Do
blog da Marcia, da revista o militante
Durante os anos 70 e 80 do século passado era habitual ouvir-se falar do «milagre» japonês.
A economia japonesa crescia a uma taxa média anual de quase 5% (1) ,
a taxa de desemprego rondava os 2% e as exportações cresciam quase 8%
ao ano.
«Milagre» que causava admiração nas fileiras governantes do sistema
capitalista mundial, mas também receios, sobretudo nos EUA, para onde
se dirigia o grosso das exportações nipónicas, do aço ao automóvel
passando pela electrónica de consumo. Receios que levaram à tomada pela
Administração Reagan de medidas comerciais de restrição à entrada de
produtos japoneses no mercado dos EUA e à imposição dos denominados
Acordos de Plaza (1985) aos seus principais concorrentes da Tríade
(Alemanha e Japão), impondo uma desvalorização concertada do dólar, com
vista a melhorar os termos de troca e as condições de rentabilidade das
suas empresas multinacionais.Mas no início dos anos 90, após o rebentar
da bolha financeira gerada nos mercados financeiro e sobretudo
imobiliário (1992), o Japão entrou num período de estagnação e deflação
(Gráfico 1), com uma taxa média de crescimento anual inferior a 1%,
pontuado com recessões (1998-1999 e 2008-2009) e por um forte aumento
do desemprego – com a taxa de desemprego média a aumentar cinco vezes
face aos anos 60, ou seja, mais de 2,5 milhões de desempregados
(Gráfico 2). Período no qual ainda se encontra e cujas previsões
económicas apontam para que permaneça.
Um caso de estudo
O Japão tornou-se um caso de estudo para os economistas e
comentadores da praça, tornando-se para muitos, como Paul Krugman, um
exemplo de uma economia que caiu na «armadilha da liquidez» (2) ,
exemplo que podemos encontrar se recuarmos para a economia dos EUA nos
anos 30, na altura da Grande Depressão. Apesar de taxas de juro reais
muito baixas (quer de curto, quer de longo prazo), mesmo em alguns anos
próximas do zero, o motor do crédito não «arrancou», o investimento
continuou a regredir (-1,4% ao ano em média nos últimos 20 anos) e o
crescimento do consumo continuou quase estagnado (1,1% ao ano em média
nos últimos 20 anos).
Mas como no actual episódio de crise, já nos anos 90, o Japão utilizou
o investimento público para tentar relançar a economia, entre 1992 a
1996, passou de um superavit para um défice orçamental de 5,1% do PIB,
com a dívida pública a aumentar 45% e o seu valor a representar 100% do
PIB em 1996. E apesar disso, o crescimento económico médio anual
cifrou-se em apenas 1,3% e na primeira tentativa de controlo do défice
por parte do governo nipónico, a economia paulatinamente mergulhou na
recessão.
Em 1998, tal como agora em 2008, o Japão voltou a tentar relançar a
economia por via do investimento público e pela injecção directa de
dinheiro na recapitalização do sistema bancário (cerca de 500 mil
milhões de dólares, o equivalente face ao PIB a 2 milhões de milhões de
dólares de injecção nos EUA), o défice atingiu um valor histórico de
11,2% do PIB, mas a economia cresceu de forma anémica, apesar do
estímulo interno.
O estímulo externo, por via do crescimento das exportações para os
EUA e a China, entre 2004 e 2007, o período que mediou a bolha
financeira do «dot.com» (2000-2003) e a acumulação da bolha financeira
do «subprime» (2007-?) voltou a trazer taxas de crescimento na ordem
dos 2% ano. Contudo, acabado o estímulo, a recessão voltou, com o recuo
estimado do produto de 5,8% em 2009, uma das recessões mais severas da
Tríade e a maior contracção do produto desde os anos 50. Com a dívida
pública a atingir 190% do PIB em 2009 e o défice orçamental os 8%.
É por isso que o exemplo japonês carece de reflexão particular, não
só no contexto da análise da resposta do sistema capitalista à crise
que atravessa, mas pelo retrato que tece sobre a profundidade dessa
mesma crise e da sua natureza sistémica. Retrato da crise que teve o
seu regresso visível no final nos anos 60, mas sobretudo com o
denominado «primeiro choque petrolífero» (1974-1975), mas que se
encontrava em gestação com o dissipar das condições que permitiram
relativamente elevadas taxas de acumulação de capital no centro do
sistema capitalista mundial, sobretudo nos anos 50 e 60.
Da expansão à estagnação
Finda a ocupação pelos EUA em 1952, o Japão encetou uma rápida
industrialização, com uma forte restauração monopolista apoiada pelo
Governo, a par de um investimento na reconstrução de infra-estruturas
de base. Taxas de câmbio favoráveis e elevadas taxas de produtividade
do trabalho potenciaram as exportações e o aprofundamento do mercado
interno, com a indústria do aço e depois a automóvel a terem rápido
crescimento, apesar da forte dependência do Japão de alimentos,
matérias-primas e energia.
Nos anos 60, a economia crescia em média mais de 10% ao ano, a
produtividade do trabalho quase 9%, o que, mesmo com o crescimento dos
salários reais de mais de 7%, permitia a transferência de ganhos de
produtividade do trabalho para o capital, que se reflectia na redução
dos custos salariais unitários reais em média de 1,2% ao ano e o
crescimento do volume de lucros em média de 26,7% ao ano.
O exemplo do Japão nos anos 60 poderia ser em grande medida transposto,
para a Coreia do Sul nos anos 80, ou para a China desde os anos 90, que
tem mantido uma taxa média anual de crescimento do produto superior a
10%.
O caso da Coreia do Sul é interessante, pois tendo atingido uma
taxa média anual de crescimento do produto de quase 9% nos anos 80,
desde então as taxas de crescimento médias tem vindo a desacelerar de
década para década, seguindo um padrão equivalente aos países
capitalistas mais avançados.
Contudo, no final dos anos 60 o crescimento económico começou a não ser
suficiente para cobrir o crescimento da capacidade produtiva. A pressão
para a baixa das taxas de lucro crescia na medida do ritmo de elevação
da composição orgânica do capital, devida ao aumento da eficiência e
escala da produção, a par de um crescimento médio de 4,8% ao ano do
stock de capital líquido por pessoa empregada. A rápida
industrialização da Alemanha contribuía também para o excesso de
capacidade produtiva, tornando mais visível a sobreprodução de amplos
segmentos industriais do sistema capitalista mundial. A pressão para a
queda das taxas de lucro acentuava a crescente concorrência
intercapitalista pela obtenção de quotas de mercado, fontes de
matérias-primas e «stocks» de força de trabalho barata a nível mundial.
O retorno visível da crise dos anos 70 é, assim, precedido por um
declínio da rentabilidade das empresas capitalistas nas potências do
centro do sistema capitalista mundial, particularmente no Japão,
acentuado depois pelo forte aumento do preço das matérias-primas e da
energia, nomeadamente do preço do petróleo. Crise de rentabilidade da
qual ainda não houve recuperação cabal, apesar da intensificação da
exploração do trabalho, da crescente internacionalização da produção,
da expansão das relações sociais de produção capitalistas a quase todos
os pontos do globo e da progressiva financeirização do capital, que
permitiu o crescimento exponencial do crédito e do capital fictício,
nos últimos 30 anos.
Sendo a taxa de lucro o orientador do processo de acumulação, a não
obtenção de taxas de lucro esperadas por parte do capitalista provoca
um declínio no investimento (logo do ritmo de acumulação) e
consequentemente do consumo (logo da realização da mais-valia),
provocando a prazo a interrupção do processo de valorização de capital.
Por outras palavras, existe um esgotamento progressivo das
oportunidades de investimento rentáveis para a aplicação da massa de
mais-valias extraída e acumulada, o que se manifesta pela tendência
para a queda das taxas médias de lucro no longo prazo. Entre 1950-1970
e 1970-1993, as taxas médias de lucro líquida na indústria
transformadora no Japão reduziram-se quase 50%, continuando mesmo assim
a ser mais elevadas que no resto da Tríade (3) .
Na altura em que a ocidente se falava do «milagre japonês», já a
economia japonesa crescia a uma taxa média anual que era menos de
metade da dos anos 60, inferior a 5%, para depois confirmar a tendência
para estagnação verificada, não só nos outros pólos da Tríade, mas no
sistema capitalista mundial, com a desaceleração das taxas de
crescimento do produto de década para década, demonstrativas do
abrandamento do «motor» de acumulação de capital.
O excesso de capacidade fazia-se notar, não só com o aumento estrutural
do desemprego de década para década (Gráfico 2), mas por uma evolução
do produto abaixo do produto potencial, com excepção dos períodos de
bolha financeira, de inflação artificial do preços dos activos
mobiliários e imobiliários assentes no crédito (como 1969-1973,
1988-1992 e 2004-2007). Excesso de capacidade e esgotamento de
oportunidades de investimento que também se traduziram na contracção
acumulada do investimento em quase 26% nos últimos 20 anos.
Com uma tendência inversa ao desemprego, as taxas de crescimento dos
salários reais desaceleram fortemente, para um crescimento médio anual
de 0,5%, mas inferior ao crescimento médio anual da produtividade do
trabalho. Facto que mostra a pressão do crescimento do exército
industrial de reserva na baixa dos salários. Esta transferência de
ganhos de produtividade do trabalho para o capital permitiu continuar a
redução dos custos unitários do trabalho e é um indicador do aumento da
taxa de exploração do Japão, com o peso médio dos salários no produto a
reduzir-se de década para década. Em termos médios, desde os anos 70, o
peso médio dos salários reduziu quase 12 pontos percentuais (Gráfico 3).
Isto num quadro de estímulos externos, com a manutenção de excedentes
comerciais nas trocas com os EUA, e internos, com o défice orçamental e
a dívida pública a aumentarem sistematicamente de década para década.
Esta substituição de dívida privada por dívida pública, levou a que o
peso da dívida pública passasse, em termos médios, de cerca de 28% nos
anos 70 para mais de 178% na última década. A questão que se coloca é
da sustentabilidade desta política de «estímulos», quando têm sido
estes «défices» a sustentar, mesmo assim, o parco crescimento económico.
O «espelho» da crise
O Japão constitui assim o cenário que os «governantes» do centro do
sistema capitalista mundial pretendem a todo custo evitar. Hoje, quando
se afirma que a crise bateu no fundo, apontando uma lenta e insípida
«retoma económica», a verdade é que o exemplo do Japão vem sempre à
memória. Apesar dos meios que o sistema possui para responder à crise,
nomeadamente por via do peso e papel do Estado na economia, apesar de
20 anos de consenso de Washington, a verdade é que depois da maior
operação de «salvamento» do sistema concertada a nível mundial, com a
descida para níveis históricos das taxas de juros, com a injecção de
milhões de milhões de dólares no sistema financeiro (também para
sustentar o consumo) e com o forte aumento do investimento e consumo
público, não só a recessão mundial não foi «evitada», como o
crescimento económico previsto para os próximos anos será anémico,
confirmando a tendência para a desaceleração das taxas médias de
crescimento do produto mundial de década para década.
O Japão demonstra também que o sistema poderá sobreviver mesmo num
estado letárgico de crescimento, com crescente desemprego e renovada
violência na exploração da força de trabalho. O sistema não cairá por
si. O capitalismo já deu mostras da sua capacidade de adaptação e de
sobrevivência, nomeadamente com a alteração dos seus paradigmas
produtivos, tecnológicos e energéticos.O Japão, não negando as
condições objectivas próprias que caracterizam o desenvolvimento do
capitalismo neste país, torna-se assim um «espelho» da evolução desta
crise de rentabilidade desde os anos 70, mas também da ineficácia das
respostas política e económica do sistema à crise, sejam elas de índole
keynesiana ou neoclássica/neoliberal, num quadro de sobre-acumulação de
capital sobre todas as formas, de sobre-extensão do sistema a nível
planetário, com o esgotamento progressivo de recursos naturais não
renováveis.
A questão central continua por isso a ser qual o grau de destruição de
capital sobre todas as formas necessário para garantir as condições de
valorização do capital, para garantir um novo ciclo de expansão da
acumulação capitalista. A «saída» da Grande Depressão dos anos 30 só se
verificou com o eclodir da II Guerra Mundial, entre respostas políticas
que conduziram ao surgimento do fascismo e do nazismo. O
desenvolvimento do militarismo a nível mundial e o progressivo
rearmamento da Alemanha e do Japão têm que ser enquadrados neste
contexto, como também das «arrumações» geopolíticas a nível mundial,
com a afirmação de «novas» potências económicas e militares, como a
China, o Brasil, a Índia e a Rússia, num quadro de declínio económico
da potência hegemónica central – os EUA.
Contudo, hoje, a delapidação dos recursos naturais atingiu um tal
nível, em consequência da irracionalidade e anarquia do modo de
produção capitalista, assente no pressuposto da acumulação ilimitada de
capital, que a superação do sistema se torna uma condição sin qua non
para a Humanidade.
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A centralidade da lei do valor escapa às ferramentas dos economistas
convencionais, presos a um modelo de equilíbrio de longo prazo e de
racionalidade perfeita, que só existe nos manuais de economia. Lei da
qual decorre a tendência para a queda das taxas de lucro demonstrativa
do limite do sistema e da sua principal contradição, entre uma
crescente socialização da produção e apropriação privada das condições
de produção. Esta é a causa da crise sistémica em que nos encontramos.
Para pôr a satisfação das necessidades humanas como a principal
prioridade da organização económica, do trabalho social de uma
sociedade, a questão da propriedade e da apropriação privada das
condições de produção tem de ser posta em causa, ou seja, pôr em causa
a relação social (de exploração) que o capital corporiza. Qualquer
outro caminho será sempre uma «fuga para a frente», que
conjunturalmente poderá apresentar uma «saída», mas não resolverá os
limites e as contradições internas no sistema. Este é o limite do
reformismo.
O Japão encontra-se há vinte anos mergulhado numa depressão de
crescimento da qual não encontra saída, preso entre a estagnação e a
deflação. Este microcosmos do sistema capitalista dá-nos uma imagem de
um sistema preso numa crise de rentabilidade para qual ainda não
encontrou resposta, mas entre os riscos de derivas destrutivas do
sistema e a certeza do aprofundamento da ofensiva de classe contra o
trabalho torna-se cada vez mais urgente a tomada de consciência dos
trabalhadores das causas profundas da crise e das desigualdades, da
destruição ambiental e da barbárie que grassam a nível local e
planetário. O sistema só será superado pela luta. Como sempre o
resultado da história dependerá da luta de classes e na continuação da
construção da alternativa que germina nos limites do sistema – o
socialismo.
Notas
(1) Todos os valores apresentados no presente artigo correspondem a
cálculos próprios efectuados a partir de valores extraídos da base de
dados macroeconómicos AMECO da Comissão Europeia, que teve a última
actualização em Novembro de 2009 com a publicação das previsões
económicas de Outono.
(2) Krugman, Paul, «The return of depression economics and the crisis of 2008», Norton, 2009.
(3) Brenner, Robert, «The economics of global turbulence», Verso, 2006.