Neste ano voltaremos a ter novas eleições presidenciais. Trata-se de
mais uma oportunidade que teremos de avaliar os rumos do país, a partir
das campanhas dos diversos candidatos, de suas proposições e de suas
posições críticas em relação ao governo de Lula, nosso presidente nos
últimos oito anos.
Será uma eleição que apresentará a novidade de não contar com a
presença, como candidato, do próprio Lula, político que disputou todas
as eleições do gênero desde 1989, quando foi restabelecida a eleição
direta para o posto de primeiro mandatário do país.
As circunstâncias em que vai se dar essa disputa política também
apresentarão uma outra novidade. Esta novidade relaciona-se à mudança
programática a que a maior parte da esquerda brasileira se submeteu, a
partir justamente da eleição de Lula, em 2002.
Como é do conhecimento de todos, até aquela ocasião Lula e seus aliados
sustentaram a crítica ao modelo neoliberal e se colocavam como os
principais opositores do modelo econômico em curso no país, desde a
eleição de Collor.
As principais características desse modelo se inscrevem dentro da
lógica de retirar o Estado do seu papel de principal indutor do
desenvolvimento econômico do país e de se adotar uma política
macroeconômica de favorecimento à livre movimentação de capitais e de
incentivo ao capital financeiro. É um modelo que objetiva a criação das
melhores condições possíveis à plena utilização do nosso espaço
econômico como um apêndice à ação global de empresas transnacionais, em
sua maioria de controle acionário estrangeiro, mas que conta também com
a atuação de grupos nacionais, particularmente em setores como o de
bancos, mineradoras, siderúrgicas, construtoras e agroindústrias.
Como sabemos, a partir de uma alegada condição política que poderia
comprometer a governabilidade do governo eleito em 2002, Lula e seus
aliados optaram por não alterar a política econômica adotada desde o
segundo mandato de FHC. Nomearam para o comando do Banco Central um dos
principais executivos de um grupo financeiro internacional e procuraram
seguir a cartilha recomendada pelo FMI e pelas assessorias econômicas
de bancos e multinacionais.
Ao mesmo tempo, em decorrência da excepcional condição do comércio
internacional – puxada pelo dinamismo da economia chinesa, demandante
de produtos agrícolas e minérios, itens de importância em nossa pauta
de exportações -, o saldo de nossa balança comercial aumentou de forma
contínua e, a partir do ano de 2003, passamos a obter saldo positivo em
nossas transações correntes com o exterior.
Esta foi uma situação que nos permitiu crescer a taxas um pouco mais
elevadas a partir de 2004, ampliou a oferta de empregos, facilitou a
captação de recursos financeiros das empresas brasileiras no exterior –
a taxas de juros muito inferiores às praticadas internamente – e
permitiu que mecanismos de crédito fossem estendidos a faixas da
população até então não contempladas.
Pelo lado das iniciativas do governo, a ampliação dos programas de
transferência de renda, como é o caso do Bolsa Família; a política de
reajustes reais do salário-mínimo; a reposição de vagas de trabalho no
serviço público, através da realização de concursos; a própria política
de reajustes de vencimentos dos servidores, repondo parte das imensas
perdas acumuladas desde o governo anterior; bem como a adoção de
políticas como o Luz para Todos ou o questionável Prouni, o programa de
bolsas em faculdades particulares, tiveram grande impacto positivo
junto a diversos setores da população, fortalecendo a popularidade do
governo, particularmente junto aos setores mais carentes.
A maior parte da esquerda que sempre acompanhou Lula com ele se manteve
ao longo do seu governo, procurando se aproveitar de sua popularidade e
das facilidades que o acesso ao poder federal lhe confere, abrindo mão
de qualquer crítica mais substantiva aos rumos do governo.
Politicamente, assistimos, assim, à evolução e fortalecimento, na
prática, de uma proposta que sempre foi combatida pela esquerda, mas
que agora se materializa com força, sob o comando de partidos da
própria (ex) esquerda: um verdadeiro pacto social de diversas e
diferentes correntes de pensamento, em torno das "virtudes" do modelo
liberal-periférico, tão ao gosto de bancos e transnacionais.
É um pacto absolutamente inimaginável há alguns anos, mas que hoje une
figuras aparentemente tão distintas como Emílio Odebrecht, José Dirceu,
Blairo Maggi, Haroldo Lima, Roberto Setúbal, José Sarney, junto com
centrais sindicais, setores do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e
intelectuais que ainda se dizem de esquerda.
Há, contudo, evidentes fissuras nesse modelo que aparentemente agrada e unifica setores anteriormente tão heterogêneos.
A folga em nossas contas externas, a que me referi, deixou de existir
desde 2007, quando o saldo de nossa conta corrente caiu para apenas US$
1,7 bilhão (em 2006 havia sido de US$ 13,6 bilhões), e que passou
novamente a ser negativo em 2008 (-US$ 28,3 bilhões) e 2009 (-US$ 24,3
bilhões).
A economia produtiva do país encontra-se em níveis inéditos de
desnacionalização, com volumes cada vez mais expressivos de
transferências anuais de lucros e dividendos para o exterior, ao mesmo
tempo em que o grau de concentração econômica de vários setores
industriais e de infra-estrutura avança, sob os auspícios do BNDES.
Mas, particularmente, há dois aspectos que devem ser mais bem
explorados na denúncia do modelo que, agora, agrada a "gregos e
troianos".
Refiro-me, primeiramente, à absoluta falência das políticas públicas
voltadas para o dia-a-dia da população. Vivemos uma crise sistêmica
gravíssima no SUS – Sistema Único de Saúde; a qualidade do sistema de
educação pública se degrada aceleradamente, em especial nos segmentos
do ensino fundamental; o sistema de transportes públicos nas grandes
metrópoles está falido; a segurança pública nunca esteve tão
questionada; os preços das tarifas dos serviços públicos essenciais, em
especial os de energia elétrica, são verdadeiros escândalos.
Enfim, há uma situação de evidente insegurança social para milhões de
brasileiros que dependem de um Estado atuante e diligente na defesa do
interesse público.
Porém, em função da política econômica, o orçamento público é
comprometido com o pagamento de juros, que consome mais de 30% dos
gastos da União, amplia o endividamento público – hoje, com um montante
em títulos superior a R$ 2 trilhões (!) - e retira recursos justamente
dessas áreas sociais, que deveriam ser privilegiadas.
Por outro lado, vivemos uma crise urbana de grandes proporções. A
acelerada e irresponsável urbanização e concentração populacional em
algumas das nossas grandes cidades chegou a um estágio intolerável.
O melhor exemplo é a cidade de S. Paulo. Recente pesquisa de opinião,
divulgada às vésperas do aniversário dessa que é a maior e mais rica
cidade brasileira, apontou que mais de 50% dos pesquisados opinaram que
gostariam de se mudar imediatamente de cidade, caso houvesse essa
possibilidade.
A crise urbana desnuda a absoluta necessidade de discussão e políticas
que, de fato, democratizem o acesso à terra em nosso país, com seu
imenso e magnífico território continental.
O campo brasileiro é hoje ocupado por um modelo agrícola que exaure e
envenena a terra com suas monoculturas extensivas, bem como os
alimentos e nossos organismos com toneladas de agrotóxicos, defensivos
e fertilizantes; e que acaba por expulsar e inviabilizar a vida no
campo para milhões de brasileiros, que hoje vivem em cidades sem a
adequada rede de serviços essenciais à vida urbana.
Recolocar, portanto, a importância da reforma agrária e da mudança do
modelo agrícola é tarefa essencial para a próxima campanha
presidencial.
Contudo, essas são bandeiras que apenas a oposição de esquerda ao
governo Lula poderá sustentar. E essa esquerda precisa encontrar os
seus caminhos de unidade.
Enfraquecida e dividida, muitas vezes perdida em pequenas questões,
essa esquerda poderá reencontrar o caminho do diálogo e da luta com os
setores populares. Esta oportunidade poderá se situar na capacidade de
se explorar as gritantes contradições entre o modelo que fornece a base
para o bizarro pacto social lulista e as imensas aflições e angústias
que continuam a fazer parte do cotidiano da esmagadora maioria de
brasileiros.
Paulo Passarinho, economista, é presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.
|