domingo, 1 de abril de 2012

Promotor militar explica tese jurídica que abre brecha na Lei da Anistia

Após uma semana em que os apoiadores do golpe civil de 1964 serem alvos de protestos, o Sul21 publica uma entrevista com o promotor militar Otávio Bravo que obteve reabrir, em fevereiro de 2010, 29 casos de desaparecimentos forçados praticados no Rio de Janeiro e Espírito Santo durante a ditadura.

Vivian Virissimo no SUL21


Tese jurídica abre novo caminho para investigar desaparecimento forçados e reanima debate sobre a validade da Lei da Anistia | Foto: STF


“Eu tenho curiosidade de saber como o STF vai julgar a tese que define desaparecimentos políticos na ditadura brasileira como sequestros. Essa tese o Supremo não avaliou ainda”. A declaração é do promotor militar Otávio Bravo. Equiparando o crime de desaparecimento forçado ao crime de sequestro, o promotor encontrou um novo caminho para investigar estes crimes cometidos durante a ditadura e reanimou o debate sobre a validade da Lei da Anistia.
Nesta entrevista exclusiva concedida ao Sul21, ele explica em detalhes a tese jurídica utilizada para retomada das investigação e faz interessantes avaliações sobre os desafios que a Comissão da Verdade terá para trazer à tona informações relevantes sobre o período de exceção. Sobre a instalação da comissão, Bravo destacou um dos principais entraves para investigar os anos de chumbo: a dificuldade de ter acesso a documentos dentro e fora das Forças Armadas.
O promotor conhece bem as barreiras impostas não só pelos militares para ter acesso a arquivos que demonstrem o que ocorreu nos porões da ditadura. Ele revelou que a seccional da OAB do Rio de Janeiro também está criando empecilhos para encaminhar documentos solicitados.
Mesmo sabendo das inúmeras dificuldades e ainda com sérias dúvidas do potencial da Comissão da Verdade, Bravo disse que apoia a iniciativa. “Qualquer investigação sobre ditadura militar é válida”, lembrou.

Promotor militar Otávio Bravo | Foto: Reprodução(FOTO REMOVIDA A PEDIDO DO PROMOTOR OTAVIO BRAVO, EM 12/08/2015)

Sul21 – Vinte e nove casos de desaparecimentos forçados foram reabertos pela Procuradoria da Justiça Militar. Quero que o senhor comece explicando a tese utilizada para reabrir esses casos.

Otávio Bravo - Foram três fatos determinantes. O primeiro foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o caso Araguaia, a qual determinou que o Brasil tem obrigação genérica de investigar os casos de desaparecimentos forçados, não só os que ocorreram no Araguaia, mas em geral. O segundo foi o fato do Brasil ter ratificado no final de 2010 a “Convenção Internacional contra o Desaparecimento Forçado” da Organização das Nações Unidas (ONU). E a tese jurídica que permitiu a abertura dos processos veio do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), de dois casos de extradição julgados em 2009 e 2011 de pessoas que teriam participado de crimes durante o estado de exceção na Argentina. Existe uma figura jurídica que só permite ao Estado a extradição de uma pessoa  quando o crime não está prescrito no país da extradição, ou seja, o Brasil só pode extraditar pessoas se o crime não está prescrito na lei brasileira. Ao tratar das várias acusações contra essa duas pessoas, o STF até negou a extradição para uma série de atos que eram imputados a estes militares, mas entendeu que os desaparecimentos forçados equivaliam ao crime de sequestro que é considerado no Brasil um crime permanente.

Sul21 – O que é exatamente um crime permanente? Que mudança esse entendimento trouxe para a investigação de desaparecimentos forçados?

Otávio Bravo - É crime permanente aquele crime cujo final não se comprova. Portanto, presume-se que ele ainda está acontecendo até que se tenha certeza que acabou. De modo que o prazo de prescrição destes crimes permanentes é quando o sequestro chega ao final. A minha iniciativa foi apenas transportar essa tese utilizada nas extradições para os casos de desaparecimentos forçados no Brasil que também equivaleriam a sequestro pois não se sabe quando terminaram, não estão prescritos e logo não são cobertos pela Lei da Anistia que vai até 1979. Isso tudo deu embasamento jurídico para iniciar as investigações. Não significa dizer que todos os casos levarão militares ao banco dos réus já que as investigações podem levar a conclusão de que desaparecidos podem ter morrido antes de 1979 e os casos estarão prescritos e anistiados. A ocultação de cadáver também é permanente é só é consideração prescrito quando o cadáver aparece. Aí eu teria uma opinião para remeter para o Ministério Público Federal (MPF), a Procuradoria da República, porque o crime de ocultação de cadáver não é de competência da Justiça Militar, é da Justiça Federal. A base jurídica, em resumo, é essa.

Corte Interamericana de Direitos Humanos recomenda que casos de desaparecimentos forçados não sejam julgados pela Justiça Militar| Foto: Reprodução
Sul21 – Por que estes crimes permanentes são de competência da Justiça Militar?
Otávio Bravo - Esses casos particulares são de competência da Justiça Militar porque envolvem sequestros ocorridos dentro de unidades militares, pessoas desapareceram dentro de unidades militares com militares exercendo função. Isso faz, pela legislação brasileira, que seja competência da Justiça Militar. É verdade que em determinado momento eu pretendo abrir mão dessa investigação com base na recomendação expressa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de que casos de desaparecimentos forçados não devem ser julgados pela Justiça Militar.

Sul21 – Qual é a alegação da Corte?

Otávio Bravo - Seria um contra-senso usar o argumento de uma decisão da corte e no final levar um caso desses para a Justiça militar. Embora eu seja da Justiça militar, eu sou um promotor civil. Eu entendo a posição da corte, eu milito na área dos direitos humanos, eu entendo, mas eu acho até um pouco injusta essa recomendação da corte porque a Justiça militar que nós temos no Brasil faz parte do Judiciário e ela não tem uma série de vícios que a Justiça militar de outros países tem. O fato é que a corte determinou isso: que casos de desaparecimentos forçados praticado por agentes militares não sejam julgados pela justiça militar. Então eu devo encaminhar para o MPF.

Sul21 – Essa tese de desaparecimento forçado por agentes públicos foi utilizada em outros países que tiveram ditaduras militares como a Argentina, Uruguai e Chile?

Otávio Bravo - Na verdade, nesses países as teses foram mais amplas, decretaram na Argentina, por exemplo, uma abrangência muito maior, são os chamados crimes contra humanidade, crimes de genocídios que são crimes imprescritíveis por causa de convenções internacionais. No Brasil, o STF não aceitou essa tese e declarou válida a Lei da Anistia. O que se fez na Argentina, Uruguai e Chile foi muito mais amplo do que se fez no Brasil. No Brasil, se está discutindo ainda, na primeira manifestação o Supremo declarou que a Lei da Anistia continua de pé. Isso que está se falando de sequestro é uma tese única para investigar o crime de sequestro. Mas, por exemplo, se chegar a conclusão que houve um homicídio ou o crime de tortura não se pode fazer nada enquanto a decisão do Supremo não mudar. O Supremo já julgou, mas agora vai reavaliar um embargo de declaração. Eu sinceramente não acredito que o Supremo mude de posição, para mim vai continuar deixando a Lei da Anistia válida. Mas eu tenho curiosidade de saber como o supremo vai lidar com essa tese de sequestro, já que essa tese o Supremo não avaliou ainda.

Sul21 – Quem foram os relatores do STF que abriram essa brecha para que pelo menos os crimes de sequestro fossem investigados? E que dia foram reabertos os casos?

Otávio Bravo - Foram reabertos em fevereiro de 2010. A extradição de 2009 foi relatada pelo ministro Ricardo Lewandowki e a outra foi relatada pela ministra Carmem Lúcia. As duas extradições foram pedidas pela Argentina. Eu tenho curiosidades de como o STF vai dizer que isso não se aplica a desaparecimentos forçados no Brasil.

Rubens Paiva teve o mandato de deputado federal cassado pelos ditadores | Foto: Reprodução

Sul21 – O senhor está investigando o caso do ex-deputado Rubens Paiva que desapareceu em 1971 nas dependências do Doi-Codi no Rio. Como está sendo essa apuração?

Otávio Bravo - Na apuração do caso do ex-deputado Rubens Paiva já cheguei a algumas coisas interessantes: a filha dele — que nunca tinha sido ouvida e que tinha quinze anos na época do desaparecimento — prestou depoimento. A verdade é que não havia investigação até agora do caso, houve um inquérito que acabou arquivado. A copia deste inquérito está desaparecida, uma coisa meio estranha. Está em algum lugar incerto.

Sul21 – Outro caso emblemático dos anos de exceção é o caso do Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, que teria sido espancado e arrastado por um carro com a boca no cano de escape. O senhor poderia contar como está sendo a investigação?

Otávio Bravo - Ainda não iniciei esta investigação. 29 casos foram abertos mas apenas 3 investigações estão em curso.

Sul21 – Qual sua opinião sobre as investigações que serão realizadas pela Comissão da Verdade? Que impacto os relatórios produzidos pela comissão poderão ter?

Otávio Bravo - Eu não sei. Depende muito da extensão que a Comissão da Verdade possa ter. Eu ainda não tenho nada que possa me assegurar qual será o impacto político da comissão. Necessariamente acho que uma comissao que tenha amplos poderes para investigar o que passou, acesso a documentos poderá ser ótima. Mas não sei se será mais de um palco político do que propriamente um espaço de investigação. Mas qualquer iniciativa para apurar o que aconteceu naquele período eu acho importante. Agora não tenho realmente como fazer juízo de valor porque ainda não está funcionando.

Sul21 – Mas o senhor conhece bem a dificuldade de acesso a dados sobre este período da história brasileira.

Otávio Bravo - Eu tentei várias vezes ter acesso a dados nas Forças Armadas mas foram negados, dizem que todos foram destruídos. Criam situações até meio ridículas, situações burocráticas que não têm sentido. Por exemplo, uma vez encaminhei uma requisição e eles alegaram que teria que ser encaminhada pelo procurador geral. Criam dificuldades, falta vontade de contribuir. Ao mesmo tempo há umas surpresas desagradáveis, a seccional da OAB no Rio de Janeiro, por exemplo, é uma vergonha. Diversas vezes mandei ofício pedindo informações e nunca me responderam. Eles tem uma campanha contra tortura e pelos desaparecidos políticos que, para mim, não tem valor nenhum. Se existe um órgão que está investigando o assunto e eles não encaminham informações é bastante estranho. Mas também tenho que ressaltar o apoio que tive da Secretaria de Direitos Humanos que não tenho do que me queixar.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil

  Otaviano Helene  no CORREIO DA CIDADANIA

Uma das características do ensino superior brasileiro nas últimas várias décadas é a constante redução da participação das instituições públicas na sua oferta: em 1960, cerca de 60% das matrículas eram em instituições públicas; atualmente, elas são da ordem de 25% e com uma tendência a continuar aumentando (veja gráfico).

Nas décadas de 1960 e 1970, período marcado pelo regime militar, a participação do setor privado cresceu de 40% até pouco mais do que 60% das matrículas. Após uma década sem aumento dessa participação, a privatização voltou a crescer após 1990, período marcado pela expansão do neoliberalismo, continuando a aumentar ao longo da década seguinte.

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O que aconteceu na década de 1980, quando a taxa de privatização permaneceu praticamente estável, ao contrário de ter sido um sinal de que o setor público passou a ter uma postura mais positiva, ilustra um dos muitos problemas que a privatização apresenta. A década de 1980 foi marcada por uma profunda recessão econômica e, consequentemente, redução de renda e aumento do desemprego. Como consequência, aquela crise econômica afetou fortemente as possibilidades que as pessoas tinham de arcar com as mensalidades escolares, afastando os estudantes, como, obviamente, seria esperado. Esse fato ilustra bem um dos graves problemas da privatização da educação: a educação, quando privatizada, ao invés de ser um instrumento que possa ajudar a suportar uma crise econômica (fixando os jovens por mais tempo no setor educacional e reduzindo, assim, a pressão sobre os empregos) e a criar as condições necessárias para superá-la (preparando a força de trabalho do país), passa a ser um fator a intensificação da própria crise.

Subsídios

Se “conseguimos” atingir a taxa de privatização de 75%, é porque, ao longo do tempo, todos os níveis governamentais contribuíram para isso, por meio de incentivos financeiros diretos e indiretos, por meio de legislações e por deixarem espaço livre para a atuação do setor privado.

No campo financeiro, tanto a União como os estados e municípios têm contribuído, ao longo dos últimos 50 anos, cada um de sua forma, para o aumento da privatização. Essas subvenções ocorrem na forma de isenções de taxas, contribuições e impostos (nacionais, estaduais e municipais), abatimento de despesas com educação privada no imposto de renda de pessoa física, repasses diretos de recursos públicos para entidades privadas, pagamento das mensalidades dos alunos ou financiamento delas pelo setor público, convênios com ONGs ligadas a instituições privadas, entre diversas outras.

Como já estamos acostumados com todas essas práticas, o que faz com que muitas pessoas as achem positivas, vale a pena esmiuçar uma delas, talvez até a mais aceita como sendo adequada, justa e necessária: o abatimento no imposto de renda de pessoas físicas das despesas educacionais. Esse abatimento, que encontra enorme apoio nas classes mais privilegiadas e mesmo reclamações por considerarem-na pequena, é, na prática, uma distorção do que se esperaria de um sistema tributário ou de um subsídio a uma atividade essencial.

Como o abatimento das despesas educacionais ocorre antes do cálculo do imposto devido, quanto maior for a renda de uma pessoa, maior será o abatimento do imposto. Vejamos. No caso de pessoas com altas rendas, os governos subsidiam em 27,5% das despesas com educação privada passíveis de serem abatidas. Já no caso de uma pessoa com renda modesta, eventuais despesas educacionais podem ser subsidiadas em proporções bem menores do que aqueles 27,5 % ou mesmo não terem subsídio algum.

Uma espécie de Robin Hood às avessas. Embora possa parecer que é o contribuinte que está sendo beneficiado, quem de fato recebe aquela subvenção é a instituição de ensino. Por exemplo, alguém de alta renda que tenha pago R$ 1.000 para uma instituição de ensino, receberá do governo, na forma de abatimento de imposto, R$ 275,00; ou seja, gastou, de fato, R$ 725,00, enquanto a instituição recebeu, também de fato, os R$ 1000 pagos. Alguém de baixa renda que tenha gasto os mesmos R$ 1.000 não terá redução alguma do imposto devido.

Em última instância, o abatimento no imposto de renda é um subsídio indireto às instituições privadas de educação. Embora este seja apenas um exemplo, mostra como as políticas de transferência de recursos ao setor privado podem ser distorcidas. Uma redução dos impostos por causa de despesas educacionais só seria justificável (embora inadequado) se a redução fosse inversamente proporcional à renda, subsidiando mais quem ganha menos, não da forma que é hoje. Evidentemente, não há nenhuma dificuldade técnica para se fazer isso: se subsidiamos mais quem menos precisa e menos quem mais precisa, é porque é para ser assim mesmo.

Legislação

Além das ações financeiras e econômicas em favor da privatização da educação, há muitas ações no campo legal que vão no mesmo sentido. Novamente, ao invés de detalhar as muitas formas com que isso ocorre, vamos ilustrar algumas delas. Uma universidade é um tipo de instituição cujas atribuições incluem, segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), desenvolver a pesquisa científica e tecnológica, conferir diplomas com validade nacional, criar e extinguir cursos e definir seus currículos, desenvolver atividades de extensão universitária, entre outras. Para isso, seria esperado que tal tipo de instituição tivesse, em seu quadro, pessoas altamente qualificadas para aquelas atividades, o que no mundo acadêmico significa doutores.

Entretanto, ainda que possa parecer absurdo, a LDB não exige doutores no corpo docente de uma universidade: a sutil redação daquela lei exige que pelo menos um terço do seu corpo docente tenha “titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”. A partícula “ou” revela a real intenção do legislador: uma universidade, no Brasil, não precisa de doutores! Essa redação é desrespeitosa e mesmo um escárnio, na medida em que a palavra doutorado está apenas enfeitando o texto, sem nenhuma consequência prática; se a frase acabasse em “mestrado”, estaria dizendo exatamente a mesma coisa.

Além disso, exigir uma terça parte dos docentes com determinada titulação não significa que eles venham a exercer a terça parte das atividades desenvolvidas pelas instituições, pois pode se atribuir a essa terça parte uma carga horária pequena, com apenas algumas poucas horas semanais de trabalho.

E tem mais: para desenvolver aquelas atividades, os docentes universitários deveriam contar com as necessárias condições de trabalho, o que significaria, na prática acadêmica, contratos em tempo integral e, preferencialmente, com dedicação exclusiva à instituição. Mas a mesma LDB exige que uma universidade tenha pelo menos “um terço do corpo docente em regime de tempo integral”. Ora, se a essa terça parte do corpo docente for atribuída uma carga didática alta e/ou muitas tarefas administrativas, a lei estará sendo cumprida, sem, de fato, garantir as condições necessárias para a pesquisa e as atividades de extensão universitária previstas pela LDB.

Evidentemente, essa legislação, que não está respondendo a nenhuma necessidade real das instituições universitárias públicas, favorece, e muito, as instituições privadas.

A ausência do setor público abre espaço ao setor privado

Uma terceira forma de favorecimento do setor privado ocorre por meio da restrição de vagas oferecidas pelo setor público, o que abre o necessário espaço para o crescimento das instituições privadas. Uma evidência dessa prática é que a falta de vagas públicas nada tem a ver com as dificuldades financeiras do setor público, diferentemente do que é dito com frequência. Tanto é assim que a privatização é maior exatamente nos estados com maiores possibilidades econômicas e orçamentárias e que maiores contribuições dão ao governo federal.

São Paulo é o caso exemplar: exatamente nesse estado em que a ausência do setor público é mais marcante, como mostra a tabela. A porcentagem de matrículas em instituições privadas em São Paulo, 87%, é bem maior do que nos demais estados (69%). Mesmo quando comparada com a população total ou com o número de concluintes do ensino médio, a privatização paulista é maior do que nos outros estados por um fator dois, como mostram os dados da tabela.

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Essa maior privatização em São Paulo é totalmente compatível com a hipótese de que a ausência do setor público é estratégica, não fruto de uma impossibilidade econômica ou financeira.

Conseqüências

As políticas de privatização, quando associadas com a distribuição dos cursos oferecidos pelas instituições privadas pelas diferentes áreas do conhecimento, fazem com que alguns indicadores da educação superior no Brasil estejam em completo desacordo com o que se observa em outros países com possibilidades econômicas equivalentes ou mais modestas que as nossas. Essa característica nos coloca em uma situação bastante frágil.

Evidentemente, não se está defendendo que haja uma competição entre os países, coisa que, ao contrário, devemos combater. Entretanto, uma força de trabalho mal preparada, distribuída de forma inadequada pelas diferentes áreas profissionais, e quantitativamente insuficiente, fragiliza o país nos embates internacionais e compromete nossa soberania. Consequentemente, não conseguimos sequer criar um ambiente que permita lutar por uma relação mais saudável entre as nações e que priorize as cooperações em lugar das competições.



Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

terça-feira, 27 de março de 2012

Celso Furtado: Economia para a liberdade


No momento em que Brasil debate sua (des)industrialização, vale assistir à cinebiografia do grande pensador que sonhou além dos números



Por Arlindenor Pedro no OUTRAS PALAVRAS|Imagem: Diego Rivera,Pintura de um afresco 

Gosto muito do gênero cinebiografia, a que muitos cineastas brasileiros e estrangeiros vêm-se dedicando nos últimos tempos. Registram a vida e produção de escritores, políticos, militares, artistas – gente que de alguma forma desenvolveu atividades que despertam interesse de muitos.
São produções mais apropriadas para DVDs: devem ser assistidas devagar, com atenção, em ambiente próprio para rever trechos e refletir sobre eles. Neste aspecto, diferem dos filmes do cinema de ficção – que requerem o calor emotivo das grandes casas de exibição.
Assisti recentemente a obra cinebiográfica que o diretor José Mariano fez sobre o economista Celso Furtado. Teve o nome de O Longo Amanhecer, título de uma de suas obras – um livro de ensaios sobre a formação do Brasil, publicado em 1999.
Relata vida e pensamento desse grande brasileiro, paraibano de Pombal e um dos grandes intelectuais do século XX, como diria o professor Francisco de Oliveira, seu amigo e colaborador de longa data. “Celso Furtado está no panteão dos demiurgos do pensamento nacional, dos inventores do que a gente pensa hoje sobre o Brasil”, escreveu ele. Já a professora Maria da Conceição Tavares, consideram Furtado “o único grande pensador brasileiro do século XX”.
Uma entrevista com Celso, realizada quatro meses antes de sua morte (em 2004), serve como roteiro e fio condutor do documentário. Também comparecem, em depoimento, pensadores que conviveram com ele. Levantam problemas que subsistem depois de longas décadas e exigem reflexão mais acurada.
Sugiro, ao leitor que ainda não viu o filme, começar pelos extras, onde essas questões são apresentadas de forma a compor um pano de fundo, um cenário onde as ideias e ações de Celso Furtado se desenvolveram. Está organizado na seguinte ordem: 1.Sobre Celso Furtado; 2. A Revolução de 1930; 3. O pós-guerra; 4. Segundo governo Getulio Vargas; 5. O governo JK; 6. A Sudene; 7. O governo João Goulart; 8. A revolução de 1964 e 9. Sobre a Ciência Econômica. Intelectuais e políticos como Francisco de Oliveira, Helio Jaguaribe, Maria Ieda Linhares, Alzira Abreu, Bresser Pereira, José Serra, Leite Lopes, Pedro Malan, Otavio Rodrigues e Ricardo Bielschowsky opinam sobre tais temas, abordando-os de forma crítica e contextualizando-os em seu quadro histórico e político.
Além das intervenções desse conjunto de pensadores sobre momentos decisivos da vida nacional, destaco um debate sobre o caráter da Economia – se é ciência, ou não; e sobre a posição de Celso Furtado a esse respeito.
Embora possa parecer bizantina, a discussão reveste-se de extrema importância, devido à influência cada vez mais vasta da Economia sobre nossas vidas. Ao contrário de muitos pensadores da atualidade, Celso Furtado a encarava como uma ciência – social e histórica. Ele a via, portanto, com olhar ideológico muito definido, dentro de um determinado contexto histórico. Servia-se dela para intervir na realidade social. Sua maior obra, Formação Econômica do Brasil, é considerada um clássico nas ciências econômicas. Publicada em janeiro de 1959, analisa a economia brasileira num contexto histórico em movimento, onde não se chega nunca a um final. E é ele mesmo quem o diz, em sua entrevista: “nunca procurei chegar a um final no meu livro. Trata-se de uma obra inacabada, própria da economia, própria da história”.
Nas ultimas décadas, em um mundo totalmente globalizado e interdependente, a Economia desenvolveu estruturas tão poderosas de intervenção na vida social que teria subjugado as demais ciências, moldando o mundo às suas concepções. Perdeu, então, seu caráter histórico transformador, realizando-se como instrumento perpetuador e maximizador do mundo articulado pela burguesia liberal contemporânea.
Nesse quadro, o homem contemporâneo está totalmente dominado pelos preceitos econômicos. Não pode viver sem levar em conta os caminhos traçados pelos economistas. Uma oscilação em bolsa de valores, do outro lado do mundo, pode alterar completamente a sua vida. O mercado rege sua postura. Desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, está submetido aos seus desígnios, abrindo mão de uma existência criativa em troca de um vida-não-vivida, de um mundo artificial.
Mais do que isso: mesmo os seus sonhos serão moldados pelas estruturas econômicas. Todo o processo de vida social e individual é submetido à banalidade terrível do dinheiro e do seu desenvolvimento tautológico. Em sua superfície, está a famosa economia de mercado. Exige profissionais altamente qualificados para decifrar e operar suas estruturas, num processo técnico anti-histórico, repetitivo que não busca chegar a lugar algum. Tais profissionais, súditos de uma máquina infernal, não teriam, pois, qualquer sentimento ou paixão, operando apenas para a reprodução do capital na sua escala mais transcendental: de forma mecânica e definida globalmente.
A respeito de tal fenômeno, Francisco de Oliveira, em seu depoimento, diz: “Os modernos cientistas sociais, entre os quais se incluem os economistas, não têm paixão por causa nenhuma. Eles são inteiramente de-solidários com os destinos nacionais”. (…) Os teóricos dos anos do início da modernidade eram todos pensadores apaixonados. Estavam de um certo lado da história. Celso, a esse respeito, é um dos mais emblemáticos. Ele está decididamente no lado de alguma causa e não olha a história com a indiferença de um cientista normal. (…) Tensão entre teoria e história, é o que sua obra tem. Está presente em todos os outros clássicos, mas nele é permanente: a história é teoria e a teoria é a história. É diferente de um economista de hoje, que pega as variantes, modela e acha que dali sai algum resultado. Não tem história. Não tem especificidade. (…) Se você pegar a formulação de qualquer economista que está ai formulando política para o governo brasileiro hoje é igual a que se encontrará em qualquer país. Sumiu a história”.
No desenrolar do documentário, além da preciosa entrevista de um Celso Furtado já combalido pela doença que o irá vitimar mais adiante (mas que, a despeito disso, ainda mostra-se lúcido e capaz de desenvolver com maestria os fundamentos de sua teoria), destaca-se também a economista Maria da Conceição Tavares. Com a emoção que lhe é peculiar – ainda mais, tratando-se de um mestre por quem ela nutria profundo respeito – contagia e nos convida a mergulhar nos fundamentos teóricos de sua vastíssima obra. Além dela e de Chico de Oliveira, cientistas como João Manuel Cardoso de Mello, Antonio Barros de Castro e Oswaldo Sunkel opinam, num roteiro desenvolvido por Ricardo Bielschowsky, que nos leva a conhecer a profundidade teórica de um Celso Furtado entusiasta do desenvolvimento brasileiro.
João Manuel Cardoso de Melo sustenta que Celso Furtado sempre foi um reformista – isto é, acreditava que, por meio de reformas profundas nas estruturas brasileiras, seria possível vencer as condições que impediam o país de superar o subdesenvolvimento. Celso definia-se como um cientista. Pensava que seu forte era conseguir captar o essencial da realidade através da análise, teorizando-a para que fosse transformada, reformada.
Celso Furtado foi influenciado pela herança keynesiana, segundo a qual o estado era um ator decisivo na garantia do bem estar social. Após passar a guerra na Europa e presenciar a reconstrução do continente ao fim do conflito, ele retorna ao Brasil com grandes ideias de mudança da sociedade, tendo o estado como força motriz, e o planejamento como meio de ação. Agrega-se, então, à equipe da Cepal, dirigida por Raúl Prebisch. Este economista argentino, conhecido articulador do pensamento das economias periféricas, havia contextualizado a teoria da relação entre centro e periferia. Prebisch dizia: “o mundo está composto por países centrais, que (…) produzem manufaturas e controlam as inovações tecnológicas, que está consubstanciada com a manufatura; e os países periféricos, que exportam matérias-primas e consomem os bens manufaturados desses países”. Propunha superar essa dicotomia centro-periferia. Orientado por tal objetivo, criou o pensamento cepalino, que teve em Celso um dos mais brilhantes formuladores.
Furtado defendia a industrialização do Brasil, como forma de conter o fluxo de riquezas que se esvaíam para o exterior, mantendo-nos sempre na posição de subalternos. Conseguiu influenciar o segundo governo de Vargas e, mais adiante, os governos JK e João Goulart. Seu entusiasmo, e a clareza com que defendia suas ideias, contagiaram esses presidentes, que se esforçavam por tê-lo como elemento auxiliar em seus governos.
A ideias de Celso e de muitos de seus companheiros e seguidores foram esmagadas pela grande tragédia do golpe militar de 1964. O documentário dedica um capítulo à parte para esse episódio da vida nacional. É, ao lado da Revolução de 1930, um dos mais importantes da nossa história recente. Em 1930, libertaram-se as forças internas contidas pelo sistema agrário anacrônico, lançando-se o país na modernidade; em 1964, estas mesmas forças antes libertadas foram contidas e esmagadas, por acalentarem a utopia de conduzir o país a um processo desenvolvimentista independente, permitindo-lhe emergir, na terceira revolução industrial, em pé de igualdade com o chamado “primeiro mundo”.
Acredito que a tragédia de um assassinato não se dá em eliminar uma vida e o que ela foi, mas o que ela poderia ser. A morte prematura do governo João Goulart foi a ruptura com um futuro que poderia ser, mas não foi. Restou um vazio que até hoje não pode ser preenchido, a despeito das afirmações megalomaníacas dos últimos governos, que se apresentam como se a história brasileira estivesse começando agora. O prejuízo causado pelo golpe de 1964, não foi, até hoje, devidamente dimensionado. Não só pelas vidas ceifadas, mas por ter eliminado no nascedouro as utopias de um Brasil independente, solidário e criativo.
As ideias de Celso Furtado se perderam. Mesmo no processo de redemocratização, nos governos subsequentes, sua voz não foi mais levada em consideração. Por isso, o documentário pareceu-me denso mas, ao mesmo tempo, triste. Tanto os depoimentos apaixonados, a firmeza emotiva de Maria da Conceição Tavares, quanto as intervenções precisas de Francisco de Oliveira, lembram essa oportunidade perdida. O olhar do professor, circundado pela atmosfera da fotografia de Guy Gonçalves e música incidental de Aluisio Didier, ao abrir o filme, diz tudo. Uma bela obra para assistir e refletir!


Arlindenor Pedro é professor de história e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.
Contato: arlindenor@newageconsultores.com.br

Stratfor dentro do Palácio: que é isso, Dilma?


 
Por Natalia Viana, Willian Vieira, Luiza Bodenmüller e Jessica Mota, da Pública

Atual diretora de análise da Stratfor, a americana Reva Bhalla não precisou gastar um tostão, grampear telefones ou pagar propinas para conseguir fácil acesso ao alto escalão da inteligência brasileira.
Em 6 de janeiro de 2011, segundo documentos internos da empresa analisados pela Agência Pública e pela Carta Capital, Bhalla foi recebida com entusiasmo pelo gabinete do ministro-chefe do GSI, o general José Elito Siqueira, menos de um mês depois de chegar ao País para sua missão em nome da Stratfor.
Mais do que ser bem recebida, Bhalla obteve informações confidenciais de funcionários do GSI que são negadas até mesmo aos brasileiros.
No seu relato, ela diz ter sido levada à chamada “sala de situação”, local onde militares e agentes de inteligência se reunem com a presidência em caso de crises de segurança nacional. “Eu tive a impressão de que o Brasil não tem que lidar com esse tipo de questão com muita freqüência. Eles disseram que durante o governo Lula eles se reuniram 64 vezes. Havia mapas muito legais por todo o lugar. Eles me deram de presente um lindo mapa do mundo com Brasilia ao centro (muito ambicioso? Ahaha)”, escreve.
O contato, segundo ela, teria sido armado por um “amigo diplomata” que estaria trabalhando no escritório da própria presidenta, diz ela, sem identificar o nome. “Todos, inclusive o General Elito Sequeiro (sic) -  o chefe do GSI, o qual eu encontrei mais tarde no seu escritório, conhecem e lêem os relatórios da Stratfor regularmente. Eles estavam, literalmente, me dizendo sobre as notícias da Stratfor que haviam lido nesta manhã, e que quase todos ali eram membros”.
Animada com o “tour completo” que recebeu do palácio presidencial, Bhalla chegou à sala da presidenta Dilma Rousseff – mas ela estava numa reunião. “Eu queria dizer ‘olá’ em nome da Stratfor”.
A analista relata ter conversado longamente com o secretario-adjunto José Antônio Macedo Soares, cujo nome chegou a ser cotado pelo Palácio do Planalto para assumir a direção da Abin. Segundo seu relato, ele lhe explicou tranquilamente que o Brasil se esforça para não atrair atenção para si mesmo como palco de ações ligadas ao terrorismo. “Como Macedo Soares me disse, nós capturamos vários ‘terroristas’ em São Paulo – pessoas da Al Qaeda, Hezbollah, e até pessoas ligadas aos ataques de 11 de setembro. Mas nós não queremos nos vangloriar por isso e  não queremos atenção. Isso não serve aos nossos interesses e não queremos que os EUA nos empurre para esse assunto’”, escreve.
A informação, prontamente repassada para a rede de analistas da Stratfor, confirma uma revelação feita pelo WikiLeaks em 2010, nos primeiros documentos diplomáticos sobre o Brasil publicados pela organização. Os despachos traziam o então embaixador dos Estados Unidos em Brasília, Clifford Sobel, a dizer, ainda em 2008, que a Polícia Federal “frequentemente prende pessoas ligadas ao terrorismo, mas os acusa de uma variedade de crimes não relacionados a terrorismo para evitar chamar a atenção da imprensa e dos altos escalões do governo”. O mesmo telegrama de Sobel cita dois exemplos. Em 2007, a PF teria capturado um potencial facilitador terrorista sunita que operava primordialmente em Santa Catarina sob acusação de entrar no País sem declarar fundos – e estaria trabalhando pela sua deportação. A operação Byblos, que desmantelou uma quadrilha de falsiftcação de documentos brasileiros no Rio de Janeiro para os libaneses também é citada como exemplo de operação de contra-terrorismo.
Histórias sobre prisões de suspeitos de terrorismo no Brasil haviam pipocado antes do vazamento dos documentos diplomáticos. Em maio de 2009, a PF prendeu um libanês acusado de propagar pela internet material racista. À época, o colunista da Folha Jânio de Freitas escreveu que, para preservar o sigilo, a PF atribuiu a prisão, inclusive internamente, a uma investigação sobre células de neonazistas, enquanto o libanês seria na verdade suspeito de ligação com a Al Qaeda. Quase um mês depois, o Gabinete da Segurança Institucional da Presidência criou um grupo de prevenção e combate ao terrorismo, com a finalidade oficial de exercer o “acompanhamento de assuntos pertinentes ao terrorismo internacional e de ações” para “a sua prevenção e neutralização”.
Foi exatamente no GSI e com funcionários do órgão que Bhalla teve reuniões pessoais que renderam relatórios de inteligência privada, para alimentar os boletins a clientes no mundo todo.
Naquele encontro, ela teria perguntado ainda sobre a capacidade do GSI em vigiar e capturar esses ‘terroristas’. “A resposta não me pareceu tão confiante assim. Ele disse basicamente que isso é muito difícil. São Paulo tem uma população estrangeira muito grande. Fronteiras são difíceis de controlar: essa é a atitude brasileira em relação a isso”. Segundo a analista, eles teriam reconhecido que há alvos de terrorismo no Brasil. E teriam citado uma misteriosa “casa noturna israelense” em São Paulo como um exemplo.
“Eu levantei a questão do terrorismo, já que Macedo Soares é basicamente o único brasileiro que foi citado pelo Wikileaks. Eu perguntei a ele se isso causou algum tipo de problema e ele riu e disse “só inveja”! Aparentemente, vários oficiais brasileiros ficaram seriamente com ciúmes de que ele tenha ficado com toda a fama, haha”, relata Bhalla no seu email. Macedo Soares foi interlocutor do ex-embaixador Sobel nos primeiros documentos diplomáticos vazados.

Amazônia e crack
 
A conversa não parou por aí. Bhalla chegou a ser convidada a visitar um posto militar na Amazônia na sua próxima visita, “coisa que eu definitivamente vou fazer”. Ouviu do alto escalão do GSI que “a corrupção nesses postos é mais concentrada na polícia do que nos militares”.
“Um deles levantou um ponto interessante, dizendo que uma coisa que o Brasil tem feito muito bem é controlar a qualidade dos precursores químicos que entram no país. Então, a cocaína produzida na Bolívia, por exemplo, não é ‘classe A’ que os compradores de NY querem. Ao invés disso, são de baixa qualidade, crack, que é vendido em São Paulo. Então essa é uma consequência não-intencional para eles: drogas mais baratas e de baixo valor permeiam o mercado brasileiro”, descreveu.
No fim da mensagem, a analista diz ter desgostado da capital federal, no mesmo tom informal que marca os demais emails da Stratfor publicados pelo WikiLeaks. E envia uma foto sua diante da catedral de Brasília.
A correspondência com Macedo Soares não terminou aí, como mostra a esfuziante mensagem sobre o mapa com o Brasil no centro, reenviado a Bhalla dois meses depois da visita.
A reportagem procurou o GSI através da sua assessoria de imprensa, mas recebeu como resposta que o ministro José Antônio de Macedo Soares está de férias no exterior e se disponibilizaria a esclarecer o assunto depois do dia 3 de março. A assessoria confirmou, no entanto, que o ministro-chefe José Elito Siqueira “recebeu, em 06 Jan 11, a Sra Reva Bhalla para cumprimento protocolar durante a sua visita ao GSI”.
Oficialmente, o governo sempre negou a existência de atividades terroristas no Brasil – e continua negando, mesmo depois das revelações do Wikileaks. Já os militares brasileiros parecem ficar bem mas à vontade quando falam do assunto com americanos – sejam eles diplomatas, militares, ou arapongas como os da Stratfor.
*Reportagem feita em parceria com a revista Carta Capital

As mulheres e o narcotráfico: entre uma guerra delirante e a impunidade

Há centenas de milhares de mulheres - sem nome, sem idade, sem rosto - que por circunstâncias da vida ou por decisão própria somam-se às filas do narcotráfico


Gabriela Oliveros e Marcela Salas
Desinformémonos

Cidade do México. Carregam cartuchos, o mesmo que carregar bebês. Disparam, e amam também. Transportam drogas, às vezes em suas roupas, às vezes em seus corpos, às vezes em seus filhos. Lidam com sangue, com ossos. Explodem granadas, e algumas vezes são explodidas. São as mulheres do narcotráfico, as quais, no vai e vem da compra e venda de substâncias ilícitas, oscilam entre os limites da vítima ou do agressor. Seu papel se manteve velado durante décadas, mas, diante do crescimento do clima de violência que flagela o país, adquirem cada vez mais visibilidade. 
As mulheres também estão desaparecidas, raptadas com fins de exploração sexual pelas mesmas redes, torturadas e assassinadas. E, por outro lado e no mesmo âmbito, estão as mulheres jornalistas que mostram com valentia os bastidores das máfias, as defensoras de direitos humanos, as mulheres que combatem. Todo um mundo feminino que denuncia, se rebela e se defende.

No mundo do narco 
Digna rainha das rainhas 
diante da lei, não se inclina 
caminha com pés de gato 
domina a corda solta
entre a mais bela rosa 
mais perigoso o espinho 

Sandra Ávila Beltrán - Foto: Desinformémonos
Esse é um trecho da música “A rainha das rainhas”, que o grupo Os Tigres do Norte dedicou a Sandra Ávila Beltrán, mulher ligada ao narcotráfico cujo nome se soma ao de outras – todas elas com a característica em comum de serem mulheres bonitas – que estão relacionadas com o mundo do contrabando de drogas como Zayda Peña, Liliana Lozano, Alicia Machado, Dolly Cifuentes, Laura Zúñiga. 
No entanto, além da beleza e da fama, há centenas de milhares de mulheres – sem nome, sem idade, sem rosto – que por circunstâncias da vida ou por decisão própria unem-se às filas do narcotráfico. 
Recentemente a Central de Organizações Camponesas e Populares informou que existem cerca de 200 mil mulheres mexicanas que trabalham de forma direta ou indireta para quadrilhas de narcotráfico, e que sete em cada dez mulheres no norte do país estão ligadas ou são beneficiadas pelo dinheiro do narcotráfico. 
Dados da DEA mostram que há 10 mil mulheres encarceradas por crimes relacionados à fabricação, venda e distribuição de drogas, e que a porcentagem de detidas por esta causa aumentou 400% desde 2007. 
A participação feminina no negócio das drogas não é inédita, mas os papeis que ocupam dentro das organizações criminosas está mudando. Liliana Carbajal Larios, especialista em mulheres e segurança nacional, destaca os três principais papeis desempenhados atualmente nas fileiras do narcotráfico: articulação e mediação, administração e distribuição de recursos e agentes de reestruturação e coesão no núcleo familiar, quando morre o chefe da família. 
Elas, no entanto, têm o custo de muitas outras tarefas. Entre elas, Carbajal Larios destaca “as mulheres troféu, que desempenham o papel de ‘acompanhantes’ dos narcotraficantes, as ‘burreras’ ou ‘mulas’ que transportam drogas de uma fronteira para outra, carregando bebês mortos que também estão carregados com drogas, ou fazendo-se enxertos de cocaína e outras substâncias no busto; as ‘buchonas’, que são mulheres que estão em pontos estratégicos e informam os grupos de narcotraficantes quando policiais ou militares estão para prendê-los, e que não podem ser julgadas devido à impossibilidade de comprovar sua participação no negócio”. 
As mulheres também estão consumidoras, cuja atuação é indireta, e as mães, irmãs, filhas e esposas de narcotraficantes, que não participam ativamente, mas tampouco podem sair dessa situação – apesar de viverem na mais pródiga opulência – são focos de sequestros e ajustes de contas. 
Outras mulheres desempenham papeis que antes estavam destinados apenas aos homens, como as varejistas, diretamente relacionadas com a venda de substâncias ilegais em pequena escala, ou as mulheres mercenárias, que “se preparam para assassinar a sangue frio, veem como decapitar e logo reproduzem, o que tem ocasionado também que aumentem os assassinatos sangrentos de mulheres cometidos por mulheres”, pontua Liliana Carbajal. 
Em 2011, por exemplo, “Monterreu começou o ano com a notícia da “ruiva da ponte Gonzalitos’, uma mulher que apareceu enforcada em 31 de dezembro na zona de Linhares”, explica San Juana Martínez, jornalista especializada em violência de gênero, direitos humanos e narcotráfico. 
A jornalista assinala que, somente em Nuevo León, seu estado natal, os crimes contra mulheres aumentaram 689% de 2005 a 2011, com três feminicídios em 2005 e 211 em 2011. 
“Há mulheres desaparecidas que se enquadram como vítimas do tráfico ou de exploração sexual. Também ocorrem casos de os “arrastões do prazer”, onde os narcotraficantes recolhem as meninas que eles gostam e às vezes as devolvem, mas em outras ocasiões não”, explica Martínez e assinala que o “México é uma terra de feminicídios, produto do redemoinho da barbárie do narcotráfico que já não faz distinções de nenhuma classe”. 

Mulheres que combatem o narcotráfico 

Em meio ao aumento generalizado da violência, registra-se um aumento da presença feminina em forças policiais. Não somente há mais mulheres policiais, mas também agora elas querem ocupar chefias e altos postos, cargos em que anteriormente não podiam se posicionar. Esse fenômeno, no entanto, “não deve necessariamente ser considerado como um triunfo de gênero”, adverte a doutora em Sociologia Olivia Tena Guerrero, coordenadora do Programa de Investigação Feminista da UNAM.
Em alguns casos, destaca Olivia Tena, as mulheres conseguiram alcançar altos postos “somente porque os homens os recusaram”. Esse é o caso de Marisol Valles García, jovem de 20 anos que foi nomeada por alguns meios de comunicação “a mulher mais valente do México” depois de aceitar a chefia da polícia do violento município de Praxedis Guerrero, em Chihuahua. O cargo que ocupou ninguém mais quis, pois seu sucessor, Manuel Castro, havia sido sequestrado, torturado e decapitado. Dois meses depois de assumir o cargo – e de logo receber numerosas ameaças – Marisol foi tirada do posto por ausentar-se de seus trabalhos e solicitou asilo nos Estados Unidos. 
Apesar dos avanços no reconhecimento do direito que as mulheres têm de se empregar no que elas decidirem, as causas que levam muitas às instituições policiais não são precisamente a vontade de ajudar “os demais a servir a sociedade”. “Muitas delas”, reconhece Tena Guerrero, “aproximam-se desse trabalho porque se dão conta que – apesar do perigo que implica – podem ganhar mais sem ter muitos estudos, e porque buscam a obtenção de um poder que antes não conheciam”. 
A também diretora de um projeto de empoderamento de mulheres policiais na Cidade do México acrescenta que, por causa do aumento da violência e criminalidade, que se originam de não haver modificações da estratégia de combate ao crime organizado no momento oportuno, “a função das mulheres policiais é mais repressora que preventiva”. 
Seja qual for seu papel no narcotráfico, é claro que as mulheres têm adquirido paulatinamente poder e têm deixado de desempenhar tão somente papeis auxiliares ou de acompanhamento. “Escutamos e lemos histórias diariamente”, disse a jornalista Sanjuana Martínez, autora do livro “A fronteira do narcotráfico”. “Às vezes são difundidas e muitas outras ficam no esquecimento, mas é preciso ter em conta a situação em que estamos imersas como gênero. Devemos nos cuidar entre nós, fazer redes e nos protegermos, essa é a única maneira de nos defendermos diante dessa guerra delirante”, adverte a repórter de La Jornada.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Da utopia à revolta, da indignação à revolução

por Miguel Urbano Rodrigues

Este início do século XXI será recordado como uma das épocas mais trágicas e belas da História da Humanidade.

Mas as actuais gerações, quando comentam os efeitos da crise mundial que hoje atinge a quase totalidade dos povos e meditam sobre a onda de barbárie que varre o planeta, são empurradas para conclusões pessimistas. O que captam do tempo histórico em movimento é sobretudo o lado mais sombrio.

O homem realizou nas últimas décadas conquistas prodigiosas, inimagináveis em vida dos nossos avós. Já viajou até à Lua, lança sondas a planetas distantes milhões de quilómetros da Terra, sonha com a fundação de cidades terrestres no Espaço, rompe a cada dia as fronteiras do saber, prolongou a esperança de vida.

Foi entretanto breve o tempo das ilusões quando em l945 se calaram os canhões após o esmagamento da Alemanha nazi. A esperança de que a Humanidade iria entrar numa era de paz com as guerras banidas para sempre era utópica. Desde então morreram mais de 50 milhões de pessoas em guerras criminosas e em fomes cíclicas.

A desigualdade social aumentou, aprofundou-se o fosso entre os países desenvolvidos e os mais pobres. Meio milhar de multibilionários acumulou fortunas colossais, algumas (como as de Carlos Slim e Bill Gates) superiores a metade do PIB português. Gigantescas transnacionais impõem a sua vontade aos governos de Estados da África, da Ásia e da América Latina.

A violência assume hoje carácter endémico em amplas regiões do planeta. Um imperialismo colectivo hegemonizado pelos EUA promove agressões para se apossar dos recursos naturais de povos do antigo Terceiro Mundo. Isso aconteceu no Iraque, na Líbia, no Afeganistão.

Neste ultima país os EUA cometem crimes que trazem à memória os das SS hitlerianas.

A guerra afegã está perdida. No corpo de oficiais instalou-se uma mentalidade de matizes fascizantes. Mas o Presidente Obama promulga a lei de autorização da Segurança Nacional que permite a prisão de qualquer cidadão suspeito de contactos com "terroristas".

E a escalada da violência prossegue. O governo neofascista de Israel tenta arrastar o seu grande aliado para uma agressão ao Irão. Obama hesita. Mas apenas por estar consciente de que o envolvimento numa nova guerra na Ásia antes de Novembro poderia prejudicar decisivamente a sua reeleição.

Uma grande parte da humanidade, desinformada, não consegue desmontar os mecanismos da mentira.

PORTUGAL 

A crise, nascida nos EUA, é uma crise do capitalismo.

Longe de estar superada, agrava-se porque é estrutural e não cíclica.

Alastrou pelo mundo e, como era inevitável, contaminou a União Europeia. As receitas para a enfrentar são aqui diferentes das utilizadas nos Estados Unidos porque o dólar é ainda quase a moeda universal e o Banco Central Europeu não tem a possibilidade de emitir sem controlo biliões de euros numa estratégia financeira de combate à crise. Mas aqui, como do outro lado do Atlântico, o objectivo do poder foi acudir aos responsáveis e evitar a falência da grande banca e de gigantescas transnacionais. A factura dos crimes da Finança é cobrada às vítimas, isto é, aos trabalhadores.

País periférico, subdesenvolvido, semi colonizado, Portugal está há muito desgovernado por forças políticas que se submetem docilmente às medidas impostas pelo imperialismo e as aplaudem.

As sanguessugas do capital, actuando em nome da Comissão Europeia e do FMI, proclamam que o povo trabalhador deve sacrificar-se, apertar o cinto, cumprir todas as exigências da chamada troika para recuperar a confiança dos "mercados".

Telelixo.Um sistema mediático perverso e corrupto entra no jogo. Emite críticas irrelevantes ao funcionamento da engrenagem, simulando urna independência inexistente.

O coro dos epígonos, perante o avolumar da indignação dos trabalhadores, teme que ela assuma proporções torrenciais, e repete que felizmente somos um povo de "brandos costumes", diferente do grego, um povo que compreende a necessidade da "austeridade", consciente de que somente dela pode nascer a superação da crise.

Incutir um sentimento de fatalismo nas massas é objetivo permanente no massacre mediático. Arrogantes, os sacerdotes do capital proclamam que não há alternativa à sua política.

Que fazer? 

É pelos caminhos da luta que ela pode ser encontrada.

É necessário combater com firmeza a alienação que atinge uma grande parcela da população. Combater a ideia falsa de que vivemos uma situação democrática, porque o regime parlamentar foi legitimado pelo voto popular é uma exigência histórica, tal como a desmontagem das campanhas que condenam as greves como anti-patrióticas e as manifestações de protesto como iniciativas românticas.

Ajudar milhões de portugueses a compreender como foi possível que 37 anos após uma Revolução tão bela e profunda como a de Abril de 74 o país, de tombo em tombo, voltasse a ser dominado pela classe que o oprimia na época do fascismo tornou-se uma tarefa revolucionária.

Como foi possível o refluxo? A relação de forças que permitiu as grandes conquistas revolucionárias durante os governos do general Vasco Gonçalves não se alterou de um dia para o outro.

A base social do Partido Socialista não deve ser confundida com a do PSD e do CDS. Mas ajudar a compreender que a direcção do PS, colectivamente, tem actuado conscientemente ao serviço da direita é muito importante. Na quase glorificação de Sócrates no Congresso daquele partido o PS projectou bem a sua imagem. O secretário-geral tinha conduzido o país à beira do abismo com a sua política neoliberal de vassalagem ao capital, mas foi ali aclamado como herói e salvador.

Renovaram-lhe a confiança e ele afundou mais o país. Depois ocorreu o esperado. O funcionamento dos mecanismos da ditadura da burguesia de fachada democrática colocou a aliança PSD-CDS de novo ao governo.

Uma parcela ponderável do povo acreditou que votava por uma mudança. Na realidade, limitou-se a accionar o rodízio da alternância no governo de partidos que competem na tarefa de servirem os interesses do capital do qual são instrumentos submissos.

Hoje, cabe perguntar: como pode ter chegado a Primeiro-ministro uma criatura como Passos Coelho? As suas palavras e actos suscitam diariamente torrentes de comentários e interpretações dos analistas de serviço nos media. O homem é um ser de uma indigência mental tão transparente que até intelectuais da direita como Pacheco Pereira reconhecem o óbvio.

O povo acompanha, angustiado, as cenas da farsa dramática. Há dois anos que a sua resposta à política que está a destruir o país não pára de crescer. Mas é ainda muito insuficiente. As grandes manifestações de protesto e as greves (a geral e as sectoriais) somente podem abalar o sistema se a luta adquirir um carácter permanente e diversificado, nas fábricas, nos portos, nos transportes, nas escolas, na Administração, em múltiplos locais de trabalho, nas ruas.

E evidente que as condições subjectivas não são em Portugal as da Grécia cujos trabalhadores, caluniados, se batem hoje pela Humanidade.

Que fazer? – insisto.

0 esforço do PCP na luta contra o imobilismo e a alienação como contribuição indispensável para o reforço da consciência de classe e o nível ideológico da classe trabalhadora assume hoje – repito – carácter de tarefa revolucionária.

A burguesia tudo faz para estimular o pessimismo. O governo e o patronato sabem que a convicção de que não há alternativa para a "austeridade" os favorece. Proclamam que a luta de massas somente agravaria a crise.

A atitude positiva deve ser a oposta, a optimista, a que fortalece o espírito de luta. Não se combate o desemprego, a pobreza, a supressão de conquistas sociais, cedendo ao medo.

A luta do povo português é inseparável da luta de outros povos que mundo afora que são, como o nosso, vítimas de políticas similares do imperialismo ou ainda mais cruéis e desumanas.

É útil desmascarar a monstruosidade das agressões a países da Ásia e da África e lembrar que nas condições mais adversas os povos do Iraque, do Afeganistão, da Palestina, da Líbia, entre outros, resistem e se batem contra a barbárie imperialista.

É preciso lembrar que a luta dos povos é planetária. A nossa globalização não é a deles. Enquanto a maré desce em algumas zonas da Terra, sobe noutras.

É preciso lembrar que o povo cubano, hostilizado pela mais poderosa potência do mundo, alvo de uma guerra não declarada, defende há meio século a sua revolução com coragem espartana.

É preciso lembrar que na América Latina os povos da Venezuela bolivariana, da Bolívia e do Equador apontam ao Continente o caminho da luta contra o capitalismo predador com o apoio maciço dos trabalhadores e da massa dos excluídos.

É útil lembrar que foram as grandes revoluções que contribuíram decisivamente para o progresso da Humanidade.

A burguesia francesa apunhalou em 1792 a Revolução por ela concebida e dirigida. Uma lenda negra foi forjada para a satanizar e lhe colar a imagem de um tempo de horrores e violência. Mas, transcorridos mais de dois séculos, é impossível negar que a Revolução Francesa ficou a assinalar uma viragem maravilhosa na caminhada da Humanidade para o futuro.

É preciso, é útil lembrar que o mesmo ocorreu com a Revolução Russa de Outubro de 1917. O imperialismo festejou como vitoria memorável a reimplantação do capitalismo na pátria de Lenine. Mas não há calúnia nem falsificação da Historia que possa apagar a realidade: as grandes conquistas sociais dos trabalhadores europeus no século XX surgiram como herança indirecta da Revolução Russa, a mais progressista da Historia. Foi o medo do socialismo e do comunismo que forçou a burguesia na Europa a conformar-se com conquistas que, como a jornada de 8 horas, as férias pagas, o 13º salário, tudo faz hoje, desaparecida a URSS, para suprimir.

Em Portugal é preciso e possível recusar o pessimismo, que leva a baixar os braços, à inércia, é indispensável reassumir a esperança que empurra para o combate e a vitória.

Em 1383 e em 1640, quando o país estava de rastos e tudo parecia afundar-se, o povo português desafiou o impossível aparente e venceu.

É preciso recordar que, após quase meio século de fascismo, o povo português foi sujeito de uma grande revolução que na Europa Ocidental realizou conquistas sociais mais profundas do que qualquer outra desde a Comuna de Paris.

Vivemos um tempo de pesadelo. No fluxo e refluxo da Historia, os opressores do povo estão novamente encastelados no poder. Mas é útil lembrar que as sementes de Abril sobreviveram à contra-revolução. E elas voltarão a germinar nos campos e nas cidades, lançadas pelos trabalhadores em marcha pelas grandes alamedas em lutas vitoriosas.

Transformar no quotidiano em realidade a palavra de ordem "a luta continua" é, mais do que um dever, uma exigência da História. 


O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2415 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

O holocausto dos negros

 
A escravidão, o holocausto dos negros. 16675.jpegMuito se fala sobre o holocausto, muito se escreveu sobre os atos chocantes de maldade, barbaridade, crueldade contra vários grupos de pessoas desde os Estados Bálticos, até Europa Oriental e Central e Alemanha. Mas por quê a Escravidão não ocupa um lugar igual nos anais da depravação humana?

23 de março foi um dia de lembrança, um dia de homenagem aos homens, mulheres e crianças que foram arrancadas de suas casas, suas famílias e entes queridos. Onde estava este dia na mídia internacional? Esquecido.

A humanidade se lembra, justamente, das atrocidades do passado, garantindo que ficam nas páginas mais negras da história e fazendo com que as gerações futuras obrigatoriamente se apercebem quão baixo o ser humano pode afundar-se, garantindo que nunca maus esses terríveis atos de crueldade podem acontecer novamente. Muito foi dito e escrito sobre o holocausto judeu, mas sobre o holocausto africano - Escravidão?A escravidão, o holocausto dos negros. 16676.jpeg

Embora não haja registros exatos, foram feitas tentativas para documentar o número médio de escravos arrancados da África e levados para as Américas pelos ingleses, portugueses, espanhois, holandeses, franceses e dinamarqueses. O número oficial é 10 a 11 milhões. Mas vamos pesquisar mais ...
 


Estimativas credíveis (1) postulam 54 milhões como a cifra de pessoas transportadas contra a sua vontade entre 1666 e 1800. Se levarmos em consideração que o comércio quadruplicou entre 1810 e 1860, e apenas nos EUA, então o valor total seria algo em torno de 200 milhões de pessoas traficadas. Acrescente a isso o efeito sobre as famílias e vemos que este episódio mais terrível de nossa história coletiva é, em termos comparativos, praticamente ignorado.

Forçados a ficar deitados, cabeça contra pé, presos aos seus lugares, sem quaisquer estruturas de higiene ou saneamento, eles chegaram ao destino até seis meses depois num mar de excremento. Ou mortos. E este foi apenas o começo de um pesadelo que em muitos casos viram os escravos tratados como animais, ou pior, obrigados a dormir em condições insalubres e apertadas.

A escravidão, o holocausto dos negros. 16677.jpegAs punições incluíram serem fechadps por trás de uma porta pesada, sem espaço para se movimentar durante até três dias, com insetos e escorpiões rastejando por todo o corpo; ser privado de comida e água; ser espancado; ser chicoteado; ser "saqueado" - colocado dentro de um saco, amarrada no pescoço e sendo arrastado ao redor do perímetro da fazenda atrás de um cavalo; ser preso com um anel ao redor do pescoço ou tornozelo; ser atirado para uma masmorra; orelhas cortadas; ossos quebrados; amputação de membros; olhos arrancados; ser enforcado; castração; ser queimado; ser assado. Por quê? Por comer um pedaço de cana de açúcar, por exemplo.

Hoje, 2012, 400.000 pessoas por ano continuam a ser vítimas de escravidão, é por isso que esta coluna raramente é escrita no "Dia da ONU", porque eu considero que todos os dias sejam dias de luta contra a escravidão. Na Mauritânia, um escravo negro pode ser comprado por 11 euros e no Sudão, por 64 Euros. Na Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh, o comércio de escravos continua a processar 25 milhões de euros por ano.

27 milhões de pessoas vivem hoje em condições de escravidão. E não é só em longínquos países como Bangladesh, Sudão ou Mauritânia. De acordo com estatísticas elaboradas por pesquisadores nos Estados Unidos da América (2), "A Agência Central de Inteligência (CIA) estima que 50.000 pessoas são traficadas para, ou transitado através, dos EUA anualmente como escravas sexuais, domésticas, trabalhadores na indústria têxtil, ou escravos agrícolas";A escravidão, o holocausto dos negros. 16678.jpeg
"Entre 100.000 e 300.000 crianças nos EUA estão em risco de tráfico para exploração sexual a cada ano "... 2,8 milhões de crianças nos EUA vivem nas ruas e um terço delas são atraídas para a prostituição dentro de 48 horas depois de sair de casa. Casos de escravidão foram relatados em 90 cidades nos EUA.

Então, não vamos varrer a escravidão por baixo do tapete, não vamos perpetuar a noção de que isso aconteceu no passado e não continua no presente. Continua, sim e os meios de comunicação internacionais devem assumir a causa, que é uma imensa mancha sobre a identidade coletiva da humanidade.

(1) http://academic.udayton.edu/race/02rights/slave04.htm
(2) http://www.gchope.org/human-slavery-statistics.html

Timothy Bancroft-Hinchey
Pravda.Ru

domingo, 25 de março de 2012

Homenagem aos Trabalhadores em Educação do RS e do Brasil....



Novo Tempo - Ivan Lins
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
Pra que nossa esperança seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos, estamos marcados
Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas
Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça

Fonte: Sergio Weber, Professor Estadual

As provas do roubo de bebês durante a ditadura argentina


O arrazoado das Avós da Praça de Maio no julgamento do roubo de bebês durante a ditadura argentina, que será apresentado segunda-feira (26), mostrará as provas reunidas na busca dos netos sequestrados. Em reportagem especial, o jornal Página/12 apresenta parte dessas provas compostas por documentos, papeis oriundos da burocracia, memorandos secretos, análises de DNA, cartas de familiares, testemunhos de sobreviventes e confissões de repressores perante juízes.O artigo é de Victoria Ginzberg y Alejandra Dandan.


Buenos Aires - Victoria Montenegro, Catalina de Sanctis Ovando, Francisco Madariaga, Macarena Gelman, Simón Riquelo, Alejandro Pedro Sandoval, Leonardo Fosatti, Juan Cabandié, Claudia Poblete, os irmãos Antole Boris e Victoria Eva Julien Grisonas e outras 95 crianças sequestradas durante a última ditadura que recuperaram sua identidade são a prova mais forte e palpável do plano de apropriação de crianças. Mas as análises de DNA, suas histórias (à medida do possível) recuperadas não são a única coisa que demonstra a existência daquela prática de terrorismo de Estado que os executores tornaram sistemática e aperfeiçoaram. Há documentos, papeis oriundos da burocracia, memorandos secretos e cartas de familiares. E há palavras, testemunhos de sobreviventes e confissões de repressores perante juízes, e de apropriadores frente aos filhos que supunham seus aliados.

Estas evidências recolhidas durante anos de investigação foram finalizadas no processo contra oito repressores que nesta semana entra em sua etapa final. Depois das marchas que as organizações dos direitos humanos, agremiações políticas, estudantis e sociais estão fazendo hoje, na data do golpe militar de 24 de março de 1976, na segunda-feira os advogados das Avós da Praça de Maio começarão seu arrazoado e darão conta de todos esses fatos, que permitirão sustentar a acusação contra Jorge Rafael Videla, Reinaldo Benito Bignone, Santiago Omar Riveros, Jorge Acosta, Antonio Vañek, Jorge Azic, Rubén Franco e o médico Jorge Luis Magnacco.

Palavras
Há numerosas declarações judiciais em que testemunhos ou imputados mencionaram a existência de ordens provenientes da cúpula militar, para apropriarem-se dos filhos de desaparecidos. Todas coincidem com um objetivo definido: que as crianças fossem criadas em locais “cristãos e ocidentais”. Os testemunhos do médico militar Julio César Caserotto, o fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), Emílio Mignone, a sobrevivente Lila Pastoriza e Jorge Eduardo Noguer, um ex-militar da marinha, cuja filha e neta foram sequestradas são alguns exemplos.

“Na maternidade do Hospital do Campo de Maio, durante o chamado Processo de Reorganização Nacional havia ordens verbais e escritas dos superiores para que ali se desse assistência às parturientes trazidas pelo pessoal da inteligência. As ordens escritas eram intituladas ‘Plano de Operações Normais para o Pessoal da Inteligência’ e estavam assinadas pelo diretor do hospital (Ramón Posse)”, revelou, em 1998, o médico militar Julio César Caserotto, que desempenhou entre 1977 e 1983, a função de chefe de serviço de obstetrícia do Hospital Militar do Campo de Maio. Quando se perguntou pelo destino dessas mulheres e das crianças, respondeu que obedecia “ao despacho do diretor do hospital e dizia que a paciente estava em condições de receber alta” e que ele se desresponsabilizava da questão, mas que no outro dia nem a partiriente nem o recém nascido estavam no lugar.

Em outra declaração, Caserotto recordou pontualmente quando se lhe transmitiram essas ordens. Disse que “um dia, pela manhã, quando se preparava para pegar no trabalho, ficou muito alvoroçado. Que viu uma mulher que estava internada na sala geral, logo após o trabalho de parto, sendo vigiada por um soldado armado. Que essa situação alterava a ordem normal da sala, já que outras mulheres também se encontravam internadas”. Recordou que depois, numa reunião, Posse lhe ordenou: “a partir de agora, internam-se todas as detidas grávidas no setor de Epidemiologia”, assim os inconvenientes seriam evitados, e não se devia registrar o ingresso dessas mulheres nem os nascimentos. Ali estava presente também o capitão Norberto Bianco, médico militar que se encarregava das grávidas sequestradas em centros clandestinos distintos e que se apropriou do filho de Norma Tato e de Jorge Casariego, que em 1977 estiveram detidos no El Campito e permanecem desaparecidos.

O fundador da CELS, Emilio Mignone, recordou num processo judicial em 1998 que, em 1978, junto com Augusto Conte foram encontrar Mario Amadeo para critica-lo por ter aceito a designação, como expert na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, com o aval de Videla. Pediram-lhe que se inteirasse sobre a circunstância de desaparecimento de pessoas e que recebesse as Avós da Praça de Maio. Essa reunião se concretizou e depois de escutar as mulheres que denunciavam o desaparecimento de suas filhas grávidas e o sequestro de seus netos, Amadeo entrevistou o secretário Legal e Técnico da Presidência, o coronel auditor Carlos Cerdá e questionou-lhe sobre os menores, frente ao que Cerdá respondeu-lhe que “aprovou-se, no nível da Junta Militar, uma doutrina por meio da qual os filhos dos subversivos não devem ser educados com ódio das instituições militares” e que “por isso os pequenos eram entregues para adoção”.

Jorge Eduardo Noguer foi membro da Armada entre 1947 e 1967, quando se aposentou como tenente de fragata. Em 3 de junho de 1976 desapareceram sua filha María Fernanda Noguer e sua neta Lucía Villagra, em Acassuso. Seu irmão, o coronel José María Noguer, era intendente de San Isidro e tinha sido companheiro de promoção de Riveros, comandante dos Institutos Militares do Campo de Maio. Em consequência, Jorge Noguer o entrevistou para tentar localizar a sua filha e a sua neta. Riveros designou Hermann Tetzlaff (apropriador de Victoria Montenegro) para que o ajudasse a reconstituir a operação por meio da qual as tinham levado.

Noguer recordou que Tezlaff era o representante da Escola de Comunicações no grupo de Inteligência, chefe da zona de San Isidro, Boulogne e Tigre, e que trabalhava conjuntamente com o Batalhão de Inteligência do Campo de Maio. Ele assegurou que Tezlaff e sua mulher, María del Carmen Eduartes, contaram-lhes várias vezes que não podiam ter filhos. Disseram inclusive que, numa ocasião, em junho ou julho de 76, o repressor passou a procurar por sua casa e o levou a “uma casa situada na rua Thames ou Dardo Rocha, a meia quadra da Panamericana, na qual, na noite anterior se tinha efetuado um procedimento do Exército, onde lhe disse que ‘tínhamos os arrebentado e em que os pais guerrilheiros morreram’, ‘quando entramos, nos encontramos com cinco pequenos com os olhos gigantes, abertos e fiquei com um’”.

O ex-militar que seguia procurando a sua filha e a sua neta ficou impressionado com a crueldade do relatado. Poucos dias depois desse episódio, um sábado pela tarde, apareceu Tetzlaff na sua casa, acompanhado de sua esposa, Eduartes, com uma menina que Tetzlaff apresentou como sua filha, uma babá e a sua sogra. Noguer decidiu ir se encontrar com Riveros para lhe perguntar se não havia a possibilidade de que a sua neta tivesse sido entregue a outra família, como a de Tetzlaff e Eduartes. Rivero lhe disse que com sua neta não tinha ocorrido isso, mas deixou transparecer que “essas eram as normas para evitar que os filhos dos esquerdistas caíssem em lares que não sejam bem constituídos ideologicamente, com o objetivo e encaminha-los”. Noguer, finalmente, fez contato com Videla, que o encaminhou ao ministro do Interior Albano Harquindeguy, que por meio de uma lista ratificou o desaparecimento de sua filha e de sua neta e lhe disse que estavam em mãos do chefe da armada, Emilio Eduardo Massera. Em janeiro de 1977 recuperou a sua neta. Sua filha, Maria Eduarda Noguer, continua desaparecida.

Os testemunhos dos sobreviventes, neste caso na sua maioria mulheres sequestradas que acompanhavam nas celas as suas amigas grávidas e que chegaram até a assistir alguns partos, são também evidências fundamentais desse plano. Sara Solarz de Osatinsky, que esteve presa na ESMA, declarou que “durante muito tempo altos chefes militares da marinha vinham visitar o setor em que ficavam as grávidas, entre outros Vañek, e viam Chamorro, e também Vildoza. Estou quase certa de que foi nesses dias, mas as visitas para contar o que era a ‘maternidade’, a que chamavam ‘a pequena Sardá’, eram permanentes”.

A ESMA contou com uma equipe de médicos e enfermeiros que tinham como função controlar o estado dos sequestrados para garantir uma maior quantidade de tempo de tortura e interrogatórios. E, além disso, faziam controles ginecológicos e partos clandestinos. A “justificação” para roubarem as crianças era a mesma, tanto na armada como no exército. Lila Pastoriza narrou: “Encontrei-me com uma menina que me disse que tinha os seios cheios de leite e perguntei a (Luis) D’Imperio (que atendia pelo nome de Abdala, encarregado do Serviço de Inteligência Naval, grupo de operativos da ESMA) e ele me disse: “Nós consideramos que os filhos não tem culpa de ter os pais que têm, os subversivos, esses terroristas” (...) “acreditamos que as mães devem ter seus partos, mas os pequenos nós os entregamos a outras famílias, que possam educa-los de outra maneira”.

Um legado esclarecedor
O neto Alejandro Sandoval Fontana contou que Alicia Beatriz Arteach, sua apropriadora, disse-lhe que um oficial da Polícia de sobrenome Correa era quem o tinha entregue e que o havia dado a ela e a Víctor Rei (ex-chefe da polícia) a possibilidade de escolher entre ele e uma menina recém-nascida. Alejandro contou que quando perguntou por Correa, Arteach lhe respondeu que tinha se tornado alcoolista, que tinha se degradado, que vivia brigando e que não tinha ficado bem com o que tinha se passado no Campo de Maio.

Correa é o comandante principal da polícia, Darío Alberto Correa e estava encarregado das grávidas sequestradas na prisão militar de processados Campo de Maio, que embora se encontrasse na guarnição mencionada, dependia do Primeiro Corpo do Exército, com assento em Palermo. Os papeis do arquivo pessoal de Correa, já falecido, trazem interessante documentação: ele mesmo relatou, numa atuação administrativa do ano de 1987, sua participação na repressão. Numa história clínica que aparece sob o título “Atividades cumpridas no meio castrense”, datada de 29 de julho de 1987, em Catamarca, Correa admitiu, entre outras coisas, que teve sob sua responsabilidade “a atenção de parturientes detidas, seus filhos e a entrega posterior deles a pessoas selecionadas pelas autoridades responsáveis, inclusive o traslado posterior das mães a lugares secretos para sua entrega aos responsáveis pela sua eliminação final”.

O caso de Correa, explicarão durante o arrazoado os advogados das Avós da Praça de Maio, prova a existência de mecanismos aceitos para a apropriação dos filhos das mulheres desaparecidas. Em primeiro lugar, fica clara a coordenação entre distintas zonas dentro do Exército. Também prova a existência de um complexo procedimento dirigido a partir da hierarquia com distintas cadeias de comando e papeis definidos, onde as pessoas que receberiam (se apropriariam) das crianças eram selecionadas previamente por autoridades responsáveis. E, finalmente, prova que existia um procedimento estabelecido para assassinar as mães.

Papeis
Outro documento que evidencia o plano para se apropriarem dos filhos dos desaparecidos é o memorando redigido em 1982 por Elliot Abrams, funcionário do Departamento de Estado dos EUA, depois de entrevistar o embaixador argentino em Washington Lucio Garcia del Solar. O documento foi aberto pelo governo dos Estados Unidos em 2002 e publicado pelo jornal Pagina12.

Nesse documento, Abrams contou : “perguntei ao embaixador sobre o tema das crianças nascidas das prisioneiras ou os arrancados de suas famílias durante a guerra suja. Mesmo que os desaparecidos estivessem mortos, essas crianças estavam vivas e num certo sentido isso era o problema humanitário mais grave. O embaixador concordava no geral e eu já tinha dito a ele que tinha falado a respeito com o ministro de Relações Exteriores e com o presidente. Não tinham rechaçado seu ponto de vista, mas registraram o problema de, por exemplo, tirarem-lhes as crianças e entregam-nas a pais adotivos”. Este memorando tem a data de 3 de dezembro de 1982, quando a presidência de fato era exercida por Reinaldo Benito Bignone.

O documento reflete o conhecimento pleno de Bignone da apropriação de crianças. Mais ainda, observam os advogados das Avós da Praça de Maio, deixa claro que o ditador sabia do destino desses meninos e meninas. Abrams foi convocado a declarar em juízo oral, como testemunho, o trâmite do processo por meio de uma videoconferência. Nessa oportunidade, disse: “Pensávamos que era um plano porque havia muita gente que encarceravam ou assassinavam e nos parecia que o governo militar tinha decidido que algumas (crianças) fossem entregues a outras famílias” e esclareceu que essa não era a sua opinião pessoal, mas a do governo dos Estados Unidos.

Pessoas de Bem
Com as declarações de alguns jovens que recuperaram sua identidade, reforçou-se a ideia de que o objetivo de que as crianças fossem entregues a familiares que cumprissem certos requisitos foi levada a cabo e de que, para tanto, existiam certos mecanismos burocráticos mais ou menos formais, de acordo com os casos.

A apropriadora de Alejandro Sandoval Fontana contou-lhe que citaram a ela e a Rei “no Regimento de Patrícios, o Maldonadito, e fizeram-lhe uma revista”. Disseram-lhe que quem ficasse com o menino “tinha de ter a força ou o amigo da força, tinha de ter casa própria, de ser católico”.

Isso coincide com a informação que Catalina De Sanctis Ovando, que pôde reconstruir parte do processo de sua subtração a partir de uma carta que encontrou no domicílio de seus apropriadores (e que depois foi sequestrada numa invasão de seu domicílio) e do que eles mesmos – Carlos Hidalgo Garzón e Francisca Morillo – disseram-lhe.

A carta foi enviada por Morillo a Hidalgo Garzón, oficial de Inteligência do Exército, a seu destino militar em Tucumã e está datada de 7 de abril de 1977. Na carta, Morillo informa a Hidalgo Garzón: “Do Liceu falei com o coronel e ele me disse que parece que se fez o chamado do nada, disse-me que fora ao Liceu depois da Semana Santa para atender à solicitação: atendeu-me muito amavelmente e se lembrou em seguida; vê-se que tem ciência do que se trata, veremos o que está acontecendo” (...) “Veio a assistente de movimento, ficou encantada com o departamento. Conversamos muito e ele me explicou que ela há 7 anos trabalha no movimento e nunca viu crianças com problemas de saúde ou má formação serem entregues, que as crianças são muito saudáveis e chamava a atenção dela o quanto os partos eram normais. Depois conto em detalhe sobre a conversa”.

O “Movimento” a que se faz referência na carta é o Movimento Familiar Cristão, que interveio em alguns casos como intermediário entre as Forças Armadas e as famílias apropriadoras. Numa convesa com o marido de Catalina, Hidalgo Garzón confessou ter visto a mãe de Catalina detida no Campo de Maio e ter chamado no dia seguinte à subtração para perguntar se haviam “voado o pacote”, em referência ao assassinato de Miryam Ovando, ao joga-la ao mar nos chamados “voos da morte”. A apropriadora argumentou, além disso, que eles queriam “adotar” a menina, mas que “um superior ordenou-lhes que tinham de registrá-la como filha legítima”.

“Esses fatos – dirão os advogados das Avós – permitem-nos concluir que existiram mecanismos burocráticos precisos para a entrega dos bebês a seus apropriadores, nos quais cumpriam requisitos também precisos, nos quais interviam distintas instituições além das militares, como o Movimento Familiar Cristão, também religiosos, e nos quais havia controle hierárquico dentro da mesma estrutura militar”.

“Mesmo que esteja bastante claro que a ditadura desenvolveu sua atividade de repressão e extermínio na mais absoluta clandestinidade – de que a apropriação não foi exceção – e que procurou a sua impunidade instando a destruição dos mais diversos registros e evidências, chegando tanto à destruição de documentos como a de espaços físicos (é o caso do CCD El Campito, no Campo de Maio), mesmo assim, ficaram muitos rastros da política que a ditadura definiu a respeito das crianças”, vai se escutar durante o arrazoado preparado pelos advogados María Inés Bedia, Florencia Sotelo, Colleen Torre, Gerrmán Kexel, Emanuel Lovelli, Agustín Chit, Mariano Gaitán, Luciano Hazan e Alan Iud.

Não será portanto possível encontrar um papel escrito pelos repressores com os detalhes do plano de apropriação de crianças. Mas estes 35 anos de busca de netos permitiram a coleta de provas mais do que suficientes que estabelecem que as apropriações de crianças não foram “excessos” ou casos isolados, como argumentavam as cúpulas militares, quando diante da inapelável evidência de uma análise genética positiva.

“Quem se perguntar se a ditadura militar teve por objetivo satisfazer aos desejos egoístas de paternidade de alguns oficiais, suboficiais ou famílias vinculados eles estão errando o ponto de partida – explicam os advogados das Avós. O objetivo da ditadura era erradicar as possibilidades de construção de um país distinto, onde o povo fosse protagonista das decisões políticas e decidisse soberanamente o seu destino, e para isso perseguiu com os mais perversos e cruéis métodos militantes políticos, sindicais, estudantis que impulsionavam a politização da sociedade e buscavam modificar o status quo. Foi na execução dessa tarefa infame que as Forças Armadas abordaram o “problema” dos filhos daqueles que fizeram desaparecidos. E, muito precocemente, tomaram a decisão de que essas crianças não seriam devolvidas as suas famílias”.

Tradução: Katarina Peixoto