As questões do Fórum Social Mundial de
Dakar estão organizadas em três grandes temas: a conjuntura global e a
crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum
Social Mundial. O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o
caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase
descolonização. No Fórum de Dakar uma outra questão fundamental será a
do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso
conduz ao problema da expressão política dos movimentos sociais e de sua
relação com os governos.
A conjuntura global e a crise
A
situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da
globalização capitalista. As quatro dimensões da crise (social,
geopolítica, ambiental e ideológica) serão abordadas em Dakar. A crise
social será enfrentada em particular sob os pontos de vista da
desigualdade, da pobreza e da discriminação, enquanto a crise
geopolítica será discutida em particular da perspectiva da guerra e do
conflito, do acesso às matérias primas e da emergência de novas
potências. A crise ambiental será debatida, em particular, sob a
perspectiva da mudança climática, enquanto a crise ideológica será
discutida da perspectiva de ideologias seguras, da questão das
liberdades e da democracia e da cultura, presentes desde o Fórum Social
de Belém, que serão analisadas em profundidade.
A evolução da
crise lança luz sobre uma situação contraditória. Análises do movimento
altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a
crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são
aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores
financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de
tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até
então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20. E mesmo
assim ainda não foram traduzidos em políticas viáveis. Essas propostas
tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das
classes dominantes confiantes no seu poder.
A validação das
agendas resulta na transformação das palavras de ordem dos movimentos em
lugares comuns. É preciso refinar as perspectivas e conceder mais
relevância ao debate estratégico, à articulação entre a resistência de
curto prazo e a de médio prazo e à mudança em curso sob a superfície dos
acontecimentos. A situação lança uma luz sobre a natureza dual da
crise, tensionada entre a crise do neoliberalismo, que é a fase da
globalização capitalista e a crise da própria globalização capitalista;
uma crise do sistema que pode ser analisada como uma crise de
civilização, a crise da civilização ocidental, estabelecida desde
princípios do século XV.
Nesse contexto, alianças estratégicas
devem obedecer a duas exigências. A primeira está vinculada à luta
contra a pobreza, a miséria e a desigualdade, o uso do trabalho precário
e a violação das liberdades no mundo, para melhorar as condições de
vida e a expressão da classe trabalhadora diretamente afetada pela
economia dominante e pelas políticas públicas. A segunda exigência
prioriza o fato de que outro mundo é possível; um mundo necessário
envolve um rompimento definitivo com os modos de produção e consumo da
economia e da sociedade, bem como a redistribuição ambiental, com o
equilíbrio geopolítico do poder estabelecido nas décadas recentes nos
modelos democráticos proeminentes do ocidente.
Três propostas
emergem como respostas à crise: o neoconservadorismo, que propõe a
continuação do atual padrão dominante e dos privilégios que os
acompanham às custas das liberdades, da continuidade das desigualdades e
da extensão dos conflitos e das guerras; uma reestruturação profunda do
capitalismo defendido pelos militantes do “New Deal Verde”, que propõe
regulação global, redistribuição relativa e uma promoção voluntarista
das “economias verdes”; e uma alternativa ambiental e social radical,
que corresponde a uma superação do atual sistema dominante. O Fórum
Social Mundial reúne todos os que rejeitam a opção neoconservadora e a
continuação do neoliberalismo, constituindo um fórum pela mudança
vigorosa da discussão entre os movimentos que fazem parte de uma
perspectiva de avanço de um “New Deal Verde” e os que defendem a
necessidade de alternativas radicais.
A referência ao contexto africano
O
Fórum Social Mundial de Dakar vai enfatizar questões essenciais que
aparecem com mais nitidez com as referências ao contexto africano. A
ênfase estará no lugar da África no mundo e na crise. A África é objeto
privilegiado de análise, ao tempo em que exemplifica a situação global.
Não é pobre; é empobrecida. A África não é marginalizada; é explorada.
Com suas matérias primas e recursos humanos cobiçados pelos países do
Norte e pelas potências emergentes, e com a cumplicidade ativa dos
líderes de alguns estados africanos, a África é indispensável para a
economia global e para o equilíbrio ambiental do planeta.
A
ênfase também estará na descolonização como um processo histórico
incompleto. A crise do neoliberalismo e a crise de hegemonia dos Estados
Unidos são indicativos da possibilidade de uma nova fase de
descolonização, e do enfraquecimento das potências coloniais europeias. A
representação Norte-Sul está mudando, uma situação que não elimina a
realidade geopolítica e as contradições entre o Norte e o Sul.
O
Fórum priorizará as diásporas e as migrações como uma das questões
centrais da globalização. A questão será enfrentada com base na situação
atual dos imigrantes e seus direitos, numa análise de longo termo, com o
comércio de escravos posto sob a perspectiva do crescimento do papel
das diásporas culturais e econômicas.
O Fórum debaterá as
mudanças no sistema internacional, nas instituições multilaterais e nas
negociações internacionais. Em particular, vai focar nas questões que
tornam clara a necessidade de regulação global: equilíbrio ambiental,
migração e diásporas, conflitos e guerras.
A situação dos movimentos sociais e comunitários
A
convergência dos movimentos de que o Fórum Social Mundial se constitui
está comprometida com a resistência ambiental e democrática. Com as
lutas sociais presentes nos combates cívicos pelas liberdades e contra a
discriminação. A resistência é inseparável das práticas emancipatórias
específicas levadas a cabo pelos movimentos.
A direção
estratégica dos movimentos está voltada para a acessibilidade universal
ao direito, pela igualdade de direitos e pelo imperativo democrático. Os
movimentos trazem consigo um movimento histórico de emancipação que são
extensão e renovação de movimentos anteriores. Será em torno da
definição, da implementação e da garantia de direitos que um novo
período de emancipação possível será definido. Essa definição exige que
essas concepções de diferentes gerações de direitos sejam revisitadas:
direitos políticos e civis formalizados pelas revoluções do século
XVIII, reafirmados pela Declaração Universal de Direitos Humanos,
complementadas pelos desafios do totalitarismo dos anos 60; os direitos
dos povos que o movimento de descolonização promoveu, com base no
direito da autodeterminação, o controle dos recursos naturais, o direito
ao desenvolvimento e à democracia; direitos sociais, econômicos e
culturais especificados pela Declaração Universal e estipulados pelo
Protocolo Adicional adotado pelas Nações Unidas na Assembleia Geral em
2000.
Uma nova geração de direitos está em gestação. Direitos que
correspondem à expressão da dimensão global e dos direitos definidos
com vistas a um mundo diferente da globalização dominante. A partir
desse ponto de vista, duas questões serão as mais proeminentes em Dakar:
direitos ambientais para a preservação do planeta e os direitos dos
migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a
organização do mundo. O Fórum Social Mundial de Belém enfatizou os
benefícios para os movimentos de abarcarem a agenda ambiental em todas
as suas dimensões, do clima à destruição dos recursos naturais e da
biodiversidade, e da preservação da água, da terra e das suas matérias
primas. O FSM de Dakar priorizará um novo tratamento da questão da
migração, com a ligação entre migrações e diásporas e a Carta Mundial
dos Migrantes.
O FSM Dakar também será o momento para o debate
sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase
descolonização. É nesse contexto que a relação entre o Norte e o Sul
está mudando. Considerando que a representação Norte/Sul está mudando na
perspectiva da estrutura social, há um Norte no Sul e um Sul no Norte. A
emergência do poder de grandes estados está mudando a economia global e
o equilíbrio de forças geopolíticas, e é reforçado pelo crescimento de
mais de trinta estados que podem ser chamados de economias emergentes.
Para tudo isso, contudo, as formas de dominação continuam a ser cruciais
na ordem global. O conceito de Sul continua a ser altamente relevante. O
Fórum Social Mundial enfatiza uma nova questão: o papel histórico e
estratégico dos movimentos sociais nos países emergentes como um todo em
relação ao seu Estado e o papel futuro desses estados no mundo. Essa
questão, que já marcou os fóruns com o debate sobre o papel jogado pelos
movimentos no Brasil e na Índia assume uma importância particular
estratégica com a mudança geopolítica associada à crise.
O Fórum
Social Mundial é o ponto de encontro para movimentos de vários tipos e
de diferentes partes do mundo. Esses movimentos já começaram a se
encontrar em redes que reúnem diferentes movimentos nacionais. O
processo dos fóruns revela duas mudanças. A primeira delas é as conexões
entre movimentos de acordo com suas regiões, características e
contextos específicos unificam os movimentos da América Latina, América
do Norte e Sul da Ásia (e em particular, a Índia), o sudoeste da Ásia,
Japão, Europa e Rússia. O Fórum Social Mundial de Dakar terá dois
impactos maiores. O ano de 2010 e os preparativos para Dakar foram
marcados pela nova importância conquistada pelos movimentos da região do
Magreb-Machrek.
O vigor dos movimentos sociais africanos será
visível em Dakar, na forma de movimentos de campesinos, sindicatos,
grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes
reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e
contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc. Esses
movimentos são visíveis, com sua convergência diversidade em sub-regiões
da África: no Norte da África e em particular no Magreb, no Oeste e na
África Central, na África do Leste e na do Sul.
No Fórum Social
Mundial de Dakar uma questão fundamental será a do seu alcance político
nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da
expressão política dos movimentos e das extensões dos movimentos em
relação às instituições, ao cenário político e aos governos dos estados.
Com respeito aos movimentos como um todo, a análise avança sobre a
importância da especificidade, via invenção de uma nova cultura
política, da relação entre poder e política. O processo do FSM pôs em
cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade,
diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos
sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em
muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir
superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera
dominante. Além disso, a tradução política dos avanços e das
mobilizações dependem das instituições e das representações: num nível
local, com a possibilidade de influenciar as decisões das autoridades
locais; em nível nacional e internacional, com os governos dos estados,
os regimes políticos e as instituições multilaterais; em nível regional e
global, com alianças geoeconômicas e geoculturais e com a construção de
uma opinião pública global e uma consciência universal.
O processo dos Fóruns Sociais Mundiais
Depois
de o Fórum Social Mundial de Belém ter tomado o ano de 2010 como o ano
da ação global, mais de quarenta eventos demonstraram o vigor do seu
processo. Isso incluiu as atividades dos 10 anos do FSM em Porto Alegre,
o Fórum Social Mundial dos Estados Unidos, o Fórum Social Mundial do
México e o Fórum das Américas, vários fóruns na Ásia, o Fórum Mundial de
Educação na Palestina, mais de oito fóruns do Magreb e Machrek, etc.
Cada evento associado foi iniciativa do comitê local. Esse comitê se
refere na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, que adota uma
metodologia privilegiando as atividades autogestionadas e declara sua
iniciativa no Conselho Internacional do FSM. Essa multiplicação de
eventos abre espaço para projeções relativos à extensão do processo dos
fóruns. Ele assumiu uma nova forma, “um fórum estendido”, que consiste
no uso da Internet para ligar iniciativas locais em diferentes países,
com um Fórum em cada. Assim, enquanto ocorria o Fórum Mundial da
Educação na Palestina, mais de 40 iniciativas estavam em curso em
Ramallah. As iniciativas associadas com “Dakar estendida” inovarão o
processo dos fóruns.
A preparação para o FSM Dakar baseou-se nos
eventos do ano da ação global, 2010, bem como numa série de iniciativas
que asseguraram a convergência de ações e permitiram novos caminhos a
serem explorados em termos de organização e metodologia dos fóruns.
Assim, já se pode usar as caravanas convergindo para Dakar, dos fóruns
de mulheres em Kaolack, das migrações e diásporas, dos encontros para
convergência de ações, dos fóruns associados (Assembleia Mundial dos
Povos, fóruns pela ciência e pela democracia, sindicatos, autoridades
locais e da periferia, parlamentares, teologia e libertação, etc.).
Depois
de Dakar, um novo ciclo no processo dos fóruns irá começar. O
fortalecimento do processo dos fóruns sociais mundiais poderia ocorrer
com a reunião com grandes eventos, como o Rio+20, G8, G20, cúpulas e
outras poderiam acordar com sua perspectiva. Seriam reconhecidos como
eventos associados ao processo do fórum, estabelecendo assim uma
proximidade com os acontecimentos de Seattle, em 1999, que contribuíram
para a criação do FSM.
- Gustave Massiah e Nathalie
Péré-Marzano, representantes da Research and Information Centre for
Development (CRID – France) no Conselho Internacional do Fórum Social
Mundial.
Tradução: Katarina Peixoto