se dirigiu pessoalmente para as tropas insurretas e deu ordem de prisão aos seus comandantes. Ele pagaria caro pelo seu ato.
Prats era então o comandante-em-chefe do Exército e havia sido indicado para o Ministério do Interior após a greve patronal de outubro de 1972. Era um legalista fervoroso e um obstáculo aos intentos golpistas. Isto levantou contra ele o ódio dos setores direitistas da sociedade e das Forças Armadas. Em 21 de agosto centenas de mulheres realizaram um ato na frente de sua residência exigindo sua renúncia e dirigindo insultos contra sua honra. Eram as esposas e filhas da alta oficialidade. Os generais, como era o esperado, não se solidarizaram com seu comandante. Prats foi obrigado a renunciar e com ele saíram vários generais legalistas. Estavam abertas as portas para o golpe militar.
Aproveitando o clima existente, a Democracia Cristã fez aprovar na Câmara dos Deputados uma resolução declarando a "ilegitimidade" do governo. Novamente os trabalhadores tiveram que responder as manobras de direita e realizaram uma gigantesca manifestação na qual cerca de 800 mil pessoas saíram às ruas gritando: "Allende, Allende, o povo te defende!". Sem o saber, esta seria a última homenagem que o povo chileno prestaria ao seu valoroso presidente. Era 3 de setembro.
O Golpe de 11 de Setembro
Nas primeiras horas da madrugada do dia 11 de setembro a marinha se sublevou em Valparaíso, depois de participar de uma manobra conjunta com a marinha norte-americana. As primeiras notícias eram confusas. Pouco a pouco foi ficando claro que se tratava de um golpe militar dirigido pela cúpula das Forças Armadas. A frente de todas as operações golpistas estava o novo comandante-em-chefe do Exército, um dos homens de confiança de Prats e do próprio presidente. Ele se chamava Augusto Pinochet.
Ao receber as notícias das operações militares, Allende se dirigiu ao Palácio da Moneda. Com este pequeno grupo de homens e mulheres o presidente enfrentou por horas os ataques de tropas de infantaria, blindados e os temidos bombardeiros Hawker Hunter. Às 9 horas da manhã ainda pensou em distribuir armas para os trabalhadores. Convocou o comandante-em-chefe dos Carabineiros, general Sepulveda, e perguntou-lhe:
─ General, só resta distribuir armas ao povo. O senhor pode fazê-lo? ─ Distribuir armas, eu? Como quer que eu distribua armas?
Naquele momento as últimas tropas leais dos carabineiros se retiravam. O comando já não estava mais nas mãos do estupefato general.
Depois de mais de dois anos de governo não havia sido construída nenhuma estratégia para responder a um possível golpe militar, apesar das inúmeras ameaças e do crescimento da violência fascista. Confiou-se integralmente nos dispositivos militares legalistas de Allende. Quando este falhou, o governo e o povo ficaram sem uma alternativa viável. Os poucos agrupamentos armados de estudantes e de operários foram prontamente massacrados numa luta desigual. Milhares morreram esperando os regimentos leais ao governo. Uma página heróica e trágica da história dos trabalhadores latino-americanos.
Uma proposta de constituição de uma comissão militar integrada por oficiais leais e dirigentes ligados a Unidade Popular foi rejeitada. Apenas no final de agosto de 1973 começou a ser aventada a possibilidade de aplicação da lei de Defesa Civil que permitiria articular os carabineiros, ainda leais ao governo, e as organizações populares e sindicais. Esta era uma lei de 1945 e visava defender o país quando ele estivesse em perigo iminente. O plano não conseguiu sair do papel diante da oposição.
Na verdade, como afirmou Altamirano, "faltou à Unidade Popular a capacidade de prever a alterar as formas de luta quando isto se tornou necessário". Agarrou-se às instituições do Estado burguês quando a burguesia já as havia abandonado e caminhava abertamente no sentido da insurreição armada. Continuou: "Mas não era viável nem possível a manutenção de uma linha política institucional até iniciar a 'construção do socialismo', sem provocar rupturas. Por exclusiva vontade das classes dominantes, a confrontação devia produzir-se nalgum momento desse itinerário. E, por isto, o processo devia obrigatoriamente, contar com uma estrutura defensiva militar." Recuar, fazendo novas concessões à Democracia Cristã, ou avançar, rompendo a legalidade burguesa. Uma decisão nem sempre fácil de ser tomada.
Este, talvez, tenha sido o grande dilema e uma das limitações da experiência de "via chilena para o socialismo". Mas, os possíveis erros não devem encobrir o heroísmo da esquerda chilena e de seu valente presidente. As últimas palavras de Allende ainda repercutem na alma do seu povo: "Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar (...) pagarei com minha vida a lealdade do povo (...). Outros chilenos superarão esse momento amargo em que a traição pretende se impor; continuem sabendo que muito mais cedo que tarde novamente se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!". Em poucos minutos cairia morto o companheiro presidente e o povo nas barricadas e nas ruas responderia: "Allende, presente! Agora e sempre!".
Bibliografia:
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ALEGRIA, Fernando. Allende, a pazpelosocialismo, São Paulo: Brasiliense, 1983
DEBRAY, Régis. Conversación com Allende. México: Siglo Veintiuno, 1973
GARCÉS, Joan. Allende e as armas da política. São Paulo: Scritta, 1993
HARNECKER, Marta. Tornarpossível o impossível. São Paulo: Paz e Terra, 2000
JARA, Joan. Cançãoinacabada: a vida de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 2002
MARÍN, Gladys. "Salvador Allende en el centro da la conciencia de los pueblos" in La Insignia, Chile: janeiro de 2003
MORAES, João Quartim de. Liberalismo e Ditadura no ConeSul. IFCH-Unicamp, 2003
Augusto César Buonicore é historiador e membro do ComitêCentral do PCdoB
Estudantes e servidores públicos promoveram na manhã desta quarta-feira uma manifestação em favor do impeachment da governadora Yeda Crusius (PSDB) e do afastamento do deputado Coffy Rodrigues (PSDB) da relatoria da CPI da Corrupção. Repetindo seu reacionarismo tedioso e preguiçoso, Zero Hora destacava em seu site que “manifestação de estudantes atrapalha o trânsito”. Atrapalharam mais, na verdade, o sossego dos acusados de integrar uma quadrilha que roubou cerca de R$ 44 milhões de reais dos cofres públicos.
Segundo os organizadores, a manifestação reuniu cerca de 2 mil pessoas, de diversas cidades do Estado. Iniciou em frente ao Colégio Julio de Castilhos e terminou na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini. Após o ato, estudantes e servidores públicos entraram no prédio da Assembléia Legislativa, com cartazes e embalagens de papel pedindo o afastamento de Coffy e o impeachmente de Yeda.
O Fórum dos Servidores Públicos Estaduais também promoveu um ato pela manhã, na Esquina Democrática, centro de Porto Alegre. Composto por dez entidades de servidores públicos, o Fórum critica a postura dos deputados da base aliada do governo Yeda na CPI da Corrupção, principalmente a do deputado Coffy Rodrigues que vem tentando barrar as investigações.
Por iniciativa do Fórum dos Servidores, monumentos de Porto Alegre e de Canoas amanheceram cobertos com um capuz com a seguinte frase: “Deputado Coffy nos deixa cobertos de vergonha – está do lado da corrupção – Fora Yeda/Impeachment Já”. Cartazes também foram colocados nas ruas dos dois municípios. Hoje à tarde, o Fórum entrega um documento exigindo o afastamento do deputado Coffy da relatoria da CPI da Corrupção ao presidente da Assembleia Legislativa, Ivar Pavan. Cópia do material será entregue também para a deputada Stela Farias, presidente da CPI.
"A laicidade é exigida sempre do Estado, nunca do cidadão, do particular, para o qual vale a liberdade de professar qualquer crença ou religião"
Paulo Gustavo Guedes Fontes é mestre em direito público pela Universidade de Toulouse (França) e procurador da República em Sergipe. Artigo publicado na "Folha de SP":
Depois de provocar muita polêmica em 2004, quando seu uso foi proibido nas escolas públicas francesas, o véu islâmico voltou a agitar a política da França e da Europa neste ano. No último dia 22 de junho, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, manifestou aos deputados e senadores da França o seu repúdio ao uso da burca e do chador e seu apoio a eventual ato legislativo que pretenda proibi-los no território francês. (A burca e o chador nada mais são do que a versão mais fechada do véu islâmico.)
Sarkozy afirmou, na ocasião, que a questão não teria caráter religioso, mas diria respeito à igualdade entre homens e mulheres. Para o presidente francês, a burca é um signo de submissão das mulheres.
Nessa mesma linha, em 4 de dezembro de 2008, a Corte Europeia dos Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, considerou justificada a expulsão de duas alunas muçulmanas de uma escola pública francesa por terem se recusado a retirar o véu nas aulas de educação física. Aquela corte entendeu que não houve desrespeito à liberdade religiosa.
Contudo, tais medidas podem, sim, ferir gravemente a liberdade de crença e de religião. É compreensível que se proíba o uso de signos religiosos pelos representantes do Estado, como juízes, policiais ou mesmo professores de escolas públicas. Mas que tal proibição atinja o próprio cidadão na sua vida privada, isso constitui uma deturpação do princípio da laicidade.
Não se pode entender a laicidade do Estado sem referência à liberdade religiosa. É a outra face da moeda. Por que razão o Estado deve ser laico? Porque, representando todos os cidadãos, não poderia abraçar uma opção religiosa sem alienar dessa representação os cidadãos de outra crença ou mesmo os que não professem religião alguma. Assim, a liberdade de religião, aliada a uma nova concepção do Estado e da igualdade, está na origem da laicidade.
De qualquer forma, é aos agentes e funcionários do Estado que o princípio da laicidade se dirige, vedando que expressem, no exercício da função pública, suas preferências religiosas. Os edifícios públicos, da mesma maneira, deveriam manifestar essa neutralidade diante da religião.
A laicidade é exigida sempre do Estado, nunca do cidadão, do particular, para o qual vale a liberdade de professar qualquer crença ou religião. A menina que vai à escola francesa não representa o Estado. É para que os cidadãos possam usar crucifixos, véus ou quaisquer signos religiosos que o Estado se laicizou, que se tornou neutro diante da opção religiosa.
Vedar à jovem o uso do véu islâmico, mesmo na escola pública, é violentar sua liberdade religiosa, mormente pela importância que essa questão tem para as mulheres muçulmanas. Vedar o seu uso no território de um país é medida que remete às guerras de religião.
O que tem sido professado na França é uma deturpação da laicidade, o laicismo, versão militante daquela. Ele perde de vista a liberdade religiosa e quer impor à população uma forma de secularização.
Norberto Bobbio estabelece essa distinção. Para ele, a laicidade, ou o espírito laico, não é em si uma nova cultura, mas uma condição de convivência de todas as possíveis culturas. Por outro lado, assevera que o laicismo que "necessite armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja em oposição às demais".
Por fim, parece igualmente autoritário o argumento de Sarkozy de que a proibição visaria à igualdade entre homens e mulheres. Ainda que se considere o véu islâmico incompatível, mormente na forma da burca, com a visão que temos da mulher no Ocidente, ele é certamente um signo religioso.
Se uma mulher oculta seu rosto e cabelos - ou o corpo inteiro - por respeito à religião ou se o faz por medo do marido ou do militante islâmico do bairro, só ela pode saber.
Na dúvida, para não ferir algo tão íntimo e inviolável quanto a liberdade de crença e de religião e para não retrocedermos alguns séculos, é melhor deixar que ela retire o seu véu espontaneamente, convencida que venha a ser disso pela cultura ocidental da igualdade, da liberdade e da fraternidade - que costumavam ser a divisa dos franceses.
No Rio Grande do Sul, há muito se luta contra a desvalorização do ensino público. Com maior vigor, o debate entrou nos lares da classe média gaúcha, a partir de 2007, com a falta de professores, enturmação, redução de recursos, ameaças aos direitos dos educadores, os quais fazem parte do “novo jeito de governar”, implantado por esses pagos com o (des)governo do PSDB. É de conhecimento geral que o tal “déficit zero” existe apenas nos serviços públicos mais necessários: saúde, educação e segurança – totalmente deficitários em condições de trabalho e atendimento à população que paga seus altos impostos, sem receber os serviços a que tem direito e zero em investimentos. Para 2010, de acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias já aprovada, haverá redução de verbas na ordem de R$1,2 bilhão para a Educação e R$ 800 milhões para a Saúde. Em contrapartida, gastará, ainda em 2009, R$ 93 milhões em publicidade. Até aqui, falava-se no problema apenas do RS. Agora as manchetes também trazem à tona queixas semelhantes noutros estados, o que significa que a lógica neoliberal implanta-se por todo o país, com aval do governo federal. São salários defasados e congelados há vários anos, ausência de concursos públicos e aumento na contratação de servidores emergenciais, retirada de direitos dos trabalhadores, redução de verbas, criação de meritocracia, avaliação externa, terceirização e privatização, além da ameaça de demissão, entre outras invenções que objetivam o desmonte do serviço público, ou seja, a inserção do estado mínimo. A vizinha Santa Catarina enfrenta a falta de concursos públicos e aumento de carga horária, através da alteração da grade curricular, possibilitando o tal cabide de empregos para apadrinhados políticos que pouco se importam com a qualidade dos serviços prestados, além dos salários e recursos congelados há vários anos (governo PMDB/PSDB). No Rio de Janeiro (governo PMDB), os profissionais da educação estão em greve desde o dia 08 último. Os educadores já sofreram a repressão policial (gás lacrimogêneo, balas de borracha e armas de fogo), com o intuito de impedir o protesto por melhores condições de trabalho – e consequentes resultados mais positivos –, além da defesa dos direitos dos trabalhadores – plano de carreira. Somente para mencionar os estados mais populosos e próximos, lembre-se ainda que em São Paulo e Minas Gerais (governados pelo PSDB) não é novidade a constante mobilização de professores e estudantes reivindicando seus direitos. Enfim, percebe-se que o descaso é tamanho que o movimento estudantil volta a se erguer, a exemplo das décadas de 60 e 90. A juventude mobiliza-se, exigindo respeito por seus direitos, juntamente com os sindicatos e movimentos sociais. Nos desfiles comemorativos ao 7 de Setembro, inúmeras apresentações levaram às ruas os protestos pelo fim da corrupção, seja no governo Yeda/Feijó (RS), seja pelo “Fora Sarney” e o senado federal. Nesta quarta-feira, dia 16, em Porto Alegre, os jovens irão às ruas novamente, engrossando o pedido de impeachment de Yeda Crusius. São essas ações que corroboram para a necessidade de respeito à educação em todo o país e bom número de jovens brasileiros já entendeu que somente o povo na rua, cobrando dos governantes seus direitos, poderá fazer com que o Brasil deixe de ser o país do “vale-tudo” ou do “jeitinho”. Afinal é a educação de qualidade que forma cidadãos críticos, convictos e éticos. E estes conceitos são, sim, ensinados na escola pública, gratuita e de qualidade.
*Eunice Souza Couto – professora estadual, representante do 17º núcleo/CPERS Sindicato, militante da corrente sindical Democracia e Luta
A Hungria, que já foi um país razoavelmente próspero, não conhecia o desemprego quando era socialista. Hoje, imersa na crise econômica e submissa aos ditames da ‘Comunidade Européia’, vê sua população empobrecer, suas empresas fecharem e as condições de vida da maioria da população se deteriorarem a cada dia.
Com uma população de 10 milhões de habitantes e cerca de 10% dela composta pela etnia romani, também conhecida como ciganos, a Hungria passou a ter maiores dificuldades para integrar esse contingente desde a volta do capitalismo em 1989. “Trata-se de um processo dos últimos 20 anos. Os governos de transição ao capitalismo não foram capazes de abordar o problema com a profundidade necessária”, disse Anikó Bérnat, socióloga do Instituto Tarki. “O desemprego e a miséria em que vive a maioria da população cigana da Hungria é tal, que agora cresce uma segunda geração de romani que não viu seus pais trabalharem”, afirmou. A miséria e as dificuldades, a descoesão do tecido social provocada pela irresponsabilidade de governos descomprometidos com o desenvolvimento do país, fez crescer o racismo e os conflitos étnicos. O governo ao desamparar a população, deixou campo aberto para a proliferação de ideologias de direita radical pró-fascistas como o Partido Jobbik, um grupelho pequeno mas barulhento que tem conseguido, no grito, intimidar o governo da Hungria. A ponto de conseguir manter, mesmo ilegalmente, a existência de suas próprias patrulhas paramilitares, a “guarda húngara”, as quais têm como principal objetivo a agressão à parcela mais discriminada da população húngara, a etnia romani, a mais importante minoria étnica do país, que habita a região há 500 anos. Reportagens publicadas pela revista HGV mostram que o partido Jobbik, de orientação pró-nazista, já mobiliza setores da população com seu discurso de ódio aos romani. A ‘guarda húngara’, formação policial inspirada nos movimentos fascistas mantidas há mais de 10 anos pelo Partido Jobbik, serve para legitimar o ódio inter-étnico e a discriminação aos romanis por ela sempre atacados. Diante desse quadro o governo da Hungria tomou a lamentável medida de, para contrarrestar a situação visando as próximas disputas eleitorais, criar as suas próprias patrulhas de paramilitares, a ‘Guarda de Vila’. O Primeiro Ministro, Gordon Bajnai, nomeado pelos socialistas e por eles considerado um ‘independente’, diz com todas as letras que “as guardas de vila são parecidas em tudo com a ‘guarda húngara’ de direita” e que “a ordem deve regenerar a Hungria. As guardas de vila são determinantes para a evolução e a gestão da crise”, declarou Bajnai ao jornal Pester Lloyd em Miskolc, cidade no nordeste da Hungria, onde falava para uma platéia de agentes de segurança e aspirantes de auxiliares de polícia e policiais. Coincidentemente, ou nem tanto, essa cidade tem entre seus habitantes um grande contingente da etnia romani em sua maioria desempregados, vivendo em extrema pobreza. O índice de criminalidade em Miskolc é dos mais altos da Hungria e da Europa. Para compor a ‘guarda de vila’ os auxiliares de polícia são recrutados entre os jovens sem escola, sem trabalho e sem perspectivas. Eles estão sendo formados para serem os ‘guardiães da ordem’, mas na verdade continuarão sem perspectivas e sem futuro na medida em que não são chamados a contribuírem para o futuro do país, pois de nada vale essa ‘guarda de vila’, expressão de retrocesso, reacionarismo divisão e ódio que ela estimula. Caso emblemático aconteceu em fevereiro na aldeia de Tatarszentgyörgy, o assassinato de um cigano e de seu filho de apenas cinco anos, cuja notícia correu mundo. Os romanis foram vítimas da perseguição nazista durante a II Guerra Mundial, quando a Hungria foi invadida e ocupada pela Alemanha Hitlerista. Foi a parcela da população que mais sofreu com a volta do capitalismo, sua expectativa de vida é 10 anos menos que a média do conjunto da população húngara. Apenas um terço das crianças romani frequentam a escola. Com o agravamento da crise gerada pelos monopólios, a União Européia impôs a redução dos gastos do Estado, em particular dos salários dos trabalhadores públicos. As despesas orçamentárias comunais e federal e o sistema de transporte público terão redução da ordem de 100 bilhões de florins ou o equivalente a 370 milhões de euros, enquanto os preços dos alimentos e da energia não param de subir. Os bancos alemães e austríacos, principais instituições financeiras da Hungria, também pressionam pelas medidas de contenção dos investimentos públicos. Depois das privatizações da década de 1990, austríacos e alemães se impuseram como os principais investidores no mercado húngaro, sugaram tudo que tinha sido construído durante o período socialista e agora, com a crise, recuaram e passaram a fechar as empresas e demitir trabalhadores. A Agência de Promoção do Comércio e do Investimento, ligada ao governo, informou que em 2008 houve um investimento de 900 milhões de euros feito pelos austríacos, e que isso representou ¼ dos investimentos diretos que o país recebeu, mas que isso não se repetiu em 2009 e atualmente não existe absolutamente nenhum investimento austríaco na Hungria. Esses investimentos diretos não geraram nem um pontinho de crescimento ao país, pois muito mais do que foi investido foi retirado e reenviado para as matrizes, como é da natureza e característica desse tipo de operação realizada pelos monopólios. Não satisfeita com a sangria imposta pelos “Investidores Diretos”, a Câmara de Comércio Americana na Hungria também pressiona o governo húngaro a tomar medidas neoliberais: “para reforçar a competitividade do país são necessárias medidas mais profundas do que as que já foram tomadas até aqui”. Enquanto isso, prossegue a tragédia húngara. O partido Jobbik e a ‘guarda húngara’ matam os ciganos cada vez mais frequentemente. Só em março foram 7 num só dia, afirmou Balázs Dénes diretor de uma ONG de defesa dos direitos humanos.Mas – seria cômico se não fosse cínico - o Conselho da Europa e sua Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância criticou a Hungria pelo aumento do racismo.
As informações, veiculadas pela mídia, sobre um eventual apoio do PSOL à candidatura de Marina Silva em 2010 não foram, até o momento, objeto de qualquer declaração oficial do partido. Mas a possibilidade de ocorrer tal aliança já vem suscitando um debate entre os militantes. É provável que muitos militantes vejam com simpatia essa hipótese, até mesmo em função de declarações de Heloisa Helena que está cada vez mais propensa a disputar o senado por Alagoas, em vez da presidência da República.
Há, além disso, a força da imagem de Marina Silva e sua biografia política que a projetou nacional e internacionalmente como ícone da causa ambiental. Não é por acaso que sua candidatura tem causado forte impacto no cenário político nacional, atraindo apoios importantes de ambientalistas, intelectuais, além de petistas desconfortáveis com a candidatura Dilma. Alavancada pela mídia, ela tem aparecido como o fato ‘novo’ na política nacional.
Mas a biografia política da senadora e ex-ministra do Meio Ambiente não são suficientes para que sua candidatura possa ser considerada uma alternativa política a ser apoiada pelo PSOL. Queremos apresentar a nossa visão de que uma eventual decisão de apoiá-la em 2010 poderá significar a descaracterização da nossa identidade política e ideológica. Basicamente são dois os argumentos que nos levam a essa conclusão. Primeiro, consideramos que a filiação da senadora ao PV é, por si só, um impedimento a uma aliança política. Segundo, a política da senadora é inconsistente, contraditória e limitada, não oferece uma resposta às demandas imediatas e tampouco proporciona uma alternativa estratégica global.
PV: a improvável "refundação"
"O PV hoje tem alianças que o levam a apoiar governos de tendências diversas e até conflitantes, além de abrigar parlamentares processados por grilagem de terras. Analistas consideram que, mais do que utopia, Marina vai encontrar no PV demasiado pragmatismo" (Valor Econômico, 18/8/2009).
A citação demonstra que mesmo os analistas burgueses são céticos quanto à "refundação" do partido, anunciada pela senadora e pela direção do PV. As mudanças supostamente abarcariam desde uma "revisão programática", passando por mudanças na estrutura do partido, até uma "depuração" nos seus quadros partidários. Sem queremos ser céticos, não é possível acreditar que tais promessas possam ser cumpridas.
A principal característica do PV é o seu fisiologismo, profundamente arraigado na sua prática política e sua estrutura partidária. Desde seu surgimento, o partido fez alianças com praticamente todos os partidos existentes no país. Fez parte do governo FHC, ocupando a pasta do MMA. No governo Lula, ocupa desde o início o Ministério da Cultura. Chegou a apoiar Blairo Maggi, maior plantador de soja do país e inimigo mortal do meio ambiente. Ocupa hoje cargos nos governos de Gilberto Kassab (DEM-SP) e José Serra (PSDB-SP). Governa a prefeitura de Natal, conquistada em aliança com o DEM.
Mesmo na política ambiental encontramos no partido, ao lado dos ambientalistas chamados "históricos", deputados que defendem a energia nuclear como Ciro Pedrosa e Fábio Ramalho (PV-MG), além do deputado Lindomar Garçon (PV-RO), que apoiou a construção do Complexo Hidrelétrico do Madeira. Exemplos não faltam.
Uma "refundação" exigiria que o PV rompesse suas alianças com a direita e abandonasse cargos ocupados em governos de direita, como os de Serra e Kassab. Mas não há qualquer sinal de que haja, de fato, uma mudança de rumo. Ao contrário, são fortes os sinais de que o partido continuará com a mesma linha, ainda que atenuada. Na mesma semana em que o PV anunciou a solenidade de filiação de Marina Silva, dirigentes do partido de Minas Gerais declaravam a intenção de apoiar Aécio Neves, enquanto em São Paulo o PV revelava ter feito convite ao ultra-conservador Gabriel Chalita para disputar uma vaga no senado pela sigla verde. Chalita, hoje vereador pelo PSDB, foi secretário do governo Alckmin.
Também é difícil dar crédito a discursos sobre "depuração" e "ética na política" vindos de alguém como Fernando Gabeira, candidato à prefeitura do Rio de Janeiro em 2008, com o apoio do PSDB, DEM e da Rede Globo.
A própria Marina Silva, na entrevista coletiva após a sua filiação, tratou de minimizar a heterogeneidade das alianças do partido, afirmando que "alianças heterogêneas existem em todos os partidos e isso não é privilégio do PV". José Luiz Penna, presidente do partido, foi mais claro ainda ao declarar que a aliança preferencial é com as "sociais democracias e o país tem uns cinco partidos assim". Certamente, entre esses cinco está o Partido da Social Democracia Brasileira...
Finalmente, qualquer "refundação" que signifique uma mudança radical nas propostas e na prática exige o reconhecimento e a autocrítica em relação aos erros cometidos no passado. Tampouco somos otimistas quanto a isso. Uma análise e uma projeção realista nos dirão que possivelmente haverá mudanças, mas provavelmente serão superficiais e, mesmo assim, mais formais do que reais. Não se muda em poucos meses um partido com uma cultura política fisiológica que se formou e se consolidou no decorrer de duas décadas.
Pode haver a tentação de subestimar ou minimizar os problemas do partido em função das características e virtudes da candidata Marina Silva. Mas a sua filiação ao PV se deu após um período de reflexões e discussões. Não dá para imaginar que para tomar a sua decisão não tenha levado em conta os prós e contras do PV. E se decidiu se filiar ao partido é porque chegou à conclusão de que as convergências políticas e outros aspectos positivos sobrepujam os aspectos negativos. Já não é possível dissociar Marina Silva do PV. Ela tornou-se a sua principal figura pública, e nessa condição também terá que arcar com o ônus dos erros e equívocos do partido.
Não imaginamos qualquer argumento que possa justificar uma aliança com o PV, ou possa sugerir um apoio a Marina Silva, desconsiderando o papel e as características do partido. A não ser que se pense em termos puramente eleitorais. Mas isso seria adotar a mesma lógica que tem caracterizado a prática fisiológica e oportunista do PV.
Limites do ‘desenvolvimento sustentável’
Ao se filiar ao PV, Marina Silva anunciou a sua intenção de apresentar em 2010 um projeto de "desenvolvimento sustentável" para o Brasil. A definição mais conhecida de "desenvolvimento sustentável" é a de um desenvolvimento capaz de prover "as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender às necessidades das futuras gerações", segundo a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela ONU em 1983. Os pressupostos básicos dessa visão são o reconhecimento da finitude dos recursos naturais e a necessidade de harmonizar crescimento econômico e sustentabilidade ambiental.
Apesar de sua aparente coerência, essa definição é falha, vaga e abstrata. Não define o que se entende por "necessidades" e "desenvolvimento". Constata o risco de esgotamento dos recursos naturais, mas sem detectar os processos e mecanismos que provocaram tal situação. E a idéia de harmonizar desenvolvimento e sustentabilidade é muito mais uma formulação (vaga) de uma meta necessária, mas sem apresentar qualquer proposta ou modelo que a viabilizem. Na melhor hipótese, leva a políticas de mitigação de impactos e de conservação/preservação da natureza.
Uma conseqüência imediata dessa perspectiva é entender a crise ambiental e as necessárias políticas para combatê-la como algo que se situa acima das classes sociais e para além de divisões ideológicas. Um olhar minimamente atento constataria que a situação-limite a que o planeta chegou é o corolário de uma devastação brutal da natureza ocorrida nos últimos cinco séculos. Esse período corresponde, não por coincidência, à vigência do modo de produção capitalista, desde a sua gênese aos dias de hoje. A escala e a velocidade vertiginosa dessa apropriação predatória dos recursos naturais só se explicam pelas características específicas do capitalismo, cuja razão de ser é a expansão permanente de capital, a ampliação incessante de mercados, a produção contínua e crescente de mercadorias. Em outras palavras, um sistema que exerce uma pressão permanente e crescente sobre os bens naturais para viabilizar a produção de mercadorias.
A proposta do "desenvolvimento sustentável" mostra-se irrealizável e utópica, na medida em que supõe ser possível harmonizar ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’ nos marcos do modo de produção capitalista. E por ignorar esse fator "capitalismo", o conceito das "necessidades" a serem supridas agora e no futuro, bem como as críticas ao "modelo de consumo", permanecem nos marcos das generalidades abstratas. Isso explica a tendência a uma sobrevalorização de "valores éticos", mudanças de hábitos de consumo, a formação de uma "consciência ambiental" etc. Não que não tenham importância, mas por si só não podem garantir o objetivo de uma sociedade sustentável.
Mais do que nunca é preciso ir à raiz das questões, ser radical. Vivemos em um mundo onde, de um lado, bilhões não têm acesso ao mínimo necessário para sobreviver, enquanto, de outro lado, temos o reino "maravilhoso" do consumo de mercadorias que costumam ser caracterizadas como "objetos de desejo". A ampliação de mercados não se dá apenas pela expansão geográfica do comércio ou pela geração de novos bolsões de consumidores como a chamada "nova classe C", mas também pela criação do que Marcuse chamou de "falsas necessidades" e por uma produção de mercadorias fadadas a se tornarem obsoletas em um curto prazo de tempo, a exemplo dos computadores e outros eletroeletrônicos, o que corresponde ao que Meszaros chamou de ‘taxa de utilização decrescente dos valores de uso’. E esse desperdício, característica intrínseca ao capitalismo, acentuou-se ainda mais desde a consolidação da hegemonia neoliberal nos anos 90. Nada indica que tais características desapareçam sob o capitalismo. Continuarão existindo, com "selo verde" e declarações de amor à natureza.
Podemos entender que a comissão da ONU não tivesse reconhecido explicitamente no capitalismo a causa da devastação ambiental planetária. Mas não hoje em dia, quando há uma abundante produção teórica e científica de cientistas, intelectuais e militantes ecossocialistas ou mesmo "socioambientalistas", que apontam claramente esse fato. Não se trata, repetimos, de mera ideologia. As conseqüências dessa discussão são políticas e práticas concretas.
O "desenvolvimento sustentável" de Marina Silva
Em todos esses anos de governo Lula, Marina Silva mostrou os limites e as contradições da sua concepção de "desenvolvimento sustentável" que norteou suas posições e políticas adotadas durante a sua gestão no MMA.
Em algumas ocasiões, estivemos ao seu lado, como na luta contra a liberação dos transgênicos, na luta contra a importação de pneus e, mais recentemente, no combate à MP da grilagem. Além disso, seu papel na COP8 foi outro momento em que desempenhou um papel importante.
Mas em outros momentos, prevaleceu o conflito de posições. Enquanto nos solidarizávamos com D. Luiz Cappio, durante sua greve de fome contra as obras de transposição do rio S. Francisco, Marina Silva apoiou a transposição. E aos movimentos contrários à obra, afirmou que "nossa decisão não é a favor do governo ou dos movimentos. É uma decisão absolutamente técnica sobre um processo de licenciamento transcorrido com absoluta isenção e independência".
Quando eclodiu a greve contra a divisão do Ibama pelo MMA, nós estivemos do lado dos trabalhadores, enquanto a ministra Marina Silva mostrou-se irredutível, enfrentando mais de 6 mil trabalhadores e trabalhadoras de todo o país que denunciavam o desmonte do órgão pelo governo Lula e o MMA. João Paulo Ribeiro Capobianco, então secretário-executivo do Ministério afirmou: "É uma greve política: contra a decisão do presidente Lula e não tem base legal para ser mantida".
No caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, inicialmente chegou a entrar em choque com um presidente Lula irritado pela morosidade no processo de licenciamento ambiental. Mas também acabou cedendo após algumas modificações no projeto:
"No início da discussão nós tínhamos um empreendimento que tinha a previsão de um lago oito vezes maior, três empreendimentos e feitura das eclusas para dar perenidade ao rio no processo de navegação", afirmou a então ministra do Meio Ambiente. É importante lembrar que até hoje os movimentos sociais lutam para impedir as obras.
Há uma idéia equivocada de que a concessão acelerada de licenças ambientais começou com o "carimbador maluco" Carlos Minc. O documento "Orientações estratégicas do MMA" para o Plano Plurianual 2008-2011, cuja versão final data de 17 de julho de 2007, quando Marina Silva ainda era ministra, é bastante elucidativo. A quem puder baixar o documento disponível no site do MMA, sugerimos a leitura do objetivo setorial 2, que tem como nome "Aprimorar o licenciamento ambiental e desenvolver instrumentos de planejamento e gestão ambiental em apoio ao desenvolvimento sustentável". Ali, podemos ler que "o Sistema de Licenciamento precisa atingir um novo patamar adequado para o atendimento às necessidades dos setores de infra-estrutura da política de governo. Para tanto é necessário que se realizem aperfeiçoamentos para uma melhor sistematização de critérios e procedimentos operacionais e administrativos do licenciamento ambiental". Engana-se quem pensar que o documento aponta para a necessidade de transparência, maior participação social ou critérios de avaliação mais adequados. Após vários parágrafos de considerações e de propostas, o documento apresenta os seguintes "Indicadores de Desempenho":
"Tempo de análise para manifestação sobre os pedidos de licença ambiental:
٭ Tempo de análise para manifestação final sobre a viabilidade ambiental de empreendimentos/atividades menor ou igual a 1 ano, após a entrega do estudo ambiental pelo empreendedor;
٭ Tempo de análise para manifestação final, visando autorizar a implantação do empreendimento/atividade, menor ou igual a 6 meses, contado a partir da data do pedido da licença de instalação;
٭ Tempo de análise para manifestação final, visando o início da operação do empreendimento/atividade, menor ou igual a 4 meses, contado a partir da data do pedido de licença de operação.
- Implantação de 2 novos instrumentos de gestão ou de planejamento ambiental, de suporte ao licenciamento ambiental, em 4 anos".
Como se vê, a preocupação real é a redução do tempo para a concessão de licenças ambientais. E não por acaso, as metas apontadas nos "Indicadores de desempenho" são semelhantes às sugeridas pelo Banco Mundial em seu relatório "Licenciamento de Usinas Hidroelétricas no Brasil", encomendado à instituição pelo Ministério de Minas e Energia (disponível no site do Banco Mundial).
Há ainda casos paradigmáticos como a concessão de Licença Prévia (LP) à UHE de Tijuco Alto. Durante 20 anos os movimentos sociais do Vale do Ribeira conseguiram impedir a concessão da LP. Antonio Ermírio de Moraes obteve finalmente a LP, durante a gestão Marina Silva... Uma curiosidade: o presidente do Ibama era Basileu Margarido, que se filiou ao PV no mesmo dia que a senadora.
Como um último exemplo citaremos a Lei de Concessão de Florestas Públicas para exploração comercial sustentável. Um nome pomposo que poderia ser traduzido em aluguel de florestas públicas para a exploração insustentável com selo verde. O projeto original havia sido encaminhado ao Congresso Nacional no período final do governo FHC. Foi retirado de pauta logo após a eleição de Lula em 2002, não para ser engavetado definitivamente, mas para ser reciclado pela equipe do MMA sob o comando de Capobianco, também filiado ao PV. A idéia de que a melhor forma de preservar as florestas é entregando-as para exploração comercial "sustentável" talvez seja a que melhor sintetiza a essência do "desenvolvimento sustentável".
Aliás, uma das características já apontadas é a visão de que as questões ambientais se sobrepõem a interesses de classes. Isso se materializa na concepção de que os empresários são também "parceiros" na "gestão ambiental compartilhada". A mesma lógica, presente nas políticas do governo em outras áreas, foi aplicada e reproduzida por Marina Silva. Não por acaso, no decorrer dos sete anos de governo Lula, encontramos com freqüência logotipos de empresas como o Banco Mundial, BID, BNDES, Bradesco, Vale, Petrobras, Gerdau, Natura, entre tantas outras empresas, nos mais variados eventos, desde eventos oficiais, encontros e seminários da "sociedade civil" a eventos como o II Encontro dos Povos da Floresta.
Uma candidatura para enfrentar a "crise civilizatória" do capital
Se há um ponto importante de convergência com a senadora é a caracterização de que estamos diante de uma "crise civilizatória" que exige um novo "paradigma civilizatório". Nada atesta com mais clareza esse fato do que a atual crise global que expõe, em seu caráter estrutural e multidimensional, as profundas contradições e disfunções sistêmicas do capitalismo. Este é o contexto em que ocorrerão as eleições de 2010. O debate sobre qualquer tema estará marcado por essa crise que, por suas características, obriga a todos apresentarem suas propostas de saída.
E aqui queremos ressaltar que o projeto de "desenvolvimento sustentável" é incapaz de apresentar uma proposta consistente, porque se situa nos marcos do capitalismo. Não rompe com o paradigma atual, mas busca apenas modificá-lo a partir da "transversalidade ambiental". Essa concepção limitada também se revela na abordagem da crise. Segundo Marina Silva existem hoje duas crises, uma econômica e outra ambiental. Afirma que a solução para ambas é integrada, mas "a crise econômica não se resolverá sem que se solucione a crise ambiental".
A crise atual não é uma simples crise de uma política econômica, que possa ser resolvida com uma gestão racional e sustentável da economia ou uma política econômica de inclusão social que leve em conta a "transversalidade" ambiental. Como afirmamos, esta crise do capital é estrutural, e a crise ambiental planetária é produto da lógica predatória e destrutiva desse mesmo sistema em crise. Nesse sentido, a senadora inverte as coisas. Na realidade, o correto é afirmar que não há solução para a crise ambiental sem uma solução efetiva da crise capitalista. E esta solução só é possível com a substituição do capitalismo por uma sociedade de transição socialista na qual a dimensão ambiental não deverá ser uma simples "transversalidade", mas, ao lado da luta contra a exploração de classe e todas as formas de opressão, um dos valores e eixos políticos fundamentais que alicerçarão uma sociedade de justiça social e sustentabilidade ambiental.
Não se trata de jogar a solução de todos os problemas para o futuro. Mas de apontar e debater a nossa proposta de um novo paradigma civilizatório socialista, para que as lutas e propostas imediatas não se esgotem em si mesmas, mas sejam uma ponte para o futuro.
O PSOL tem um papel fundamental a cumprir em 2010, e este não poderá se limitar a apresentar propostas realizáveis nos marcos do capitalismo. Será um momento ímpar para que possa apresentar, ao lado de propostas imediatas voltadas para a classe trabalhadora e os pobres da cidade e do campo, a sua visão da crise e a necessidade de superação desta ordem, contrapondo-se às falsas soluções que apostam no fortalecimento do Estado para "defender" economias nacionais diante da crise.
Sabemos que existe uma forte pressão para evitar uma votação pífia que inviabilize a eleição de deputados do PSOL. É uma preocupação justa e um problema real a ser enfrentado. Mas só poderemos enfrentar esse desafio mantendo a nossa identidade socialista, evitando políticas de alianças que nos coloquem a reboque de propostas alheias aos interesses da classe trabalhadora. Que para isso sirvam as duras lições dos reveses sofridos nas eleições de 2008.
A nossa participação no processo eleitoral tem que se voltar para uma ampla disputa pela hegemonia, articulando propostas concretas voltadas para a classe trabalhadora e todos os setores explorados e oprimidos a um projeto estratégico anticapitalista, internacionalista e a partir de baixo.
O PSOL, Marina Silva e os movimentos socioambientais
Duas questões merecem ser respondidas ainda que brevemente. Primeiro, não haveria convergências táticas que pudessem justificar uma aliança eleitoral com a candidatura Marina Silva? Segundo, uma aliança com Marina Silva não nos permitiria uma aproximação com militantes e ativistas de ONGs e movimentos que se caracterizam como ‘socioambientais’?
Sobre a primeira questão, é evidente que há convergências em torno de bandeiras e propostas. É possível e necessário construirmos a unidade de ação em torno delas. Como afirmamos antes, em muitas ocasiões a senadora assumiu posições que convergiram com as posições dos movimentos sociais e dos socialistas. Mas não estamos discutindo aqui ações imediatas e lutas cotidianas. Estamos falando de uma eleição presidencial, quando se coloca uma disputa de projetos políticos globais. Não se trata, repetimos, de adotar uma postura propagandística, e tampouco de negar questões imediatas e pontuais. Também concordamos que uma plataforma de governo não é e não pode ser a mesma coisa que o programa estratégico, devendo estar mediada pelas questões e tarefas imediatas. Entretanto, da mesma maneira não pode ser apenas um conjunto de medidas necessárias realizáveis. Deve expressar uma ponte entre as tarefas imediatas e mediatas, entre a tática e a estratégia, articulando a defesa de medidas imediatas e de cunho limitado com a defesa da ruptura com a ordem do capital como horizonte de superação radical dos problemas que atingem a classe trabalhadora, a população pobre e todos os setores explorados e oprimidos da sociedade.
A segunda questão é importante, pois Marina Silva já afirmou que pretende fazer alianças com movimentos sociais e ambientalistas. Certamente muitos ambientalistas e ativistas sociais serão atraídos para a sua campanha. Durante a campanha eleitoral a nossa relação com esses setores será, evidentemente, de disputa, mas ao mesmo tempo de debate franco e fraterno, o que significa adotar uma postura aberta e não sectária. Ademais, vale frisar que, mesmo se uma aliança fosse feita, isso não garantiria nada. Ainda seria necessário estabelecer um debate em que nossos argumentos seriam expostos claramente e sem tergiversações.
O fundamental é que a campanha do PSOL deverá enfatizar os grandes desafios e problemas relacionados à sustentabilidade ambiental, apresentando um programa que contenha propostas concretas e, ao mesmo tempo, aponte para o horizonte do ecossocialismo. É a construção desse programa que deve ser a prioridade neste momento, envolvendo o conjunto da militância.
Conclusão
Pensamos que qualquer discussão sobre uma eventual aliança com Marina Silva deve levar em conta todos esses aspectos. Mas não temos dúvida alguma de que a sua candidatura está distante da política do partido, das necessidades da população trabalhadora e da luta em defesa do meio ambiente. Apoiá-la não nos trará qualquer ganho. Pelo contrário, significará um retrocesso imenso com seqüelas que poderão colocar em risco o próprio projeto do PSOL.
Diante das tarefas que se colocam diante de nós, não temos dúvida de que a política correta é o resgate da proposta da "Frente de Esquerda" com o PSTU e o PCB. Lembremos que foi com essa frente que Heloisa Helena obteve quase 7% dos votos em 2006, quando as condições objetivas e subjetivas eram bem mais desfavoráveis.
Mas é fundamental garantir um debate sério para a elaboração de um programa radical e amplo ao mesmo tempo. A discussão em torno do nome deve ter como premissas a capacidade de representar esse projeto político e de dialogar com amplos setores da sociedade. No PSOL, temos inúmeras pessoas representativas e aptas para realizá-la. Temos, por exemplo, um socialista e um lutador histórico como Plínio de Arruda Sampaio.
Rui Polly é ambientalista e membro do Diretório Estadual de São Paulo do PSOL.