Ações nos bastidores |
por Silvio Caccia Bava |
Estamos
entrando em um período de grandes mudanças. E são sinais dos tempos
ouvir que o Fundo Monetário Internacional quer regular e taxar a
circulação internacional dos capitais. Mesmo os grandes bancos privados
começam a se dar conta, porque vários quebraram, que deixados à sua sina
caminham para uma disputa alucinada e para a própria destruição. Por outro lado, avaliações do impacto da crise nos diferentes países ressaltaram o importantíssimo papel que tiveram os bancos públicos, com uma ação coordenada, para enfrentar esse cenário adverso. Países como a Índia, que nacionalizou seus bancos, ou o Brasil, que tem quase metade do seu sistema financeiro público, sofreram menos por disporem desses recursos públicos e da capacidade de gestão para mobilizá-los na crise. Abre-se, assim, um debate represado há muitos anos, que hoje conta com uma maior audiência: o do controle público sobre o sistema financeiro nacional e internacional e as transações financeiras internacionais. Dito de outra forma, mais abrangente: a crise abriu a possibilidade de se instituir novos controles democráticos sobre a economia. No auge da crise foram eles, os principais agentes financeiros privados, que desenharam o pacote de ajuda do governo estadunidense a si próprios. E aceitaram, pelo impacto social enorme de suas próprias ações, pelos efeitos sociais perversos da crise, pelas questões de governabilidade, debater um novo pacto de regulação do sistema financeiro, incluindo um maior controle sobre os paraísos fiscais. As últimas estimativas são de que, globalmente, foram destinados mais de US$ 13 trilhões de recursos públicos para salvar as grandes corporações privadas. Nunca havia se visto tanta riqueza mobilizada do dia para a noite. Como essas grandes corporações foram capazes de impulsionar, com tamanha rapidez, tantos recursos públicos no seu interesse privado? John Dewey, um dos mais proeminentes filósofos americanos do século XX, concluía que a política em nossos países é definida, nos bastidores, pelas grandes corporações, e que vai continuar sendo assim enquanto o poder residir nos negócios orientados para o lucro, através do controle privado dos bancos, da terra, da indústria, reforçado pelo comando da imprensa, dos jornalistas e de outros meios de publicidade e propaganda.1 O neoliberalismo dos anos 1990 fez mais. Construiu todo o arcabouço legal e institucional para que a política não tocasse na economia, não tocasse nos interesses “do mercado”. Políticas como a de um Banco Central independente são expressão dessa engenharia institucional. No Brasil, dinheiro e poder continuam associados, mas temos tido avanços nas dimensões republicana e democrática das ações do poder público. Há uma ação mais efetiva do sistema judiciário e da polícia federal no combate à corrupção na política, que acabou por afastar governadores, executivos e parlamentares dos cargos, acusados de uso privado do dinheiro público, de captação ilícita de recursos para campanhas eleitorais, de favorecimentos a empresas em licitações para obras e serviços públicos. Mas, apesar desses avanços, não se tem notícia da penalização das empresas envolvidas – supostamente, os agentes corruptores. Há também várias iniciativas da sociedade civil, que vão desde a defesa de uma reforma política até o projeto de lei que impede a candidatura de pessoas condenadas pela Justiça, batizado de Ficha Limpa, apresentado ao Congresso como projeto de lei de iniciativa popular, respaldado por 1,5 milhão de assinaturas. A abordagem mais comum para tratar do tema dos abusos do poder econômico na arena da política acaba por acusar a natureza humana – e os políticos de maneira geral – por se deixar seduzir pelo dinheiro. Esquecem do que Dewey aponta como “as ações nos bastidores”, que são constitutivas mesmo do modo de fazer política das grandes corporações. Pois o que está em questão agora é justamente a possibilidade de um novo desenho institucional, da realização de um novo pacto, no qual, em nome do interesse de todos, os atores econômicos passam a atuar nos marcos de um planejamento público e um controle democrático. Serão novos paradigmas de produção e consumo, serão novas formas de exercício da democracia e do controle social incidindo sobre os poderes públicos e os atores econômicos. Ainda que as lutas sociais tenham ampliado, ao longo do tempo, o que hoje entendemos por democracia, o reconhecimento de direitos e a extensão de políticas sociais, na dimensão propriamente política parece não ter havido grandes avanços. A pergunta continua sendo como garantir que a democracia controle a economia – e não o contrário. Para que essa política dos bastidores e a corrupção na política possam ser superadas, as regras do jogo precisam mudar. O financiamento das campanhas eleitorais está no centro desse debate. E se adotássemos, por exemplo, as regras de financiamento de campanhas eleitorais de Quebec, no Canadá, onde todos os candidatos têm um teto para a arrecadação de contribuições? Ou o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, proibindo as contribuições do setor privado? O tema central do pacto pode ser o de tirar a política dos bastidores e trazê-la para o centro do espaço público, apaziguar a sociedade brasileira, promover a redução da enorme desigualdade social, a redução da violência em nossa sociedade e garantir a extensão das políticas públicas de qualidade por todo o território.
Silvio Caccia Bava é
editor de Le Monde Diplomatique
Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.
1 Citado por Noam Chomsky à pág. 206 em Failed States, Metropolitan Books, NY, 2006. |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Crise...
Luta contra a Homofobia...
Marcha contra a homofobia reunirá manifestantes de todo o Brasil |
CNTE estará no evento com a campanha Respeito à
Diversidade e Educação Andam Juntos
Nesta quarta-feira (19),
Brasília vai ser palco da 1ª Marcha Nacional Contra a Homofobia e o 1°
Grito Nacional pela Cidadania LGBT. Segundo a Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT),
organizadora do evento, a mobilização deve reunir, a partir das 9h,
cerca de 1500 pessoas de todos os estados, na Esplanada dos Ministérios.
A Marcha celebra o Dia Internacional de Combate à Homofobia (17 de
maio) e traz à tona grandes reivindicações da comunidade LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais e Transgêneros).
“Queremos combater o fundamentalismo
religioso, defender o estado laico (sem interferência da religião),
mobilizar pela aprovação do Projeto de Lei 122/2006 – da senadora
Fátima Cleide (PT-RO), que torna crime a discriminação por orientação
sexual e identidade de gênero –, exigir cumprimento do Plano Nacional
LGBT e pressionar o julgamento de várias Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADIn) pelos direitos da categoria”, declara o
presidente da ABGLT, Tony Reis.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação convidou suas entidades afiliadas para participarem do evento e reforçar a campanha Respeito à Diversidade e Educação Andam Juntos. “A maioria dos integrantes do Coletivo Nacional de Diversidade Sexual da CNTE, que tem o objetivo de diminuir o preconceito nas escolas, participará da Marcha”, informa o secretário de Políticas Sindicais da CNTE, José Carlos Prado, o Zezinho.
De acordo com a ABGLT, 40% dos adolescentes não gostariam de estudar com um gay, uma lésbica ou um travesti. “Funcionários e professores nunca tiveram uma formação específica para saberem lidar com a diversidade sexual em sala. Isso contribui para o aumento do preconceito no ambiente escolar, incentivando o abandono das escolas por homossexuais. E os culpados por essa negligência são os governantes”, lamenta Zezinho.
De segunda (17) a quarta-feira (19), a ABGLT se reúne com 12 ministros de Estado, incluindo Fernando Haddad, da Educação. O encontro com o MEC será nesta terça-feira (18), a partir das 16h. “Vamos cobrar do MEC como a diversidade sexual será discutida no ensino básico e superior. Queremos a inserção de materiais didáticos nas instituições para trabalhar a questão LGBT de forma científica e sem preconceitos e incluir no currículo uma disciplina sobre o respeito à diversidade humana”, defende Tony.
Ser gay não é doença
O Dia Internacional de Combate à Homofobia foi instituído em 17 de maio por causa de uma decisão histórica da Organização Mundial da Saúde. Há 20 anos, nessa mesma data, a OMS tirou a Homossexualidade da sua lista de doenças mentais. Desde então, também não se usa o termo “homossexualismo”, já que o prefixo “ismo” se remete a uma enfermidade.
Fonte: CNTE, 17/05/2010
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação convidou suas entidades afiliadas para participarem do evento e reforçar a campanha Respeito à Diversidade e Educação Andam Juntos. “A maioria dos integrantes do Coletivo Nacional de Diversidade Sexual da CNTE, que tem o objetivo de diminuir o preconceito nas escolas, participará da Marcha”, informa o secretário de Políticas Sindicais da CNTE, José Carlos Prado, o Zezinho.
De acordo com a ABGLT, 40% dos adolescentes não gostariam de estudar com um gay, uma lésbica ou um travesti. “Funcionários e professores nunca tiveram uma formação específica para saberem lidar com a diversidade sexual em sala. Isso contribui para o aumento do preconceito no ambiente escolar, incentivando o abandono das escolas por homossexuais. E os culpados por essa negligência são os governantes”, lamenta Zezinho.
De segunda (17) a quarta-feira (19), a ABGLT se reúne com 12 ministros de Estado, incluindo Fernando Haddad, da Educação. O encontro com o MEC será nesta terça-feira (18), a partir das 16h. “Vamos cobrar do MEC como a diversidade sexual será discutida no ensino básico e superior. Queremos a inserção de materiais didáticos nas instituições para trabalhar a questão LGBT de forma científica e sem preconceitos e incluir no currículo uma disciplina sobre o respeito à diversidade humana”, defende Tony.
Ser gay não é doença
O Dia Internacional de Combate à Homofobia foi instituído em 17 de maio por causa de uma decisão histórica da Organização Mundial da Saúde. Há 20 anos, nessa mesma data, a OMS tirou a Homossexualidade da sua lista de doenças mentais. Desde então, também não se usa o termo “homossexualismo”, já que o prefixo “ismo” se remete a uma enfermidade.
Fonte: CNTE, 17/05/2010
terça-feira, 18 de maio de 2010
Os ruralistas são blindados pela mídia(mérdia?) corporativa....
Mídia oculta os crimes dos ruralistas
A Agência Câmara noticiou nesta semana que a Polícia
Federal ouviu os depoimentos de três ex-diretores do Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural (Senar), entidade vinculada aos ruralistas,
suspeitos de fraudes em licitações que causaram rombo de R$ 10 milhões
aos cofres públicos.
Por Altamiro Borges, em seu blog
A mídia hegemônica, que clamou pela
instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) contra o
MST, simplesmente evitou tratar do assunto. Ela faz alarde contra as
entidades ligadas à reforma agrária, mas silencia totalmente sobre as
falcatruas dos barões do agronegócio.
A reportagem revela que o esquema foi descoberto durante a “Operação Cartilha”, desencadeada em fevereiro passado. “Um dos ouvidos, segundo informações da PF, foi indiciado por formação de quadrilha e fraude em licitação. A Polícia Federal não revelou os nomes dos ouvidos e nem quem foi indiciado. Prestaram depoimento ao delegado Irene Pereira, esposa do deputado federal Homero Pereira (PR) e outros dois ex-diretores do Senar. Sendo que ela foi indiciada”. Irene e outros cinco executivos sob investigação sigilosa faziam parte da alta gerência do Senar.
Desvio para a campanha eleitoral?
A “Operação Cartilha” foi solicitada pela Controladoria-Geral da União para apurar o desvio de materiais destinados ao Programa de Formação Rural do Senar. A CGU estima que o prejuízo ao erário seja de R$ 9.926.601,41. “Investigações da PF indicam que contratações de entidades sem fins lucrativos visavam, na realidade, favorecer empresas do ramo gráfico de Brasília”. Inúmeras contratações foram executadas sem licitações e com preços superfaturados. Há suspeitas de que o dinheiro seria desviado para as campanhas eleitorais de candidatos vinculados aos ruralistas.
Esta não é a primeira, nem será a última, denúncia envolvendo os barões do agronegócio, que se travestem de “paladinos da ética” e lideram a histeria contra os subsídios públicos concedidos às entidades vinculadas à reforma agrária. O Senar, administrado pelas federações estaduais filiadas à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), presidida pela fascistóide Kátia Abreu, gerencia milhões de reais dos cofres públicos sem qualquer transparência. Levantamento recente confirma os seguintes valores doados às entidades ruralistas para a “qualificação dos produtores rurais”:
Kátia Abreu sob suspeição
Este enorme volume de recursos, porém, geralmente não é destinado à formação dos produtores. Ele serve, inclusive, para o pagamento de altos salários aos dirigentes das entidades ruralistas – o que é ilegal. A Federação da Agricultura de São Paulo, por exemplo, já foi condenada a devolver um milhão de reais, desviados para o pagamento de diárias dos seus dirigentes. As entidades dos ruralistas do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso do Sul também já estão sob investigação.
No caso da federação dos ruralistas do Tocantins, presidido por Kátia Abreu entre 1995-2005, as suspeitas são ainda mais graves. O Tribunal de Contas da União (TCU) já questionou a prestação de contas do Senar e até convocou Kátia Abreu para esclarecimentos. O caso é tão sinistro que a própria CNA, antes da eleição da senadora para sua presidência, decretou intervenção na unidade do Tocantins.
A sujeira parece ser brava. Mas a mídia prefere ocultar os crimes dos ruralistas – inclusive porque Kátia Abreu é sondada para ser vice na chapa do demo-tucano José Serra.
A reportagem revela que o esquema foi descoberto durante a “Operação Cartilha”, desencadeada em fevereiro passado. “Um dos ouvidos, segundo informações da PF, foi indiciado por formação de quadrilha e fraude em licitação. A Polícia Federal não revelou os nomes dos ouvidos e nem quem foi indiciado. Prestaram depoimento ao delegado Irene Pereira, esposa do deputado federal Homero Pereira (PR) e outros dois ex-diretores do Senar. Sendo que ela foi indiciada”. Irene e outros cinco executivos sob investigação sigilosa faziam parte da alta gerência do Senar.
Desvio para a campanha eleitoral?
A “Operação Cartilha” foi solicitada pela Controladoria-Geral da União para apurar o desvio de materiais destinados ao Programa de Formação Rural do Senar. A CGU estima que o prejuízo ao erário seja de R$ 9.926.601,41. “Investigações da PF indicam que contratações de entidades sem fins lucrativos visavam, na realidade, favorecer empresas do ramo gráfico de Brasília”. Inúmeras contratações foram executadas sem licitações e com preços superfaturados. Há suspeitas de que o dinheiro seria desviado para as campanhas eleitorais de candidatos vinculados aos ruralistas.
Esta não é a primeira, nem será a última, denúncia envolvendo os barões do agronegócio, que se travestem de “paladinos da ética” e lideram a histeria contra os subsídios públicos concedidos às entidades vinculadas à reforma agrária. O Senar, administrado pelas federações estaduais filiadas à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), presidida pela fascistóide Kátia Abreu, gerencia milhões de reais dos cofres públicos sem qualquer transparência. Levantamento recente confirma os seguintes valores doados às entidades ruralistas para a “qualificação dos produtores rurais”:
- Senar/Acre – R$ 978.854,63
- Senar/Alagoas – R$ 778.188,26
- Senar/Amazonas – R$ 663.270,90
- Senar/Amapá – R$ 426.151,81
- Senar/Bahia – R$ 2.171.477,38
- Senar/Ceará – R$ 3.782.325,73
- Senar/Distrito Federal – R$ 352.188,11
- Senar/Espírito Santo – R$ 411.689,98
- Senar/Goiás – R$ 1.634.195,00
- Senar/Maranhão – R$ 1.670.632,30
- Senar/Minas Gerais – R$ 11.274.446,00
- Senar/Mato Grosso do Sul – R$ 1.752.641,00
- Senar/Mato Grosso – R$ 3.813.263,87
- Senar/Pará – R$ 1.517.276,68
- Senar/Paraíba – R$ 184.633,07
- Senar/Pernambuco – R$ 400.000,00
- Senar/Piauí – R$ 345.638,43
- Senar/Paraná – R$ 6.710.444,31
- Senar/Rio de Janeiro – R$ 1.105.468,25
- Senar/Rio Grande do Norte – R$ 318.511,33
- Senar/Roraima – R$ 502.979,08
- Senar/Rondônia – R$ 1.047.509,27
- Senar/Rio Grande do Sul – R$ 4.817.230,00
- Senar/Santa Catarina – R$ 2.838.636,77
- Senar/Sergipe – R$ 609.533,90
- Senar/São Paulo – R$ 9.625.122,90
- Senar/Tocantins – R$ 650.523,70.
Este enorme volume de recursos, porém, geralmente não é destinado à formação dos produtores. Ele serve, inclusive, para o pagamento de altos salários aos dirigentes das entidades ruralistas – o que é ilegal. A Federação da Agricultura de São Paulo, por exemplo, já foi condenada a devolver um milhão de reais, desviados para o pagamento de diárias dos seus dirigentes. As entidades dos ruralistas do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso do Sul também já estão sob investigação.
No caso da federação dos ruralistas do Tocantins, presidido por Kátia Abreu entre 1995-2005, as suspeitas são ainda mais graves. O Tribunal de Contas da União (TCU) já questionou a prestação de contas do Senar e até convocou Kátia Abreu para esclarecimentos. O caso é tão sinistro que a própria CNA, antes da eleição da senadora para sua presidência, decretou intervenção na unidade do Tocantins.
A sujeira parece ser brava. Mas a mídia prefere ocultar os crimes dos ruralistas – inclusive porque Kátia Abreu é sondada para ser vice na chapa do demo-tucano José Serra.
Lula, o Irã e a mídia corporativa...
Demonização da viagem de Lula ao Irã ancora-se em argumentos falaciosos e tendenciosos |
Escrito por Luiz Eça no Correio da Cidadania | |
Dificilmente a visita de um chefe de Estado a outro país causou tantas
críticas quanto a que Lula está fazendo ao Irã.
Desde Hillary Clinton até deputados brasileiros, passando por Bernard
Kouchner (ministro das Relações Exteriores da França), jornalistas
nacionais , congressistas e colunistas americanos, entre outros,
criticaram o nosso presidente de diversas maneiras.
A maioria considerou essa viagem uma aproximação, digamos, vil, com uma
ditadura cruel que prende, mata e tortura opositores. Não se pode negar
que estas afrontas aos direitos humanos têm acontecido no Irã, depois
das manifestações de repúdio à eleição de Ahmadinejad.
Pelo menos episodicamente, o governo iraniano não ficou omisso. Está
processando 12 indivíduos suspeitos de torturar até a morte 3
oposicionistas. Além disso, depois de repetidas denúncias sobre
barbaridades cometidas na prisão de Kahizak, ordenou seu fechamento.
Claro, devia fazer muito mais, especialmente porque, ao que se sabe, as
violências contra adversários continuam. No entanto, nesse quesito, EUA e
Israel ficaram atrás, pois nesses países os violadores dos direitos
humanos continuam livres e tranqüilos.
Ao reconhecer as torturas da gestão Bush, Obama declarou que seus
autores não seriam punidos. Ele proibiu essas práticas, mas,
infelizmente, parece que elas continuam. Só para ficar em exemplos
recentes, ainda na primeira semana de maio, a Cruz Vermelha denunciou a
existência no Afeganistão de uma prisão secreta para suspeitos na base
aérea de Bagran. E 9 ex-prisioneiros, liberados por falta de provas,
declararam que foram submetidos a abusos no local. Simon Hersh, o famoso
repórter que denunciou My Lay e Abu Ghraib, revelou, em Genebra, na
Conferência Global do Jornalismo Investigativo, que inimigos capturados
na guerra do Afeganistão, em vários casos, foram executados no próprio
campo de batalha pelo exército americano.
Quanto a Israel, as autoridades do emirado de Dubai (grande amigo dos
EUA) continuam acusando o Mossad de ter executado um homem do Hamas em
plena cidade árabe. Pediram até à Interpol a prisão de vários agentes e
do chefe do serviço secreto israelense. Lembramos ainda o inquérito da
ONU, presidido por um juiz judeu, que acusou o exército do governo de
Telaviv de crimes de guerra e contra a humanidade no ataque a Gaza, o
qual vitimou mais de 1.000 civis. Nem os judaicos, nem os oficiais das
forças armadas receberam as devidas punições.
Apesar destes fatos criminosos de responsabilidade dos governos dos EUA e
de Israel, ninguém jamais pensou em censurar Lula quando viajou para
estes países.
Curiosamente, são eles que clamam com maior fúria por sanções ao Irã,
que o forçassem a abandonar um programa de engenhos nucleares ainda não
provado. Dizem que o enriquecimento do urânio demonstraria as intenções
iranianas de produzir armas nucleares. O que seria uma catástrofe nas
mãos de um “rogue state” (um estado entre delinqüente e irresponsável)
que já prometera jogar Israel no mar.
Embora Ahmadinejad tenha declarado que fora mal entendido, que jamais
pretendera atacar Israel, que a História é que acabaria com o regime
sionista, por seu caráter racista – o ato de fundação afirma Israel como
estado judaico -, a grande imprensa internacional e brasileira
ignoraram suas explicações. Como também ignoraram que, na verdade, quem
toca os tambores de guerra na região, comportando-se como autênticos
‘rogue states”, são os EUA – com menções ao célebre “todas as opções
estão sobre a mesa” - e Israel, com sucessivas ameaças de ataque ao Irã.
Os exemplos são muitos. Novamente mencionaremos apenas os mais recentes.
Neste mês, Gary Samore, coordenador na Casa Branca do controle de armas
de destruição em massa, informou à Reuters que seu governo havia
pressionado Moscou a não entregar ao Irã o sistema antimíssil S-300, já
contratado. “Deixamos claro aos russos que isso traria um impacto em
nossas relações bilaterais significativo. Os russos entenderam que as
conseqüências seriam severas”. E nós entendemos que o governo Obama está
zelando para enfraquecer as defesas iranianas e, por conseqüência,
tornar eventuais ataques ao país mais destrutivos. Nada mais bizarro da
parte de um Prêmio Nobel da Paz
Na semana que passou, Moshe Ya´alon, vice-primeiro ministro de Israel,
anunciou que suas forças aéreas estavam prontas para a guerra contra o
Irã. Ya´alon, apesar do alto posto que ocupa num governo que se diz
empenhado na paz com os palestinos, já os qualificou como um “câncer”.
Estes fatos não são levados em conta pelos críticos da viagem de Lula,
que ajuntam a seus argumentos a consideração de que a amizade com o Irã
está afastando o Brasil da comunidade internacional. A maioria dos
nossos comentaristas e muitos políticos enchem a boca quando falam nessa
“comunidade internacional”, sem perceber que este termo está sendo
usado de maneira pelo menos incorreta, para não dizer arrogante e até
racista, pois os 118 países não alinhados já se manifestaram contra as
sanções. Será que estes 118, por serem asiáticos, africanos e
latino-americanos, não integram a “comunidade internacional”? Será que
dela só merecem fazer parte os europeus e norte-americanos, talvez, por
coincidência, povos basicamente brancos? Aparentemente, eles esqueceram
que os tempos dos impérios coloniais já se foram. E que agora países
negros, amarelos e vermelhos são membros do mundo civilizado.
A última observação que essa peculiar “comunidade internacional” faz é
que, dialogando com o Brasil e a Turquia, co-participante das
conversações de paz em Teerã, estão fazendo o jogo dos aiatolás que
visam ganhar tempo, adiar ao máximo as sanções contra seu país, até
poderem concluir seus artefatos nucleares. Hillary Clinton acaba de
telefonar para o presidente turco advertindo-o insistentemente desta
falácia islâmica.
Parece um argumento pífio. Se todas as autoridades técnicas concordam
que o Irã precisaria de ao menos 5 anos para produzir sua primeira bomba
de destruição em massa, seria uma missão impossível para o governo de
Teerã conseguir enrolar o mundo por um prazo tão avultado.
O Financial Times de 13 de maio considera que, ao tentar mediar um
diálogo com o Irã, o Brasil “desafia a política externa dos EUA”. É
verdade, essa política tem um norte hoje muito claro: impor sanções tão
terríveis que isolem o Irã do comércio mundial e o levem a uma crise
capaz de provocar a queda do regime dos aiatolás. E sua substituição por
gente mais cordata.
Alega-se que Obama passou um ano estendo a mão a Ahmadinejad sem obter
respostas. Não foi bem assim. Suas mãos estendidas tinham os punhos
fechados, ameaçando socos, pois, desde junho de 2009, não houve uma
única tentativa de aproximação concreta dos EUA, apenas retórica, coisa
em que seu presidente é mestre, enquanto as ameaças, partidas
especialmente da gaviã Hillary Clinton, foram constantes.
Não há dúvida de que o Irã vem praticando violências altamente
reprováveis contra a oposição. Mas, como diria a filósofa Denise
Charuto, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. As justas
críticas às ações repressivas do governo dos aiatolás não o transformam
em réu na presente crise nuclear. Até os opositores mais ardorosos de
Ahmadinejad defendem o direito do país de ter um programa nuclear
pacífico e condenam as sanções que os EUA e seguidores querem lhe impor.
Nesta semana, as coisas podem se encaminhar bem. Já se sabe que o Irã
está disposto a fazer concessões às propostas dos chefes do governo do
Brasil e da Turquia – de envio do urânio iraniano de baixo
enriquecimento ao território turco, onde ficaria até ser trocado com o
urânio enriquecido a 20 graus na França ou na Rússia.
Além disso, de Bruxelas, a agência DPA reportou que está sendo agendada
uma reunião entre Catherine Ashton, chefe de Política Internacional da
União Européia, e o chefe das negociações nucleares do Irã, Saeed
Jalili, por iniciativa de Ahmed Davotaglu, ministro das Relações
Exteriores da Turquia.
Há possibilidades de que a tão criticada viagem do presidente Lula a
Teerã poderá representar um princípio da solução da crise.
Luiz Eça é jornalista.
|
segunda-feira, 17 de maio de 2010
A sociedade do consumismo.....
O império do consumo
por Eduardo Galeano
O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens
imperiosas de
consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio:
para
quase todos esta aventura começa e termina no écran do televisor.
A maioria, que se endivida para ter coisas, termina por ter nada
mais que
dívidas para pagar dívidas as quais geram novas dívidas, e
acaba a consumir fantasias que por vezes materializa delinquindo.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?
A explosão do consumo no mundo actual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.
"Gente infeliz os que vivem a comparar-se", lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. "Quando não tens nada, pensas que não vales nada", diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: "Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações".
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a "obesidade severa" aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.
Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um património colectivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hamburguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald's, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.
O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald's dispara hamburguers às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald's de Moscovo, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas no 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.
As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mis Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juro que este ou aquele banco oferece. Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram. Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam "porque as pessoas têm o gosto de juntar-se". Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas? O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de auto-carros e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.
O shopping center, ou shopping mall, vitrina de todas as vitrinas, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça. Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas. A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?
A explosão do consumo no mundo actual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.
"Gente infeliz os que vivem a comparar-se", lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. "Quando não tens nada, pensas que não vales nada", diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: "Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações".
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a "obesidade severa" aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.
Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um património colectivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hamburguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald's, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.
O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald's dispara hamburguers às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald's de Moscovo, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas no 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.
As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mis Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juro que este ou aquele banco oferece. Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram. Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam "porque as pessoas têm o gosto de juntar-se". Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas? O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de auto-carros e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.
O shopping center, ou shopping mall, vitrina de todas as vitrinas, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça. Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas. A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Violência na Nigéria....
“A maior parte
das pessoas detidas são menores que não podem legalmente ser sujeitos a
condenações penais. Grande número dos suspeitos detidos afirmam que
foram mandados, mas no fim de contas os responsáveis por isso não são
perseguidos e os nomes deles não são revelados ao público”. Afirmações
terríveis as do nigeriano Shamaki Gad Peter, director de uma ONG com
sede em Jos: a Liga pelos Direitos Humanos.
Infelizmente,
é também uma declaração de grande banalidade. Recolhida pelo Irin
(“Nigéria: Responsabilizar os Perpetradores da violência de massas – ou
não”, 13 de Abril de 2010), confirma realmente o que todos os nigerianos
sabem muito bem desde a implantação duma democracia de fachada, a
“Democrazy”, em 1999: de Kano a Jos, de Kaduna a Lagos, os verdadeiros
responsáveis pelos conflitos étnico-religiosos que ensanguentam a enorme
federação desde o regresso dos civis ao poder – mais de 13 000 vítimas
em dez anos – continuam a manobrar, quase sempre impunes, nas
antecâmaras do poder central.
Dos cerca de 36 estados da Federação, às antecâmaras dos 774
governos locais, estes homens e estas mulheres, que sacrificaram tudo
por uma carreira política, fazem parte dos principais intermediários das
sequências de violência que regularmente cobrem de sangue o país, com
saldos assassinos à imagem da dimensão demográfica da gigantesca África:
150 milhões de habitantes. Na Nigéria, a ferocidade das lutas políticas
para a conquista da melhor parte do bolo nacional continua com efeito a
ser a grelha principal com a qual é preciso continuar a descodificar o
menor abalo étnico-religioso.
O caso de Jos, capital do estado do Plateau, na linha fronteiriça
entre um mundo muçulmano de etnia haoussa-fulani que desceu do norte, e
um puzzle de minorias autóctones maioritariamente cristianizadas, é um
verdadeiro caso de referência. Desde os 1 000 mortos de Setembro de 2001
– um drama que passou completamente desapercebido quando o mundo estava
de olhos cravados nas ruínas do World Trade Center -, a cidade foi
teatro de várias réplicas, como as de Novembro de 2008 e as do inverno
que há pouco terminou. Ora, prossegue o Irin, as diversas comissões de
inquérito iniciadas para julgar os culpados «não deram provas de
transparência e acabaram com poucos resultados concretos, perpetuando a
impunidade».
No que se refere às inúmeras execuções extrajudiciais efectuadas
pelos membros das forças policiais anti-motim (MOPOL) executadas no
local em Novembro de 2008 – 118 casos confirmados – a ONG Human Rights
Watch conclui que não conduziram a nenhuma condenação («Mortes
Arbitrárias pelas Forças de Segurança», 20 de Julho de 2009). Para o
investigador Eric Guttschuss, encarregado deste relatório para a HRW,
«As execuções são um meio que aparenta reagir à violência mas, à medida
que o tempo passa e que diminuem as pressões incitando o governo a agir,
cada vez há menos medidas concretas destinadas a atacar as raízes da
violência e a apresentar à justiça os [presumíveis] autores».
Deve-se ao antigo homem forte nigeriano, Ibrahim Badamasi Babangida,
no poder entre 1985 e 1993, a operação da redistribuição eleitoral de
1991 que acrescentou uma centena de governos locais ao mapa eleitoral já
complexo da Nigéria. “Esta reorganização”, esclarece o investigador
nigeriano Philip Ostien, que ensina direito na Universidade de Jos,
“resultou essencialmente duma manipulação concertada visando favorecer
os membros chave da administração Babangida, assim como os seus
principais conselheiros, apoiantes dos lobbystas”. (“Jonah Jang and the
Jasawa: Ethno-Religious Conflict in Jos, Nigeria” [PDF], Agosto 2009).
No Estado de Jos, este decreto serviu para dividir o governo local
da capital – até então nas mãos dos beroms cristianizados – em duas
circunscrições, Jos Sul e Jos Norte, permitindo assim à comunidade
muçulmana haoussa-fulani, até aí mantida afastada da vida política do
Estado, dispor de uma praça forte e de um representante. Confrontando
dois sistemas clientelistas em volta duma cidade que estende a sua
influência urbana sobre os bairros suburbanos, essa clivagem contribuiu
fortemente para acentuar o ressentimento interconfessional que, conforme
vimos, se desencadeou a partir de 2001. «Segundo os cânones ocidentais,
um maior número de governos locais deveria permitir que a democracia se
aproximasse das organizações de base e estivesse mais apta a auscultar
as reivindicações locais», refere Philip Ostien. «Mas na prática, na
Nigéria, isso só serviu para contribuir para multiplicar a prevaricação
política e a violência». «A Nigéria do general Babangida dividiu o país
cinicamente, institucionalizando a corrupção e avivando as rivalidades
entre as três etnias principais, os yorubas, os ibos e os
haoussa-fulani», lembram Jean Claude Usunier e Gérard Verna, autores em
1994 de La Grande Triche. Corruption, éthique et affaires
internationales, (A Grande Falcatrua. Corrupção, ética e questões
internacionais) das edições La Découverte. Como realçava na época Didi
Adodo, um dirigente sindical nigeriano, «Os colonialistas não fizeram
tanto mal à alma nigeriana como Babangida».
«A África precisa de instituições fortes, e não de homens fortes».
Afastado do poder desde as desastrosas eleições gerais de 1993 que
roubaram a vitória ao defunto milionário yoruba Moshood Abiola e
permitiram que o cleptocrata Sani Abacha se instalasse no poder até à
sua morte em 1998, Ibrahim Badamasi Babangida, aliás IBB, aliás «The
Evil Genius» («O génio do mal»), nunca mais largou a cena política.
Regularmente consultado no seu palácio de Minna, no estado nortenho de
Níger, manteve-se um dos principais «fabricantes de reis» nigerianos,
como um garante da estabilidade da Federação. Uma influência que repousa
sobretudo na imensa fortuna acumulada durante o seu mandato, exercido
em parte durante a crise petrolífera da primeira guerra do Golfo: terão
desaparecido dos cofres do Estado nigeriano 12,4 mil milhões de dólares
de receitas do petróleo entre 1990 e 1991.
Actualmente, M. Babangida encara seriamente ser investido pelo
partido que está no poder desde 1999, o PDP, o Partido Democrático
Popular, a fim de concorrer às cruciais eleições gerais de 2011, e
suceder ao presidente interino Goodluck Jonathan. G. Jonathan
instalou-se no palácio de Aso Rock, em Abuja, depois de seis meses de
crise constitucional devida à longa doença do chefe de Estado em
exercício, Umaru Yar’Adua. Entrevistado por Christine Ananpour da cadeia
de informações americana CNN, por ocasião da sua primeira viagem
oficial ao estrangeiro – na ocorrência, os Estados Unidos – G. Jonathan
ocultou a questão da sua participação nas eleições de 2011 (“I won’t
force myself to meet Yar’Adua, diz Johathan, 14 de Abril de 2009).
É certo que, em nome do princípio de «mudança» nigeriana – que
pretende que se alterne entre os dois mandatos entre um presidente saído
do norte muçulmano e um chefe de Estado originário do sul cristão –
deveria ser novamente uma figura política muçulmana a assumir a chefia
do país. Ora as aspirações de Babangida, que aceitou manter-se no banco
desde 1999, mediante a garantia da sua impunidade, parecem desde já ter
sido entendidas por Washington. Os observadores, com os nigerianos em
primeiro plano, repararam com inquietação que este último se encontrou
discretamente, em 24 de Fevereiro passado, no seu refúgio de Mina, com
dois elos de contacto da administração Obama: O secretário de Estado
para os Assuntos Africanos, Johnny Carson, assim como o embaixador
americano na Nigéria, Robin Sanders. Não transpirou nada deste encontro,
organizado enquanto diversas outras figuras americanas se encontravam
no país: o antigo presidente George W. Bush e a sua antiga secretária de
Estado, Condoleezza Rice.
Tratava-se de abordar a questão da instalação da Africom na Nigéria?
De analisar a crise de governação de que o país acabava de sair? De
falar sobre petróleo? Ou de encarar, pura e simplesmente, o futuro? O
artigo do advogado nigeriano, Funmi Feyde-John, publicado pelo site
Pambazuka News («A crise constitucional da Nigéria e a ingerência
americana», 22 de Março de 2010), aponta algumas pistas. Johnny Carson
declara nomeadamente: «A Nigéria tem necessidade de um dirigente forte,
eficaz e de boa saúde a fim de garantir a estabilidade do país e para
reagir aos inúmeros desafios político, económico e da segurança da
Nigéria». «A África precisa de instituições fortes, não de homens
fortes» responde-lhe Gerard LeMelle, director executivo de Africa
Action, a mais antiga das organizações americanas de defesa dos direitos
humanos dedicadas ao continente, no site do grupo de reflexão americano
Foreign Policy In Focus («África Precisa de Instituições Fortes, Não de
Homens Fortes», 5 de Março de 2010). «Este encontro secreto, mesmo que
tenha sido organizado por outras razões, liga a administração Obama a
uma célula cancerosa da política nigeriana». Como é que os nigerianos,
principalmente os do Delta do Níger que foram vítimas do reinado de
Babangida, vão reagir a esta novo evolução? E o que é que vocês fariam
se estivessem no seu lugar?
Numa entrevista concedida à BBC («O ex-lider da Nigéria, Babangida,
“não vai comprar a presidência”», 13 de Abril de 2010). Babangida, que
reconhece ser «o nigeriano vivo mais vigiado do seu país, e sobre o qual
se investigou mais», declarou que não compraria a presidência… Para
Goodluck Jonathan, um ijaw originário do Delta petrolífero, uma «etnia»
principal na história do país, o tempo parece contado. O presidente
interino, que acaba de assinar uma parceria estratégica com os Estados
Unidos, decide nomear um novo presidente da muito contestada comissão
eleitoral independente a fim de substituir Maurice Iwu, na linha da mira
de Washington. M. Iwu foi especialmente encarregado de dirigir as
eleições gerais de 2007, enodoadas por irregularidades. Esta
substituição garantirá eleições gerais credíveis? Com o regresso de M.
Babangida, mais parece que o país vai avançar para uma nova zona de
temporais. E desta vez, é em Lagos, um caldeirão yoruba, especialmente
hostil a IBB, que eles se poderão desencadear.
Origem: Les blogs du Diplo
* Jornalista
Tradução de Margarida Ferreira
domingo, 16 de maio de 2010
PNDH3: a grande mídia vence mais uma
O curto período entre 21 de dezembro de
2009 e 12 de maio de 2010 foi suficiente para que militares, ruralistas,
Igreja Católica e a grande mídia conseguissem que o governo recuasse em
todos os pontos de seu interesse contidos na terceira versão do PNDH.
Venício Lima -Carta Maior
O curto período de menos de cinco meses
compreendido entre 21 de dezembro de 2009 e 12 de maio de 2010 foi
suficiente para que as forças políticas que, de fato, há décadas,
exercem influência determinante sobre as decisões do Estado no Brasil,
conseguissem que o governo recuasse em todos os pontos de seu interesse
contidos na terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos
(Decreto n. 7.037/2009). Refiro-me, por óbvio aos militares, aos
ruralistas, à Igreja Católica e, sobretudo, à grande mídia.
Em editorial com o sugestivo título de “O Poder da Pressão”, publicado no dia 15 de maio, o jornal O Globo não poderia ter sido mais explícito. Para o jornalão carioca, os interesses dessas forças políticas são confundidos deliberadamente com “um forte sentimento coletivo” e com o interesse da “sociedade”. Afirma o editorial:
“Decorridos cinco meses do seu lançamento, o PNDH foi alvo de críticas de militares, da Igreja, de agricultores e de órgãos de comunicação, pela visão unilateral com que abordava questões polêmicas. Entre estas, a atuação dos órgãos de segurança durante o regime militar de 64, o aborto, as invasões de terra e a liberdade de expressão. (...) O recuo do Planalto não deixa de corresponder a uma vitória significativa da sociedade, cujo poder de pressão ficou evidente no episódio.”
Direito à Comunicação
No que se refere especificamente ao direito à comunicação, o novo Decreto mantém a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe "a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados". Agora, no entanto, foram excluídas as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas. Foi também excluída a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
Abaixo o que foi alterado:
Diretriz 22: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para consolidação de uma cultura em Direitos Humanos.
Objetivo Estratégico I:
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos.
Ações Programáticas:
Era assim:
a) Propor a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.
Ficou assim:
a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados.
(...)
A ação programática contida na letra d foi revogada:
d) Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações.
O poder da grande mídia
Na verdade, os principais grupos de mídia atingiram seus objetivos em período ainda menor do que o necessário para as outras forças políticas: entre 8 de janeiro e 12 de maio, pouco mais do que quatro meses.
Na primeira data foi publicada uma Nota à Imprensa conjunta, assinada pela ABERT, pela ANJ e pela ANER. A Nota terminava afirmando:
“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros esperam que as restrições à liberdade de expressão contidas no decreto sejam extintas, em benefício da democracia e de toda a sociedade.”
Agora, logo depois da publicação das alterações do plano (Decreto n. 7.177/2010), as mesmas entidades voltam a publicar Nota à Imprensa, dessa vez considerando “louvável” o recuo do governo.
“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros consideram louvável a iniciativa do governo de suprimir pontos críticos que ameaçavam a liberdade de expressão do Decreto nº 7.037, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3.”
Não vou repetir aqui os argumentos de que o PNDH3 original não propunha nada que fosse inconstitucional ou que ameaçasse a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa.
Registro apenas que a realidade fala mais alto e confirma que ainda não foi dessa vez que o interesse público prevaleceu sobre os interesses da grande mídia.
E, assim, caminhamos.
Em editorial com o sugestivo título de “O Poder da Pressão”, publicado no dia 15 de maio, o jornal O Globo não poderia ter sido mais explícito. Para o jornalão carioca, os interesses dessas forças políticas são confundidos deliberadamente com “um forte sentimento coletivo” e com o interesse da “sociedade”. Afirma o editorial:
“Decorridos cinco meses do seu lançamento, o PNDH foi alvo de críticas de militares, da Igreja, de agricultores e de órgãos de comunicação, pela visão unilateral com que abordava questões polêmicas. Entre estas, a atuação dos órgãos de segurança durante o regime militar de 64, o aborto, as invasões de terra e a liberdade de expressão. (...) O recuo do Planalto não deixa de corresponder a uma vitória significativa da sociedade, cujo poder de pressão ficou evidente no episódio.”
Direito à Comunicação
No que se refere especificamente ao direito à comunicação, o novo Decreto mantém a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe "a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados". Agora, no entanto, foram excluídas as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas. Foi também excluída a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
Abaixo o que foi alterado:
Diretriz 22: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para consolidação de uma cultura em Direitos Humanos.
Objetivo Estratégico I:
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos.
Ações Programáticas:
Era assim:
a) Propor a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.
Ficou assim:
a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados.
(...)
A ação programática contida na letra d foi revogada:
d) Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações.
O poder da grande mídia
Na verdade, os principais grupos de mídia atingiram seus objetivos em período ainda menor do que o necessário para as outras forças políticas: entre 8 de janeiro e 12 de maio, pouco mais do que quatro meses.
Na primeira data foi publicada uma Nota à Imprensa conjunta, assinada pela ABERT, pela ANJ e pela ANER. A Nota terminava afirmando:
“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros esperam que as restrições à liberdade de expressão contidas no decreto sejam extintas, em benefício da democracia e de toda a sociedade.”
Agora, logo depois da publicação das alterações do plano (Decreto n. 7.177/2010), as mesmas entidades voltam a publicar Nota à Imprensa, dessa vez considerando “louvável” o recuo do governo.
“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros consideram louvável a iniciativa do governo de suprimir pontos críticos que ameaçavam a liberdade de expressão do Decreto nº 7.037, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3.”
Não vou repetir aqui os argumentos de que o PNDH3 original não propunha nada que fosse inconstitucional ou que ameaçasse a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa.
Registro apenas que a realidade fala mais alto e confirma que ainda não foi dessa vez que o interesse público prevaleceu sobre os interesses da grande mídia.
E, assim, caminhamos.
Venício A. de Lima é professor titular
de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre
outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à
Comunicação e Democracia, Publisher, 2010 (no prelo).
Um jornalista de(a) Verdade...
André Pereira no Sul21
Lula, o presidente mais amado da
história da Nação, é simplesmente um gênio político, dotado de uma
sabedoria inata. Esta definição, adjetivada e superlativa, poderia
nascer da boca de um assessor presidencial “baba-ovos” - para ficar na
contundência verbal do personagem a seguir aludido. Ou ser gestada pela
credulidade de uma velhinha do agreste de Garanhuns. Ou, ainda, ser
incorporada ao jargão dos marqueteiros em ritmo de campanha eleitoral
para 2010. Mas, não: a frase é da autoria de um dos jornalistas mais
respeitados do país, com reconhecimento internacional e dono de um
acúmulo profissional invejável que inclui, no mais recente escaninho
curricular, a revista Carta Capital, de leitura imprescindível como diz
seu anfitrião, Ruy Carlos Ostermann, no "Encontros com o professor", em
uma terça-feira de março, no StúdioClio inteiramente lotado.
Mino Carta, o jornalista genovês de 76
anos que adotou o Brasil desde os 14 anos, define Lula como "o
presidente mais amado da história da Nação. É simplesmente um gênio
político, dotado de uma sabedoria inata que foi sendo aperfeiçoada ao
longo da sua trajetória de vida". Mino considera que a eleição de um
ex-metalúrgico, um ex-operário que se identifica com o povo, para
presidente do Brasil, é um divisor de águas na história de um país como o
nosso que padece, entre outros males de origem, de uma colonização
feita por predadores e de ostentar o título inglório de a última nação a
declarar o fim da escravidão.
Sentado sobre uma das pernas, repuxando a
calça cinza de bainha italiana e deixando à mostra botinas marrons de
presumíveis origens itálicas que servem sobretudo para alimentar a fama
de homem elegante que acompanha suas descrições pessoais, dividindo duas
garrafas da cerveja artesanal Coruja com seu entrevistador, no palco,
Mino foi aplaudido de pé, por uns cinco minutos, ao final de quase
duas horas de descontraída conversa que contemplou algumas indagações do
público mas abrigou, sobretudo, provocações certeiras do professor
decidido a desvendar uma personalidade jornalística única na mídia
atual.
Único mesmo? "Outros jornalistas talvez
não tiveram as oportunidades que eu tive", especula. "Ou conquistei as
oportunidades que tive porque sou como sou", filosofa ele, quando Ruy
indaga se haveriam outros jornalistas da estirpe rebelada dele
trafegando na imprensa nacional, do tipo que não manda recados
para assumir suas posições, normalmente opostas as ideais camuflados da
grande imprensa, da grande midia que ele define como continuadamente
golpista e a favor dos senhores do poder, das elites.
Para Mino, uma das geniais percepções de
Lula está na proposta de criar um clima plebiscitário para o embate
eleitoral deste ano, com Dilma Rousseff encarnando sua continuidade para
opor-se ao candidato José Serra travestido de retrocesso
tucano vinculado a Fernando Henrique Cardoso. "Em todos os aspectos que
se for comparar, o governo de Lula é infinitamente superior ao de
Fernando Henrique", Mino não tem a menor dúvida. "O governo de Fernando
Henrique levou o Brasil à bancarrota, quebrou o país, deixando um rombo
enorme para Lula administrar."
Mino se orgulha de ter percebido a
diferencial capacidade política do líder sindical antes da maioria dos
colegas, mais precisamente há 33 anos, quando colocou o operário Lula
estrelando reportagem na capa da revista IstoÉ.
Em 2002, quando Lula venceu pela
primeira vez o pleito presidencial, a população queria mudanças e o
candidato petista soube interpretar o cenário forjado pelo anseio e pela
sensibilidade geral. Hoje, ao contrário, o brasileiro quer continuidade
das políticas de sucesso praticadas nos oito anos de gestão lulista.
Nem tanto pelo bem sucedido programa Bolsa Família como querem alguns
analistas, mas acima de tudo, pela abertura de crédito que permitiu à
população ampliar o poder de compra. "O Bolsa Família abarca uma
realidade que me entristece, assim como me entristece ver uma favela,
ver a miséria. Por isso me cheira um pouco a algo como esmola", diz
ele, assinalando que faltou audácia a Lula e que muito ainda precisa ser
feito no Brasil para enfrentar seu mais agudo e violento problema: a má
distribuição de renda. Segundo ele, "conquistar a liberdade não é
importante se não existir a igualdade".
Mino acredita que o golpe de 1964 impôs
danos terríveis, que o Brasil ainda não compensou. "Naqueles idos
formava-se um proletário que se robustecia e poderia ter resultado em
uma classe econômica e social que faria grande diferença no país". Ele
também minimiza o protagonismo militar no episódio. "Quem deu o golpe
foram os donos do poder, as elites; os milicos fizeram o trabalho sujo".
Conhecido pelos textos primorosos e
pelo nível superior dos veículos impressos que criou (Veja, IstoÉ,
Senhor, Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Jornal da República, Carta
Capital), Mimo fez TV, também, mas como relembrou, sofreu
contrariedades. Um desses programa, da extinta TV Tupi, sequer foi ao
ar, proibido no nascedouro pelo então ministro da Justiça, Armando
Falcão, que considerou uma discussão sobre o machismo, atentatória à
moral e aos bons costumes da ditadura brasileira. Para diversão da
platéia, ele lista entre os convidados do debate o que classifica
como atores garanhões do cinema pornô tupiniquim como David Cardoso e
Jece Valadão.O outro programa sobreviveu por alguns meses.
E a terceira experiência televisa,
"Jogo de Carta", exibido na antiga TV Record, este, sim, vingou por
três anos em sua pretensão de fazer a defesa disfarçada de Tancredo
Neves contra o indigitado Paulo Maluf. Até que o governo incomodou
demais os proprietários da família de Paulo Machado de Carvalho (aquele
mesmo bonachão Marechal do Bicampeonato Brasileiro de Futebol)
pressionando e pedindo sua cabeça.
Mino incomoda-se com a pergunta de um
estudante de Jornalismo que, na platéia, menciona, de passagem, sua
polêmica demissão da revista Veja. O menino quer sua apreciação sobre
outro tema que se perde porque Mino fixa este episódio e ressalta
definitivo: "Eu me demiti, não fui demitido", diz para repetir, várias
vezes depois, como se sua honra profissional estivesse em jogo.
Narra, indignado, que contou sua saída da revista em uma entrevista de
quatro horas de duração para o autor do livro "Notícias do Planalto",
Mario Sérgio Conti, que, entretanto, cunhou a versão indesejável do pé
no traseiro na obra que ele trata como abominável e hediondo.
Na autoconcepção pública que ele próprio
divulga, Mino é "muito chato" porque impõe um relacionamento difícil a
quem está nas suas cercanias: perde o controle, costuma gritar,
esbraveja e gesticula, teatraliza colérico e sanguíneo. "Mas
me recomponho rapidamente. Só gostaria de ser mais sábio e
sereno", afirma, sem convencer muito quem ouve recortes de sua
preciosa jornada jornalística, empreendida ainda hoje com a companhia da
sua inseparável máquina de escrever Olivetti onde diz que batuca sem
grande habilidade pois, às vezes,os dedos intrometem-se entre as teclas,
mas segue fidelíssimo a uma imperturbável e intransferível missão de
vida: "No final das contas isto é bem simples: eu só quero mesmo ser um
jornalista de verdade".
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Saiba o que é o capitalismo
Escrito por Atilio A. Boron no Correio da Cidadania | |
O capitalismo tem legiões de apologistas. Muitos o são de boa fé,
produto de sua ignorância e pelo fato de que, como dizia Marx, o sistema
é opaco e sua natureza exploradora e predatória não é evidente aos
olhos de mulheres e homens. Outros o defendem porque são seus grandes
beneficiários e amealham enormes fortunas graças às suas injustiças e
iniqüidades. Há ainda outros (‘gurus’ financeiros, ‘opinólogos’ e
‘jornalistas especializados’, acadêmicos ‘pensantes’ e os diversos
expoentes desse "pensamento único") que conhecem perfeitamente bem os
custos sociais que o sistema impõe em termos de degradação humana e
ambiental. Mas esses são muito bem pagos para enganar as pessoas e
prosseguem incansavelmente com seu trabalho. Eles sabem muito bem,
aprenderam muito bem, que a "batalha de idéias" para a qual nos convocou
Fidel é absolutamente estratégica para a preservação do sistema, e não
aplacam seus esforços.
Para contra-atacar a proliferação de versões idílicas acerca do
capitalismo e sua capacidade de promover o bem-estar geral, examinemos
alguns dados obtidos de documentos oficiais do sistema das Nações
Unidas. Isso é extremamente didático quando se escuta, ainda mais no
contexto da crise atual, que a solução dos problemas do capitalismo se
consegue com mais capitalismo; ou que o G-20, o FMI, a Organização
Mundial do Comércio e o Banco Mundial, arrependidos de seus erros
passados, poderão resolver os problemas que asfixiam a humanidade. Todas
essas instituições são incorrigíveis e irreformáveis, e qualquer
esperança de mudança não é nada mais que ilusão. Seguem propondo o
mesmo, mas com um discurso diferente e uma estratégia de "relações
públicas" desenhada para ocultar suas verdadeiras intenções. Quem tiver
duvidas, olhe o que estão propondo para "solucionar" a crise na Grécia:
as mesmas receitas que aplicaram e continuam aplicando na América Latina
e na África desde os anos 80!
A seguir, alguns dados (com suas respectivas fontes) recentemente
sistematizados pelo CROP, o Programa Internacional de Estudos
Comparativos sobre a Pobreza, radicado na Universidade de Bergen,
Noruega. O CROP está fazendo um grande esforço para, desde uma
perspectiva crítica, combater o discurso oficial sobre a pobreza,
elaborado há mais de 30 anos pelo Banco Mundial e reproduzido
incansavelmente pelos grandes meios de comunicação, autoridades
governamentais, acadêmicos e "especialistas" vários.
População mundial: 6.800 bilhões, dos quais...
1,020 bilhão são desnutridos crônicos (FAO, 2009)
2 bilhões não possuem acesso a medicamentos (http://www.fic.nih.gov/)
884 milhões não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF, 2008)
924 milhões estão "sem teto" ou em moradias precárias (UN Habitat, 2003)
1,6 bilhão não têm eletricidade (UN HABITAT, "Urban Energy")
2,5 bilhões não têm sistemas de drenagens ou saneamento (OMS/UNICEF,
2008)
774 milhões de adultos são analfabetos (http://www.uis.unesco.org/)
18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças
menores de 5 anos (OMS).
218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos, trabalham precariamente em
condições de escravidão e em tarefas perigosas ou humilhantes, como
soldados, prostitutas, serventes, na agricultura, na construção ou
indústria têxtil (OIT: A eliminação do trabalho infantil: um objetivo ao
nosso alcance, 2006).
Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua
participação na renda global de 1,16% para 0,92%, enquanto os opulentos
10% mais ricos acrescentaram mais às suas fortunas, passando de dispor
de 64,7% para 71,1% da riqueza mundial. O enriquecimento de uns poucos
tem como seu reverso o empobrecimento de muitos.
Somente esse 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente
para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando inumeráveis
vidas e reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres. Entenda-se
bem: tal coisa se conseguiria se simplesmente fosse possível
redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos
10% mais ricos. Mas nem sequer algo tão elementar como isso é aceitável
para as classes dominantes do capitalismo mundial.
Conclusão: se não se combate a pobreza (que nem se fale de erradicá-la
sob o capitalismo) é porque o sistema obedece a uma lógica implacável
centrada na obtenção do lucro, o que concentra riqueza e aumenta
incessantemente a pobreza e a desigualdade sócio-econômica.
Depois de cinco séculos de existência eis o que o capitalismo tem a
oferecer. O que estamos esperando para mudar o sistema? Se a humanidade
tem futuro, será claramente socialista. Com o capitalismo, em
compensação, não haverá futuro para ninguém. Nem para os ricos e nem
para os pobres. A frase de Friedrich Engels e também de Rosa Luxemburgo,
"socialismo ou barbárie", é hoje mais atual e vigente do que nunca.
Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca
incessante do lucro e seu motor é a ganância. Mas cedo que tarde provoca
a desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a
decadência política e uma crise moral. Ainda temos tempo, mas já não
tanto.
Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación
a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.
Website: http://www.atilioboron.com/.
Traduzido por Gabriel Brito, jornalista.
|
A decadência da Igreja Católica.....
O Papa, a Pedofilia e a Luta de Classes
Ao afirmar no avião
que o transportou a Portugal que “Os ataques contra a Igreja e o Papa
não vêm apenas do exterior, os sofrimentos vêm do interior da Igreja, do
pecado que existe na Igreja”, Bento XVI procurou sacudir as imensas
responsabilidades que têm na protecção dos sacerdotes que abusaram
pessoalmente de milhares de crianças confiadas à responsabilidade da
Igreja.
Sara Flounders, no bem documentado texto que hoje publicamos, acusa
Ratzinger de ser o principal responsável do encobrimento e protecção dos
sacerdotes que abusaram de crianças um pouco por todo o mundo.
Há mais de
150 anos, no Manifesto Comunista, Marx explicou que «toda a História da
humanidade foi uma História da luta de classes. (…) patrícios e plebeus,
senhores e servos, opressores e oprimidos (…) sempre se enfrentaram,
mantiveram a luta, umas vezes velada e outras franca e aberta. (…) A
moderna sociedade burguesa (…) substituiu as velhas classes, as
velhas condições de opressão, as velhas formas de luta por outras novas»
Uma luta feroz tem atormentado a Igreja Católica durante os últimos 25 anos, com alguns dos oprimidos sobreviventes de abusos sexuais durante a sua infância a exigirem, cada vez mais, que se actuasse contra sacerdotes individuais e, ultimamente, contra a poderosa hierarquia eclesiástica, incluindo bispos e cardeais que, constantemente, protegeram os violadores.
Uma luta feroz tem atormentado a Igreja Católica durante os últimos 25 anos, com alguns dos oprimidos sobreviventes de abusos sexuais durante a sua infância a exigirem, cada vez mais, que se actuasse contra sacerdotes individuais e, ultimamente, contra a poderosa hierarquia eclesiástica, incluindo bispos e cardeais que, constantemente, protegeram os violadores.
Esta exigência de justiça vinda de baixo conseguiu o impensável:
trazer á luz do dia papel do actual papa, Bento XVI, num punível
encobrimento internacional.
O marxismo é uma ciência que explica as relações de classe
subjacentes a factos sociais que parecem obscuros e distantes da luta
imediata dos trabalhadores. A actual controvérsia, por muito que se
esconda por detrás dos paramentos clericais, não deixa de ser uma luta
de classes no interior da Igreja Católica. Trata-se de uma pequena parte
da luta de classes global que aspira á absoluta igualdade de direitos e
de autoridade.
O que antes se aceitava por não haver outro remédio tornou-se hoje
insuportável. Os milhares de vítimas de abusos sexuais que hoje
denunciam casos de pedofilia eram crentes genuínos, filhos da classe
trabalhadora, sem qualquer possibilidade – até agora – de opor
resistência ou confessar às suas próprias famílias os delitos de que
foram vítimas. Eram crianças violadas em hospícios, reformatórios,
escolas para surdos-mudos e deficientes, escolas paroquiais locais e
igrejas.
Este desafio desde baixo contra o secretismo e a repressão é uma
clara ruptura com o passado. O mau-trato sexual permaneceu impune porque
as autoridades religiosas eram impunes. Em muitas escolas paroquiais as
violações eram clandestinas, mas os maus-tratos físicos, psicológicos e
as humilhações eram tão habituais que se tornaram a normalidade.
Logo que as vítimas sobreviventes começaram a falar os sacerdotes
que se colocavam ao seu lado foram silenciados e excluídos do ensino ou
de posições de poder. Mas a hierarquia eclesiástica – um pequeno grupo
que detém de forma absoluta a autoridade religiosa – não conseguiu
silenciar ou deter este movimento.
Praticamente, nenhuma das denúncias surgiu do exterior ou das
autoridades laicas, receosas de ofender uma instituição tão poderosa,
mas todas surgiram de indivíduos católicos sem qualquer poder no
interior da Igreja que recusaram continuar silenciosos. Apresentaram
queixas, fizeram declarações e, por último, fizeram queixas judiciais,
uma após outra.
A hierarquia eclesiástica, empenhada em defender o seu
inquestionável poder, exigiu silêncio absoluto. Ameaçou com a excomunhão
os que apresentassem queixa judicial e exigissem a intervenção das
autoridades civis. Este esforço para manter o controlo absoluto dos
sacerdotes defronta-se com uma luta interna muito mais ampla, que tenta
esclarecer quais são os interesses a que esta poderosa instituição se
devia submeter.
O escândalo internacional que hoje emociona a Igreja Católica inclui
provas irrefutáveis de dezenas de milhares de casos de violações
infantis e maus-tratos sexuais cometidos por milhares de sacerdotes. As
queixas apresentadas aconteceram ao longo de décadas. A luta mais
encarniçada começou nas cidades que até agora albergavam os crentes mais
devotos dos EUA. Daí passou à Irlanda, depois a Itália e, mais tarde a
regiões da Alemanha com fortes populações católicas.
Perturbador, e agora a receber um tratamento quase quotidiano nos media,
é a certeza de que o actual papa, Bento XVI, foi durante décadas
responsável pessoal pela ocultação, encobrimento e sigilo sobre os
depredadores sexuais. As condenações mais enérgicas provêm dos que,
apesar disso, se consideram parte integrante da Igreja Católica.
O teólogo liberal Hans Kung descreveu assim o papel do papa Bento
XVI no auge da ocultação e do silêncio que rodeava as violações: «Não
havia uma só pessoa em toda a Igreja Católica que soubesse de mais casos
de abusos sexuais que ele, visto que tais casos faziam parte do seu
trabalho diário. (…) O que ele não pode fazer é apontar o dedo aos
bispos e dizer-lhes que não fizeram o suficiente. Foi ele quem deu as
instruções na qualidade de Presidente da Congregação para a Doutrina da
Fé e, depois, voltou a dá-las como papa.»
Em 26 de Março de 2010, o editorial do National Catholic Reporter
afirmava o seguinte: «O Santo Padre tem de responder directamente, num
foro credível, às perguntas sobre qual foi a sua responsabilidade como
arcebispo de Munique (1977-1982), como perfeito da Congregação para a
Doutrina da Fé (1982-2005) e como papa (desde 2005 até hoje) pela
inépcia com que tratou a crise dos abusos sexuais do clero.»
Antes de em Abril de 2005 ter sido nomeado para o cargo máximo da
hierarquia católica, o papa Bento XVI era conhecido como o Cardeal
Joseph Ratzinger. Os seus adversários referiam-se a ele como «o pitbull»
e como o «rotweiller de Deus». Ratzinger era então um protegido da
extrema-direita do papa João Paulo II, que o nomeou para que impusesse a
disciplina e a autoridade eclesiástica numa instituição afundada numa
profunda agitação.
Durante 24 anos, Ratzinger presidiu à instituição mais poderosa e
historicamente mais repressiva da Igreja Católica, a Congregação para a
Doutrina da Fé, entidade que durante séculos tinha sido conhecida como o
Santo Ofício da Inquisição, responsável pelo estabelecimento de
tribunais religiosos para a condenação e a tortura de dezenas de
milhares de pessoas acusadas de bruxaria e heresia. A Inquisição deu
lugar a pogroms e expropriações massivas de judeus e muçulmanos. Foi
através deste Ofício no interior da Igreja que o papa João Paulo II
implantou uma moderna Inquisição.
Um vasto encobrimento perfeitamente documentado
A escala da criminosa conspiração internacional de silêncio
destinada a proteger delinquentes sexuais em série e a pôr os interesses
da Igreja acima da segurança e bem-estar das crianças ficou
perfeitamente documentada no ano passado com a forma como se tratou o
caso de abusos sexuais na Irlanda, um país maioritariamente católico.
Depois de anos de petições das vítimas de violações para que a
Igreja tomasse medidas e o governo julgasse os responsáveis e, depois de
uma série de actos censórios nos media irlandeses, o governo
de Dublin encomendou um estudo que demorou nove anos a fazer. Em 20 de
Maio de 2009 a Comissão publicou um relatório de 2.600 páginas.
Este relatório incluía testemunhos de milhares de antigos internos e
de responsáveis por mais de 250 instituições controladas pela Igreja. A
Comissão constatou que quer sacerdotes quer freiras católicas tinham
aterrorizado milhares de meninos e meninas ao longo de décadas e que os
inspectores do governo tinham fracassado na hora de cortar radicalmente
com as tareias, as violações e as humilhações crónicas e diárias. O
relatório qualificou as violações e os abusos sexuais de «endémicos» nas
escolas e nos orfanatos católicos dirigidos pela Igreja da Irlanda (www.childabusecommission.com/rpt/).
A grandeza dos abusos na Irlanda e a força do movimento que exigia o
seu reconhecimento fizeram com que o papa Bento XVI se visse forçado a
emitir uma débil desculpa, na qual são responsabilizados os bispos
irlandeses. Esta recusa em admitir a menor responsabilidade pelo seu
conhecido procedimento como dirigente – sempre insistiu no silêncio –
encolerizou milhões de católicos sinceros e fervorosos, e enfureceu
ainda mais uma oposição que há décadas está em crescendo no interior da
Igreja Católica.
Em Springfield (Massachusetts), o reverendo James J. Scahill – há
anos critico do encobrimento eclesiástico – respondeu durante um sermão à
frouxa desculpa, qualificando alguns clérigos de «criminosos» e pedindo
a demissão do papa Bento XVI:
«Devemos declarar pessoal e colectivamente que duvidamos muito da honestidade do papa e daquelas autoridades eclesiásticas que o estão a defender ou inclusivamente a partilhar responsabilidades em seu nome. Começa a ser evidente que, durante décadas, se não séculos, os dirigentes da Igreja ocultaram os abusos sexuais de crianças e menores para proteger a sua imagem institucional e a imagem do sacerdócio», disse Scahill (New York Times, 12 de Abril de 2010).
«Devemos declarar pessoal e colectivamente que duvidamos muito da honestidade do papa e daquelas autoridades eclesiásticas que o estão a defender ou inclusivamente a partilhar responsabilidades em seu nome. Começa a ser evidente que, durante décadas, se não séculos, os dirigentes da Igreja ocultaram os abusos sexuais de crianças e menores para proteger a sua imagem institucional e a imagem do sacerdócio», disse Scahill (New York Times, 12 de Abril de 2010).
Scahill acrescentou que tinha começado a falar claro depois dos seus
próprios paroquianos lhe contarem os abusos sexuais que tinham sofrido
durante décadas em Boston e lhe terem pedido que fizesse alguma coisa.
O Cardeal Bernard Law, da arquidiocese de Boston, teve um papel
destacado na protecção de sacerdotes implicados em abusos sexuais de
crianças para não sofressem qualquer castigo – nem religioso nem civil –
transferindo-os sigilosamente para outros lugares. Em 2002, este facto
converteu-se num escândalo nacional quando um juiz de Massachutts
permitiu a divulgação de milhares de páginas de documentos, memorandos e
declarações legais. Estes documentos mostravam uma clara tendência para
a ocultação, protectora dos culpados e marginaladora das vítimas, ao
revelar que, desde 1940, mais de 1.000 crianças tinham sofrido abusos
sexuais na arquidiocese, por parte de mais de 250 sacerdotes e
trabalhadores eclesiásticos. O cardeal Law foi obrigado a resignar de
forma pouco digna e a arquidiocese de Boston foi condenada a desembolsar
como indemnização a 552 vítimas, entre 85 e 100 milhões de dólares.
Esta multimilionária condenação, o aumento de escândalos noutras
cidades e a ampla cobertura mediática que os factos tiveram forçaram os
bispos norte-americanos a publicar uma «Declaração para a protecção de
crianças e jovens», na qual se instituía uma política de tolerância
zero, com expulsão imediata dos sacerdotes implicados mesmo que num só
daqueles actos. Mas a dita declaração não propôs nenhuma medida contra
os bispos que tinham encoberto os delitos.
O então cardeal Ratzinger que estava no Vaticano, recusou-se a dar
andamento a este modesto esforço de limpeza. Em vez disso, exigiu que
todas as acusações de abusos sexuais fossem transferidas para o Ofício
que presidia – a Congregação para a Doutrina da Fé – antes que os padres
fossem expulsos do sacerdócio. Um dos seus primeiros actos como papa
foi promover o cardeal de Boston, Bernard Law, a um lugar de prestígio
no Vaticano.
Numa carta de infausta memória enviada que Ratzinger enviou aos
bispos em 2001 e que tem sido profusamente citada, utilizou a sua
influência para que as alegações de abusos sexuais se mantivessem
secretas sob ameaça de excomunhão. Os sacerdotes acusados de delitos
sexuais e as suas vítimas receberam ordem para «manterem o mais estrito
silêncio» e «guardar silêncio perpétuo».
O padre Tom Doyle, um antigo advogado do Vaticano, denunciou esta
política da cúpula do Vaticano com as seguintes palavras: Trata-se de
uma medida explícita de encobrimento de casos de abusos sexuais infantis
por aprte do clero e de castigo para os que divulguem este tipo de
delito cometido por sacerdotes. Cada vez que se descobriam padres
delinquentes a resposta não era investigar os casos e julgá-los mas
transferi-los para outro sítio.
Negligência ou cumplicidade criminosa?
Qual é a dimensão dos delitos sexuais cometidos contra a juventude? É
a hierarquia eclesiástica culpada por ter ignorado o problema, isto é,
de negligência criminosa, ou de ter recusado tomar medidas quando teve
conhecimento dos delitos?
Um memorando assinado pessoalmente pelo então cardeal Ratzinger,
quando dirigia no Vaticano o poderoso Ofício e depois da centralização
de todos os casos, foi publicado em Abril e levantou um enorme
burburinho. Ratzinger anulou e interrompeu todas as acções que se
puseram contra um padre predador, o reverendo Lawrence C. Murphy.
Murphy foi acusado de abusar sexualmente de mais de 200 rapazes numa
escola para surdos-mudos de Milwaukee, apesar das petições a pedir a
sua expulsão, inclusive do seu bispo. Durante décadas, os antigos
estudantes tinham utilizaram uma linguagem de sinais e juramentos
escritos em reuniões com bispos e funcionários civis, em que pediam que o
padre Murphy fosse acusado e julgado por tais delitos.
Simultaneamente, soube-se em Itália que 67 antigos pupilos de uma
outra escola de surdos-mudos, em Verona, tinham acusado 24 padres e
religiosos leigos de repetidas violações que lhes infligiram desde os
sete anos.
Na Alemanha, mais de 250 casos de abuso sexual ocultado viram a luz
do dia durante os dois últimos meses, inclusive em distritos
directamente supervisionados pelo papa Bento XVI quando era bispo.
A publicidade internacional que rodeou o caso judicial de Boston e a
multimilionária condenação permitiram que muitas outras vítimas
tivessem possibilidade de sair à luz do dia e exigissem justiça. Desde
1950, mais de 4.000 sacerdotes foram acusados nos EUA de abuso de
menores e a Igreja Católica pagou mais de 2.000 milhões de dólares em
indemnizações às vítimas. Em 2007, a arquidiocese de Los Angeles
anunciou que tinha chegado a um acordo por 600 milhões de dólares com
uns 500 queixosos. Seis dioceses viram-se forçados a declarar bancarrota
e muitas outras a vender abundantes bens eclesiásticos para financiar
os acordos.
Muitos destes casos tinham sido descritos detalhadamente por uma
organização denominada Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual por
Sacerdotes (SNAP na sua sigla em inglês). A SNAP é o grupo mais antigo e
numeroso de apoio às vítimas de abuso sexual pelo clero.
Mas as vítimas de abuso não foram apenas crianças. Segundo o St.
Louis Post-Dyspach de 4 de Janeiro de 2003, foi feita uma sondagem
nacional dirigida por investigadores da Universidade de St Louis
financiada por algumas ordens de religiosas católicas. A sondagem
estimou que um «mínimo» de 34.000 freiras católicas, isto é 40% de todas
as freiras católicas dos EUA, tinham sofrido de alguma forma um trauma
sexual.
Vale a pena assinalar que a maioria dos testemunhos, das queixas
judiciais, das averiguações e das revelações de abusos sexuais tiveram
lugar no interior da própria Igreja Católica, e foi feita por antigas
vítimas. Muitos outros católicos – indignados – uniram-se a eles para
exigir a responsabilização de uma hierarquia clerical privilegiada que
vive obcecada pela protecção da sua posição, da sua autoridade e da sua
riqueza, em vez de proteger as crianças.
Na Europa existe uma corrente de opinião – cada vez mais numerosa –
que pretende levar o papa Bento XVI ao Tribunal Penal Internacional
(TPI) acusado do delito de proteger a Igreja e não as suas vítimas.
Geoffrey Robertson, membro do Conselho de Justiça das Nações Unidas e
presidente do Tribunal Especial da Serra Leoa, disse que julga ter
chegado o momento de questionar a imunidade papal.
Num artigo publicado no Guardian de 2 de Abril sob o título
«Sentemos o papa no banco dos réus», Robertson escreveu: «A imunidade
papal não pode continuar. O Vaticano deveria sentir o peso do Direito
Internacional. A pedofilia é um crime contra a humanidade. A anómala
pretensão de que o Vaticano é um Estado – e o papa um chefe de Estado
imune á lei – não resiste à menor análise.»
Naturalmente, vale a pena recordar que o Tribunal Penal
Internacional só apresentou acusações contra quatro países africanos que
estavam debaixo da mira do imperialismo.
O TPI ignorou os crimes de guerra norte-americanos no Iraque e no
Afeganistão, tal como os crimes israelenses contra civis palestinos e
libaneses. Como baluarte que é do imperialismo dos EUA à escala global,
parece pouco provável que o Vaticano tenha que responder perante a
justiça num futuro imediato.
Contra o movimento global pela justiça
Qual a função mais valorizada pelo imperialismo norte-americano
desempenhada pelo Vaticano na sociedade de classes?
Enquanto absolvia, encobria e transferia milhares de padres culpados
de abuso sexual de crianças, o papa Bento XVI aproveitou durante 25
anos o seu cargo de direcção na mais poderosa instituição eclesiástica, a
Congregação para a Doutrina da Fé, com o objectivo de eliminar de
paróquias, escolas e de qualquer posição de poder milhares de
sacerdotes, bispos e pessoas religiosas que, de alguma maneira, tinham
posições progressistas ou defendiam os direitos humanos e a dignidade
dos pobres e oprimidos.
Impediu que os teólogos, docentes, escritores e intelectuais
pudessem escrever, publicar e ensinar em instituições da Igreja. Os
bispos que tentaram utilizar a sua autoridade para promover uma mudança
social foram investigados por deslealdade e forçados a resignar.
Substitui-os o clero politicamente mais reaccionário, desejoso de
preservar a autoridade religiosa e o dogma.
Este foi um esforço da direita mais extrema para sufocar uma
corrente progressista conhecida como a «teologia da libertação», que
procurava alinhar a Igreja com os movimentos de libertação e com as
lutas anticolonistas e revolucionárias que varriam a África, a Ásia e a
América Latina, bem como com o movimento pelos direitos civis nos EUA.
Sacerdotes como o padre Camilo Torres da Colômbia – que escreveu,
dialogou e organizou o seu apostolado na tentativa de unir o catolicismo
e o marxismo revolucionário – foram considerados uma ameaça directa à
exploração capitalista. O padre Camilo Torres uniu-se à luta armada
contra a ditadura lacaia do imperialismo e morreu em combate.
Freiras activistas que dirigiam o Movimento Santuário de ajuda e
salvo-conduto para os emigrantes salvadorenhos que fugiam dos esquadrões
da morte também foram um objectivo a abater, como o foram igualmente
Philip e Tom Berrigan, dois sacerdotes sempre à beira da detenção, que
cumpriram penas de prisão juntamente com um grupo católico oposto à
guerra do Vietname.
Teólogos da libertação como o carismático Leonardo Boff, do Brasil,
sofreram a proibição eclesiástica de fazer declarações ou escrever.
Sacerdotes que disseram servir os pobres, como o padre Jean-Bertrand
Aristide, do Haiti, foram expulsos da sua ordem religiosa e forçados a
demitirem-se pelo crime de «glorificação da luta de classes». Samuel
Ruiz, o bispo de Chiapas (México), recebeu ordem para se abster de fazer
«interpretações marxistas».
Foi uma caça às bruxas e uma purga que tomou como alvo os activistas
contra o racismo e a favor da justiça social. No entanto, o
reaccionário bispo dissidente Richard Williamson, que negou publicamente
o Holocausto, foi calorosamente readmitido na Igreja.
Perante uma oposição cada vez maior em todos os estratos, esta
poderosa instituição que durante séculos protegeu as propriedades e os
privilégios das classes dirigentes ocidentais, utilizou com afinco
crescente as suas forças mais fanaticamente reaccionárias para combater
os que procuravam a mudança, a abertura, a igualdade e a atenção para as
necessidades dos pobres e dos oprimidos.
Sob a liderança do papa João Paulo II e depois do papa Bento XVI, a
Igreja Católica foi um aliado incondicional do imperialismo dos EUA,
opôs-se á construção socialista na Europa de Leste. Como contrapartida,
os poderosos media norte-americanos promoveram activamente e
ofereceram uma cobertura favorável à Igreja Católica, ao mesmo tempo que
diabolizavam os muçulmanos e outras religiões de povos oprimidos.
Em 2006, o papa Bento XVI apoiou a propaganda antimuçulmana que
Washington tinha exacerbado conscientemente para justificar a guerra e a
ocupação do Iraque e do Afeganistão. Num importante discurso papal,
Bento XVI citou um imperador bizantino do século XIV que tinha acusado o
profeta Maomé de apenas ter trazido ao mundo «coisas malignas e
desumanas».
A aliança com o imperialismo norte-americano forçou a Igreja
Católica a reviver os mais reaccionários excessos do seu próprio e
obscuro passado. Membros de grupos com ligações a esquadrões da morte e
ditaduras militares da América Latina e com o fascismo e a
extrema-direita da Europa – como a hermética seita Opus Dei e os
Legionários de Cristo – foram promovidos às mais altas posições no
Vaticano e no mundo.
Dois clérigos fascistas, Josemaria Escrivá – que se colocou ao lado
de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial e organizou bandos fascistas
para caçar comunistas e sindicalistas revolucionários na Espanha de
Franco – e o cardeal croata Aloysius Stepinac – que ajudou a criar
campos de exterminação de judeus sérvios e ciganos – foram canonizados
como santos.
O facto de proteger e esconder sacerdotes que tinham abusado de
crianças ao mesmo tempo que obrigava à demissão as forças religiosas que
defendiam os direitos dos oprimidos e se aliavam com os seus movimentos
de libertação não é contraditório. A indulgência para com marginais e
criminosos e a dura repressão de progressistas são as duas caras de uma
mesma política de classe que consiste em defender a autoridade de uma
hierarquia estabelecida, uma política que a Igreja vem assumindo em cada
assunto social.
Uma visão repressora da sexualidade
Desde o esclavagismo em Roma à sociedade feudal europeia e, depois,
como instrumento fundamental da conquista imperial, a Igreja Católica é
uma instituição religiosa arreigada na sociedade de classes e no
patriarcado. Esta herança patriarcal constitui a base das suas posições
repressoras de todas as formas de expressão sexual humana. Quer se trate
de homossexuais ou heterossexuais, de casados ou solteiros, a Igreja
Católica arroga-se o direito de legislar todas as formas de expressão
sexual da sociedade.
Ao mesmo tempo que se recusava qualquer acção contra depredadores
sexuais porque isso punha em perigo a autoridade e a santidade do
sacerdócio, Ratzinger era o principal executor de arcaicas doutrinas
religiosas sobre a sexualidade e sobre a subordinação da mulher na
Igreja e na sociedade. Não permitiu a menor liberalização em questões de
controlo da natalidade, aborto, divórcio ou reconhecimento da
homossexualidade. No interior da Igreja estas regras impuseram-se
através do prisma do pecado e da culpa. Aos católicos homossexuais, aos
casados depois de um divórcio, aos que praticavam o controlo da
natalidade ou às mulheres que tinham abortado recusavam-se os
sacramentos e eram excluídos da Igreja ou excomungados.
O peso das instituições eclesiásticas com mais recursos económicos e
influência utilizava-se de forma agressiva na sociedade civil para
oposição à liberalização das leis do divórcio, e ao direito da mulher ao
controlo da natalidade e ao aborto. A Igreja Católica organizava e
financiava campanhas políticas contra o matrimónio homossexual e a
adopção de crianças por parte de casais homossexuais. E enquanto
proclamava o seu dever religioso de proteger os «nascituros», recusava a
protecção às crianças que estavam sob o seu controlo.
À medida que ia crescendo a onda de protestos pelos seus ataques
contra as crianças que supostamente deviam cuidar, este agrupamento
reaccionário tentava converter a sua criminosa ocultação dos crimes numa
luta contra os homossexuais, ao ligar a pedofilia – isto é, o abuso
sexual da infância – com a prática homossexual, de mútuo acordo, entre
os adultos.
No passado dia 14 de Abril, o cardeal Tarcísio Bernone, secretário
de estado do Vaticano, atribuiu a pedofilia à homossexualidade, que
tachou de «patologia». Numa conhecida carta aos bispos escrita em 1986, o
papa Bento XVI descreveu a homossexualidade como um «mal moral
intrínseco». Foi mesmo muito mais longe ao justificar e inclusive
incentivar violentos ataques contra os homossexuais ao afirmar que «nem a
Igreja nem a sociedade deveriam surpreender-se se aumentarem as
reacções irracionais e violentas» quando os homossexuais exigem direitos
civis.
Estes crimes contra todos os movimentos de povos oprimidos deverão
ser incluídos na cólera que hoje desperta a hierarquia eclesiástica.
Os anos de repressão, de caça às bruxas e intolerância organizada
fizeram com que a hierarquia católica perca cada vez mais apoios. Está
mais desnorteada que a sua própria congregação e totalmente alheada dos
valores da sociedade.
Por muito esforço que faça, a Igreja Católica já não poderá
recuperar o poder absoluto que teve há 500 ou há 100 anos, quando padres
e bispos não tinham que dar contas dos crimes contra mulheres,
escravos, servos, camponeses ou trabalhadores iletrados.
As desculpas cuidadosamente redigidas de forma a não assumir
qualquer responsabilidade, e os actos de relações públicas com umas
quantas e seleccionadas vítimas de abusos sexuais – onde tudo se
desenrola de acordo com um guião previamente preparado – não vão
resolver a crise que enfrenta a reaccionária cúpula da Igreja Católica.
Hoje, os que sofreram abusos sexuais têm finalmente voz, e também
têm aliados. www.workers.org/2010/world/pope_0429/
* Sara Flounders é co-directora do Centro de Acção Internacional
de Nova York e estudou durante 14 anos em escolas católicas nos Estados
Unidos.
Este texto foi publicado no jornal norte-americano
Worker’s World,
Tradução de José Paulo Gascão
Assinar:
Postagens (Atom)