Nascidos
na Argentina na década de 1990 para denunciar os agentes da ditadura
civil-militar responsável por um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos
no período, os escrachos criaram condenação social e abriram caminho
para a abertura dos processos judiciais contra militares e civis
envolvidos na repressão
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por Dafne Melo no LeMondeBrasil |
(Ação da Frente de Escracho Popular, no dia 7 de abril em São
Paulo, denuncia o legista Harry Shibata, que assinava laudos falsos para
encobrir torturas)
Na manhã de 25 de março de 2006, quem passava pela Avenida Cabildo,
número 639, no bairro portenho de Belgrano, via a parte externa de um
prédio residencial, precisamente na altura do sexto andar, manchado de
tinta vermelha, além de placas e pichações na rua. “Aqui vive um
genocida”, diziam algumas das mensagens. Nesse endereço vivia Jorge
Rafael Videla, um dos líderes da Junta Militar que tomou o poder por
meio de um golpe de Estado em 24 de março de 1976.
Quem tivesse passado no dia anterior teria visto 15 mil pessoas em uma
manifestação diante da casa do repressor, na ocasião em prisão
domiciliar (hoje cumpre a pena em um presídio). Tratava-se de um
escracho, como ficou conhecido na Argentina e no Uruguai um determinado
tipo de mobilização em que se evidencia publicamente um fato condenável
em relação a uma pessoa ou lugar.
As semelhanças com os atos realizados por jovens brasileiros nos meses
de março e abril não são meras coincidências. No comunicado da
organização Levante Popular da Juventude, que organizou seis escrachos a
repressores brasileiros em seis cidades simultaneamente, no dia 26 de
março, é feita referência à experiência do país vizinho e à chilena,
onde esse tipo de mobilização recebe o nome de “funa”.
Há consenso, porém, que o escracho nasceu na Argentina. “É uma
ferramenta de luta que criamos em determinado período de nossa
história”, conta Julio Avicento, da Hijos (sigla em espanhol para Filhos
e Filhas pela Identidade, Justiça e contra o Esquecimento e o Silêncio,
que forma a palavra “filhos”), da cidade de La Plata, organização à
qual se atribui a criação do escracho.
O período a que se refere Avicento é a década de 1990, quando vigoravam
as chamadas “leis de impunidade”. Após o fim da ditadura civil-militar,
em um contexto de denúncias feitas pelas organizações de direitos
humanos, crise econômica e desmoralização em razão da derrota na Guerra
das Malvinas, os integrantes das juntas militares que chefiaram o país
entre 1976 e 1983 foram julgados, em 1985. O resultado foi a condenação
de Videla e Emilio Eduardo Massera à prisão perpétua, e de outros três
chefes da Junta a penas menores. Outros quatro foram absolvidos.
Nova geração e impunidade
A Argentina era então governada por Raúl Alfonsín, que depois do
Julgamento às Juntas sancionou duas leis: Ponto Final e Obediência
Devida. Juntas, concediam anistia a todos os outros militares e
policiais com a justificativa de que haviam cumprido ordens de seus
superiores. Portanto, estes já haviam sido julgados e o assunto estava
encerrado. Para completar, em 1990 o então presidente Carlos Menem
concedeu um indulto aos condenados, colocando em liberdade os chefes
militares.
Para Julio Avicento, nesse momento houve um ponto de inflexão em que
essas leis passaram a ser questionadas pelas quatro gerações de
lutadores: as mães, pioneiras na luta contra a impunidade; as avós, que
questionavam o paradeiro de seus netos (a ditadura civil-militar
argentina roubou cerca de 500 filhos de desaparecidos); a própria
geração dos desaparecidos, representada pelos sobreviventes; e os
filhos, que nessa época estavam entre a adolescência e a vida adulta.
Em um contexto de impunidade total, no qual era impossível avançar
judicialmente, a organização Hijos passou a sugerir a possibilidade de
um avanço em outro tipo de condenação. “O caminho era a condenação
social, já que não se podia contar com a Justiça, cúmplice do genocídio.
Quanto mais a sociedade condena, mais fácil é romper a impunidade,
inclusive judicialmente”, resume Agustín Cetrangolo, também militante da
Hijos, na capital Buenos Aires. De fato, foi o que ocorreu no país. Em
2003, Néstor Kirchner derrubou as leis, o que permitiu o início do
julgamento judicial de vários repressores. “Quase todos os processados
ou julgados foram escrachados antes”, conta Cetrangolo.
Julio Avicento revela que diversas organizações participavam do
escracho, não apenas a Hijos. “Usávamos as chamadas ‘mesas de
escrachos’, nas quais participavam distintas organizações; havia muitas
tarefas para dividir e muito a aprender durante o caminho”, lembra. O
militante explica que um trabalho prévio ao escracho era feito, não só
de investigação para comprovar a participação do repressor, mas também
com os vizinhos. “Passávamos casa por casa conversando, explicávamos que
íamos fazer uma atividade, entregávamos um texto explicando o porquê”,
explica. A chamada “mesa de escracho” era geralmente feita em um centro
cultural ou na sede de alguma organização, que cedia o espaço. Os
militantes faziam então um diálogo com o bairro e com as organizações a
partir do eixo da denúncia aos repressores.
A lógica não era necessariamente gerar a surpresa e um incômodo no
repressor no momento do escracho, mas instalar um desconforto permanente
por meio do trabalho com os vizinhos. “Queríamos que as pessoas se
recusassem a entrar no elevador com eles, que o padeiro do bairro se
recusasse a vender pão. Dizíamos: se não vai para a cadeia, que sua casa
seja uma cadeia. Que na rua sejam repudiados pela sociedade.”
Filhos da luta
As organizações que aderiam ao escracho a um genocida (na Argentina,
alguns juízes afirmam que os crimes de lesa-humanidade cometidos na
ditadura se deram dentro de um plano sistemático de extermínio, que pode
ser classificado como genocídio) não eram apenas formadas por
familiares. A Hijos, por exemplo, é aberta à participação de toda a
sociedade. Explica Avicento: “Não sou filho de desaparecido, mas há
quatorze anos milito no âmbito dos direitos humanos, conheci muitos
companheiros [filhos e parentes] e me envolvi. O rico dessa luta é que
toda a sociedade pode se envolver”. Não somente pode, como deve. “Toda a
sociedade foi vítima do terrorismo de Estado, todos sofreram com o
terror e o medo”, completa.
Agustín Cetrangolo é filho de Sergio Cetrangolo, desaparecido em 1978. A
mãe, também presa e torturada, é da geração de sobreviventes. “Não
entendemos que a reparação é apenas com os familiares, mas deve-se
reparar toda uma sociedade”, defende. “Na Hijos dizemos que todos somos
filhos da mesma história. Seria um erro dizer que o genocídio pretendeu
apenas exterminar as organizações políticas e seus militantes. A
violência do genocídio extrapola isso. Se entendemos que toda a
sociedade foi vítima desse terrorismo de Estado, por que não podemos
organizar qualquer setor para lutar contra isso?”, completa.
Para Julio Avicento, quem usa o argumento de que os jovens de hoje não
“têm nada a ver” com a repressão “esconde na verdade uma posição que
procura manter a impunidade em relação aos repressores”. Os militantes
também lembram que o aparato repressivo da ditadura persiste até hoje,
com os casos de assassinatos de jovens pela polícia ou a perseguição e
espionagem dos movimentos sociais. Também por isso os escrachos
continuam sendo usados. “O escracho transcendeu a Hijos, para além do
que entendíamos como escracho. Em 2001, por exemplo, escrachou-se tudo,
bancos, McDonald’s”, recorda Cetrangolo.
Dafne Melo
Jornalista e historiadora
Ilustração: Igor Ojeda |
No Nepal registam-se dezenas de línguas e etnias ainda vivas, entre
os quais o idioma Kusunda vai viver tanto tempo como a sua derradeira
falante, Gyani Maiya Sen. Trata-se de uma aldeã de 75 anos que possui
nela todo o património milenar do seu povo, depois de que
progressivamente os seus e as suas compatriotas abandonassem o idioma
próprio.
Há outras pessoas que sabem algumas palavras ou expressões, mas
nenhuma que o fale fluentemente, como sim faz Gyani Maiya Sen, que
mantém a prática lingüística apesar de não ter com quem falar em língua
kusunda, que para além de nom ter mais falantes constitui um idioma
isolado, sem parentesco conhecido com as restantes línguas do Nepal.
Gyani Maiya Sen pertence a um povo das florestas nepalesas,
historicamente desprezado pelas etnias maioritárias, o que levou as
pessoas a abandonarem progressivamente o idioma próprio, que "não servia
para nada", e a aprenderem o idioma do poder, o nepalês, por sua vez
pertencente à família indo-ariana e falado, além de por 17 dos 29
milhões de habitantes do Nepal, em regiões do Butão, da Índia e de
Mianmar (antiga Birmânia).
Dezenas de línguas e grupos étnicos dentro das fronteiras nepalesas
No Nepal, coexistem mais de cem grupos étnicos que falam dezenas de
idiomas, a maioria pertencente às famílias linguísticas sino-tibetana,
indo-europeia, austro-asiática e dravidiana.
Mas o kusunda parece estar fora dessas categorias, sendo uma língua
isolada, tal como o idioma basco e o coreano, para só referirmos um
exemplo europeu e um outro também asiático.
'É uma língua estranha, mas gosto de aprendê-la. Tem alguns sons
guturais, como os que se encontram no árabe e no turco', descreve o
professor Gautam Bhojraj, estudioso nepalês da língua kusunda, só
descoberta por ocidentais em 1995, por um antropólogo austríaco, mas
desde esse momento bastante estudada e catalogada.
Para Gautam, o problema é que a última falante de kusunda tinha
começado a esquecer a sintaxe e a morfologia, e também não tinha os
contextos necessários para pôr sua língua em prática. 'Se perguntarmos a
alguém como se diz uma palavra específica em sua língua, ela talvez não
consiga responder, mas a palavra certamente aparecerá quando precisa
ser usada no contexto apropriado'.
Os contextos de Gyani Maiya eram os que lhe proporcionava sua mãe até
sua morte, já faz 25 anos: ambas usavam o kusunda apenas quando
precisavam dizer algo sem que as demais pessoas presentes entendessem. O
último estertor 'natural' do kusunda, portanto, funcionou como uma
espécie de código secreto.
Com Agências, Wikipédia e Chuza!