domingo, 10 de julho de 2011

A resposta política para a crise


Operários liderados pelo sindicalismo mais forte do país, um dos mais organizados do mundo, que gerou o PT e três presidências da República com a energia liberada pelos levantes grevistas dos anos 70/80, lutam agora contra a desindustrialização. A nova agenda do ABC marca um salto na compreensão das interações perversas que subordinam o emprego, o salário e a própria sobrevivência operária à corrosão industrial e ao seu algoz: as taxas de juros praticadas no país. O artigo é de Saul Leblon.


A desordem financeira mundial não cederá tão cedo, nem tão facilmente. A consciência dessa travessia histórica é um dado fundamental para a ação política em nosso tempo.

O movimento estrutural de expansão do capital financeiro, cuja supremacia determina a dinâmica da economia e impõe dramáticos constrangimentos à soberania democrática da sociedade antecede e realimenta o colapso mundial iniciado em 2007/2008. (Leia mais sobre esse tema nos capítulos inéditos do novo livro de Luiz Gonzaga Belluzzo publicados por Carta Maior.)

Não há economicismo nessa constatação. A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs, a velocidade com que ela se consolidou, a virulência de sua hegemonia e a brutal agonia da decadência atual.

A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929 foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do Dinheiro. Seu vetor, o desmonte das travas regulatórias do sistema bancário consolidado no pós-guerra, não foi obra do acaso.

Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento de uma dominância financeira , cuja presença tornou-se ubíqua em todas as esferas da vida humana.

A queda do Muro de Berlim em novembro de 1989 sancionou no imaginário social a supremacia de uma ordem regressiva que agora vive a sua fase crepuscular.

Recolher esse caudal selvagem aos diques preexistentes do século 20 é tão plausível quanto devolver a pasta de dente ao tubo.

A sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos mercados perdeu a capacidade institucional de gerar antídotos às degenerações intrínsecas a essa renúncia.

A democracia terá que reinventar-se para que tal possibilidade se recoloque no horizonte da ação política.

Massas ‘indignadas’ reunidas nas ruas e praças da periferia européia, hoje o vulcão mais ativo da crise mundial, sinalizam um deslocamento de forças rumo a esse ponto de mutação.

No Brasil, a greve simbólica de algumas horas decretada pelos operários metalúrgicos do ABC paulista, na sexta-feira, dia 08-07, sugere uma condensação de consciência política na mesma direção.

Operários liderados pelo sindicalismo mais forte do país, um dos mais organizados do mundo, que gerou o PT e três presidências da República com a energia liberada pelos levantes grevistas dos anos 70/80, lutam agora contra a desindustrialização.

Que o noticiário econômico e político tenha dispensado pouca ou nenhuma atenção à singularidade desse evento apenas confirma a inapetência desse jornalismo para enxergar além da lógica mercadista.

A nova agenda do ABC marca um salto na compreensão das interações perversas que subordinam o emprego, o salário e a própria sobrevivência operária à corrosão industrial e ao seu algoz: as taxas de juros praticadas no país.

No Brasil, a política monetária --esfera do Estado sob a prerrogativa absoluta dos mercados financeiros-- oferece aos capitais especulativos 6% de valorização real ao ano. A média mundial essa taxa oscila entre zero e negativa.

No pós-crise, a confluência desse lubrificante com a robustez do mercado nacional, mais a liberdade cambial, transformou-se em armadilha cambial. Contra a produção e o emprego local. A valorização da moeda desloca demanda e vagas para o exterior via importações.

Na última sexta-feira, o presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, liderou uma passeata de milhares de operários que desligaram as máquinas para protestar contra a desindustrialização embutida nessa engrenagem.

Nobre fez uma rápida conta para ilustrar o estrago em curso no país.

Um milhão de automóveis importados ingressarão no mercado brasileiro este ano, segundo o dirigente do ABC.

É mais do que 1/3 das 2, 8 milhões de unidades fabricadas no país em 2010, que empregaram 138 mil operários nas linhas de montagem.

A importação prevista em 2011, portanto, corresponde a uma perda potencial de oportunidades de trabalho equivalente a 40 mil empregos. A Fiat, a maior fábrica do país hoje tem 38 mil funcionários.

Outras correlações entre a política monetária e as condições da vida social poderão assumir um teor igualmente explosivo, caso as lideranças sindicais resolvam incorporá-las à agenda das mobilizações operárias.

Os juros da dívida interna custaram ao país R$ 213 bi nos últimos 12 meses (uma parte paga, uma parte agregada ao saldo devedor).

O orçamento reservado à educação pública brasileira em 2011 é inferior a 1/3 disso, R$ 65 bi.

O financiamento de 2 milhões de residências do Minha Casa, Minha Vida vai custar R$ 125 bi aos fundos públicos em quatro anos.

Significa que um ano de juro da dívida daria quase para dobrar a oferta de habitações populares. Ou zerar o déficit de sete milhões de unidades em pouco mais de três anos.

Os investimentos totais do PAC em infraestrutura em estradas saneamento, energia elétrica etc este ano vão atingir R$ 32 bi em 2011. O juro da dívida custa seis vezes mais.

Um ano de juro da dívida equivale a 71 anos de merenda escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.

O Bolsa Família poderia elevar o benefício médio do programa para R$ 1.400,00 mensais, contra média atual de R$ 155,0, se fosse possível inverter os fluxos: os rentistas ficariam com os R$ 17 bi do programa e as 12,3 milhões de famílias mais pobres do país teriam os bilhões devorados por eles.

O tema que os operários do ABC acabam de incorporar a sua agenda
é a síntese maléfica dessa dinâmica.

Dois pilares da hegemonia neoliberal condensam-se para desencadear o processo de desindustrialização: a livre mobilidade dos capitais e a captura dos fundos públicos pelo capital financeiro, através do pagamento de juros aos títulos da dívida interna.

Há duas formas de se quebrar essa simbiose que sequestra a democracia no cativeiro de interdições financeiras.

Uma derrubada fulminante dos juros aboliria o incentivo do carry-trade. A expressão refere-se ao ganho diferencial obtido entre a tomada especulativa de recursos a juro zero nos EUA, por exemplo, e sua aplicação aqui a 6% reais ao ano, fora o plus da desvalorização cambial no período

O inconveniente de uma queda abrupta dos juros é o seu potencial inflacionário. O menor afluxo de capitais daí decorrente encareceria as importações e sancionaria reajustes internos de preços.

Uma alternativa seria centralizar o câmbio no Banco Central.

O Estado teria o monopólio sobre a entradas e a saída de moeda forte. Capitais especulativos seriam barrados em quarentena. A indigestão cambial que hoje valoriza a moeda brasileira e promove a importação desenfreada de manufaturas seria revertida.

Embora considere essa hipótese de difícil implementação, por conta das resistências políticas, a economista Daniela Prates, da Unicamp, lembra que o governo dispõe de instrumento legal para fazê-lo.

“Toda a liberação de capital no país foi autorizada através de medida provisória do Banco Central, sem passar pelo Congresso. Não é lei. A lei verdadeira que trata da matéria, a 4131 continua em vigor”, explica.

Instituída em 1962, a Lei 4131 sobreviveu à ditadura militar protegida pelo verniz nacionalista de alguns segmentos do Exército.

No ciclo de desregulação ortodoxa, o tucanato preferiu enfraquece-la –o que ocorreu também no primeiro mandato de Lula, quando Antonio Palocci era ministro da fazenda - a correr o risco de um desgastante empenho pela sua revogação no Congresso.

Basicamente, a 4131 dá ao Estado brasileiro poderes cambiais equivalentes aos exercidos hoje pelo governo chinês, e que explicam uma parte do êxito exportador da nova fábrica manufatureira do mundo.

Em vez da livre mobilidade de capitais –que tucanos como Pérsio Arida querem transformar em livre conversibilidade, o que implica renunciar à moeda própria - a 4131 prevê o monopólio cambial do Estado brasileiro.

Se quiser o governo tem amparo legal para controlar o ingresso de capitais de risco, a inversão inicial ou reinvestimento, bem como empréstimos e financiamentos, ademais das remessas na forma de licenças de patentes e marcas, contratos de assistência técnica, outros serviços e transferências de patrimônio etc.

Desprovida das forças políticas que lhe deram sustentação e pertinência no passado, a 4131 soa hoje como um anacronismo, quase um zumbi-jurídico no baile neoliberal.

A crise que liberou novos atores e novas agendas sugere, porém, que esse vazio de conteúdo histórico pode mudar.

Se o FMI já admite o recurso ao controle de capitais – hipótese keynesiana prevista no seu estatuto que também resistiu ao vale tudo das últimas décadas — e os metalúrgicos do ABC decidiram marchar contra a industrialização, a 4131 pode, em tese, ganhar um aggiornamento. E assumir nova pertinência na agenda do desenvolvimento pós-crise.

O governo por enquanto tem preferido agir de forma gradualista contra o tsunami especulativo de dólares.

“Mas o gradualismo não está dando resultado”, contrapõe a economista Daniela Prates, professora da Unicamp. Embora as autoridades brasileiras tenham tomado uma série de medidas para conter o ingresso de capitais especulativos –aumento do IOF de 6% sobre captações de empresas no exterior; aumento do compulsório bancário para captações externas com prazo inferior a dois anos etc— o preço da moeda norte-americana, de fato, continua a deslizar em relação ao real.

Embora o ingresso de divisas tenha caído fortemente no último trimestre.
no início de julho, o dólar atingiu o valor mais baixo desde 1999. Diante do revés, o governo resolveu agir sobre um flanco que maximiza as distorções cambiais: o mercado futuro . Uma espécie de guichê de aposta especulativa sobre a evolução do câmbio, essa roleta gira atualmente US$ 23 bilhões, volume bem superior ao movimento físico diário de moeda estrangeira no país.

Em tese, o mercado futuro deveria proteger exportadores e importadores que fecham a sua taxa cambial previamente, precavendo-se contra surpresas na hora de efetivar compras ou vendas.

A exemplo dos fundos hedge, porém, e das bolsas de commodities, o que deveria ser um fator de estabilidade foi capturado pelo dinheiro especulativo. No caso brasileiro, isso se traduz em apostas crescentes na desvalorização do dólar com lucros extras nas operações de carry-trade (além do juro, ganha-se mais dólares na reconversão cambial na hora da remessa).

A queda de 3% no valor do dólar na segunda quinzena de junho, por exemplo, deu a esses apostadores ‘vendidos’ na moeda norte-americana um ganho equivalente a 24 meses de carregamento de títulos do Tesouro norte-americano. Repetindo, em 15 dias a rentabilidade de 24 meses...

Para reduzir esse atrativo descomunal, o governo subiu um novo degrau no gradualismo na sexta-feira (08-07), obrigando os bancos a recolher no BC o equivalente a 60% do valor das suas posições ‘vendidos’ no mercado futuro.

A economista Daniela Prates acredita que a ‘paulada’ deveria ser mais direcionada ao capital estrangeiro que vem engordar no jogo cambial.

“Seria preciso”, explica, “exigir que as apostas no câmbio futuro tivessem um maior comprometimento em moeda física. O depósito exigido atualmente é de apenas 8% do valor do contrato”.

Tal alavancagem é absurda para as condições de um país espremido pelo desequilíbrio cambial: com US$ 8 milhões de depósito efetivo, por exemplo, o especulador movimenta contratos no valor de US$ 100 milhões e exerce uma influencia desproporcional sobre a taxa de câmbio do país.

Daniela Prates entende que a fase da mitigação esgotou seus instrumentos e o governo precisa agir com maior contundência.

Ela recomenda também uma ‘paulada’ no IOF sobre apostas cambiais no mercado futuro .E sugere: “A cobrança deveria recair sobre o valor total dos contratos e não apenas sobre o depósito de garantia, como acontece atualmente”.

Medidas incrementais mais duras que o mercado tem sucessivamente contornado, ou o resgate do controle de capitais permitido pela lei 4131? A decisão na verdade não depende apenas de escolhas teóricas. “Estamos diante de um fator político, assim como a explicação para a taxa de juros vigente no país extrapola razões de natureza meramente econômica”, resume a economista da Unicamp.

Nos anos 70, quando a disposição dos sindicatos do ABC de derrubar o arrocho salarial coincidiu com a saturação política e social de amplas camadas da sociedade brasileira em relação à ditadura, os metalúrgicos souberam ir além dos limites corporativos para liderar uma nova agenda histórica.

Ainda é cedo para saber se eles podem repetir a façanha agora.
Os desafios e a relação de forças são distintos. Em alguns aspectos até mais favoráveis.

Existe maior organização e capilaridade das forças de esquerda no país; há liberdade de expressão e o governo tem recorte progressista.

Raras vezes, exceto em breves momentos da disputa eleitoral dos últimos anos essa paleta de forças se mobilizou de forma coordenada e contundente. Em certa medida, é desconhecida a extensão de seu poder.

Incerto também é o comportamento político da massa de 50 milhões de brasileiros que ascenderam socialmente através das políticas públicas implantadas desde 2003.

Uma certeza, porém, emerge das tensões e esgotamentos refletidos nos indicadores econômicos do pós-crise mundial: o tempo do fatalismo econômico parece ter chegado ao fim. A política está de volta às ruas. E o futuro pede para ser reinventado.

A encruzilhada do desenvolvimento


O atual tripé da política econômica (superávit primário alto, câmbio flexível e o sistema de metas de inflação) dará sustentação ao crescimento e conduzirá o país a um novo patamar de desenvolvimento, alterando a distribuição de renda e riqueza em direção a mais igualdade?
por Clemente Ganz Lúcio, Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça
O Brasil vem crescendo a uma taxa de 4,5%, em média, nos últimos sete anos (2004-2010). Esse novo patamar, após longo período de baixo crescimento, tem renovado as expectativas da sociedade brasileira. As taxas de desemprego voltaram aos níveis de vinte anos atrás, e a criação de novos empregos – a grande maioria com carteira de trabalho assinada, nos setores privado e público – tem superado o número de ingressantes no mercado de trabalho. Essa dinâmica, em que a demanda de trabalho tem ultrapassado a oferta, contribui para a redução do desemprego. Um conjunto de outras políticas públicas, como a valorização do salário mínimo, o Bolsa Família e a política de crédito, impulsiona o crescimento da economia, criando um círculo virtuoso de expansão da renda e do emprego.
Essa sensação de bem-estar e otimismo não deve encobrir, contudo, os desafios e obstáculos a superar para que o país trilhe uma rota de desenvolvimento com inclusão e melhoria do padrão de vida de toda a população, capaz de reduzir a enorme desigualdade de renda e riqueza ainda vigente no Brasil. E o enfrentamento desses desafios exige a implantação de políticas que vão além da política econômica ou macroeconômica, embora esta seja peça estratégica para o país atingir um patamar superior de desenvolvimento.
O que caracteriza o atual estágio de desenvolvimento e qual o papel da política econômica?
Em 2011, o Produto Interno Bruto por habitante (PIB per capita) no Brasil, importante indicador para avaliar o estágio de desenvolvimento dos países, deve atingir cerca de R$ 20 mil, ou US$ 12 mil. Para efeito de comparação, os EUA atingiram um PIB per capitade US$ 47 mil em 2010, quase quatro vezes o do Brasil. Ainda que se considere que atingir esse nível de renda dos EUA e dos países desenvolvidos pode demorar um longo tempo, não há como ignorá-lo como uma meta importante de bem-estar da população mundial.1
Já tendo iniciado esse movimento, nas próximas duas a três décadas o Brasil vai aprofundar o fenômeno que os especialistas em demografia denominam de janela de oportunidade demográfica ou bônus demográfico. Nos próximos vinte a trinta anos, a proporção da população jovem e adulta em relação à população que não trabalha (dependente) vai atingir o maior patamar. Nesse período, o país poderá alcançar o mais alto potencial produtivo em muitas décadas, elevando as oportunidades de criação de renda, riqueza e bem--estar para a população.
Para “realizar” esse potencial é necessário crescer e incluir a população que chega todo ano ao mercado de trabalho, gerando empregos e ocupações decentes e produtivas e pagando salários mais altos. A pergunta é mais que oportuna. Com a atual política econômica nós vamos chegar lá?
A atual política econômica está apoiada num tripé: o superávit primário das contas públicas, a taxa de câmbio flexível e o sistema de metas de inflação sob comando do Banco Central. E quais são seus principais resultados?
Convivemos com as mais altas taxas de juros reais (descontada a inflação) do mundo. Temos a mais alta carga tributária (a relação entre os impostos arrecadados e o tamanho da economia) entre os países com o mesmo nível de renda per capita. E, nos últimos anos, há uma forte tendência à apreciação da moeda brasileira, dificultando a competitividade dos produtos exportados pelo Brasil e aumentando a facilidade de importar produtos de outros países.
Antes de enfrentarmos o debate sobre a política econômica, cabe registrar que existem diversos obstáculos estruturais ao desenvolvimento. A qualidade da educação, especialmente a educação pública e universal, a carência de infraestrutura econômica, a saúde e o déficit habitacional, talvez estejam entre os principais. Atingir outro patamar de desenvolvimento implica enfrentar esses desafios, sem o que, apenas crescer em termos econômicos não significará bem-estar para todos os brasileiros.
Apesar dos problemas apontados acima, se o país sustentar o atual ritmo de crescimento, entre 4,5% a 5%, nos próximos dez anos (ou até antes desse prazo), a economia brasileira vai se tornar a quinta maior do mundo. Nosso PIB ultrapassará, em tamanho, o da França e o da Inglaterra (embora tenhamos uma renda per capita bem menor).
Ainda que não se trate de competição entre países, tal fato representará uma espécie de encontro com nosso destino, já que temos a quinta ou sexta maior população do planeta (devemos ser ultrapassados pelo Paquistão em poucos anos).
 
Mudar o time que está ganhando?

Voltando ao tema central deste artigo, é necessário mudar a atual política econômica, que é a mesma política adotada na maioria dos países, sobretudo os emergentes? Ou, dito de outra forma, o atual tripé da política econômica dará sustentação ao crescimento e conduzirá o país a um novo patamar de desenvolvimento, alterando a distribuição de renda e riqueza em direção a mais igualdade?
A discussão sobre a atual política econômica, em senso estrito, dificilmente criará condições políticas para alterá-la, considerando os interesses internos e externos que trabalham para mantê-la. É necessário ampliar a dimensão do debate, trazendo ao palco público o tema do desenvolvimento nacional. Senão – dirão os pragmáticos e defensores da atual política – para que mexer em time que está ganhando, uma vez que o país está crescendo, gerando emprego, reduzindo o desemprego e, ainda que timidamente, a desigualdade da renda do trabalho?
A resposta para essa pergunta, no nosso entender, só é possível condicionando a discussão da política econômica ao debate mais amplo do desenvolvimento nacional. Resgatar a ideia de que a política econômica e as demais políticas correlatas (fiscal, tributária, cambial) devem estar subordinadas ao objetivo maior do desenvolvimento nacional e da distribuição da renda.
Na prática, significa dizer que as taxas reais de juros têm de cair para níveis internacionais (muito baixos), a moeda brasileira não pode continuar se apreciando e colocando em risco diversos setores, em particular o setor industrial. Por sua vez, a dimensão do gasto público deve considerar a superação dos principais problemas como erradicação da pobreza, qualidade da educação e da saúde, eliminação do déficit habitacional e construção da infraestrutura econômica.
Iniciemos pelos vergonhosos juros praticados no Brasil. Por que são tão altos? A que interesses respondem?
Certamente aos interesses do rentismo arraigado da parcela endinheirada da sociedade brasileira que deles se beneficia. É uma enorme simplificação, no debate econômico e político, “culpar” o Banco Central e seus diretores, que compõem o Copom,2 pelas decisões sobre o nível dos juros no Brasil. Ou “culpar” a ganância dos bancos que a cada ano apresentam lucros recordes nos seus balanços, influenciados por essas taxas exorbitantes. Sem dúvida, essas instituições contribuem para esse estado de coisas. Mas não devemos ignorar que juros altos refletem os interesses de alguns milhões de brasileiros, ou estrangeiros, que aplicam seus recursos no sistema financeiro brasileiro, inclusive os pequenos poupadores que, em geral, desconhecem a lógica de funcionamento de nosso sistema financeiro. O fato é que a forma de financiamento da nossa dívida pública acaba premiando os aplicadores no curto prazo. Ao contrário da maioria dos países, nos quais a maior rentabilidade das aplicações tem como contrapartida aplicações em títulos de longo prazo, no Brasil, o aplicador ou o especulador tem alto retorno em aplicações de curtíssimo prazo.
O desmonte dessa perversa engrenagem é inadiável. Mas só será feito com forte apoio da parcela da sociedade penalizada por esse modelo. E quem são os prejudicados por essa política de juros altos? Os trabalhadores que dependem do crescimento, dos investimentos e da geração de empregos; os micro e pequenos empresários que dependem de crédito barato para expandir seus negócios; a população mais carente que depende das políticas públicas de educação, saúde, seguridade social, habitação, transferência de renda e investimento público em infraestrutura. Não é possível ignorar o prejuízo para as políticas públicas que decorre do “rombo” que esses juros provocam no orçamento fiscal, forçando a manutenção de altos superávits e contenção de gastos, e limitando o uso desses recursos para fortalecer e ampliar essas políticas.
Nessa complexa teia de interesses, o poder de vocalização e pressão dos agentes envolvidos é muito assimétrico. Enquanto o interesse das altas finanças e do rentismo domina os principais meios de comunicação e defende a manutenção dos juros mais altos do mundo, atacando a voracidade de um Estado perdulário e endividado, os trabalhadores e a maioria da população que não aplica recursos no sistema financeiro não têm o mesmo poder de influência no debate público. Registre-se, contudo, que o movimento sindical e outras forças sociais, incluindo empresários do setor industrial, têm criticado insistentemente essa política nos últimos anos.
 
Outra dimensão importante do atual funcionamento da economia brasileira é a tendência de apreciação da moeda brasileira em relação ao dólar e às demais moedas (euro, iene, yuan, peso). Tudo se passa como se essa valorização fosse resultado “natural” do recente sucesso da economia brasileira. Explica-se essa tendência de valorização pelos êxitos do país em termos de crescimento.3 A boa performance da economia brasileira atrai investimentos externos em carteira (títulos, ações) e investimentos produtivos que pressionam a moeda brasileira para cima. Só não é dito que a total liberdade do fluxo de capitais, associada às mais altas taxas de juros do mundo, torna o Brasil o local mais atraente para aplicações estrangeiras de curto prazo. Aplicações que têm como lastro uma dívida pública líquida e um Estado solvente que não dá calote! Nessa situação é muito difícil impedir a valorização da moeda brasileira!
A taxa de câmbio não está dissociada, portanto, dos juros altos. Historicamente, é importante frisar, os países que se desenvolveram e atingiram níveis elevados de renda per capita utilizaram largamente instrumentos de proteção de sua indústria nascente e de seu espaço econômico. E, diga-se de passagem, até hoje o fazem. Casos como os da Alemanha e dos EUA são conhecidos na literatura econômica. Os exemplos recentes são ilustrativos. O mais importante é o da China, que mantém estrito controle sobre o valor, desvalorizado, de sua moeda. Exigir que países no estágio de desenvolvimento do Brasil abram seus mercados e valorizem sua moeda não é nem natural, nem utiliza como aprendizado a história de países que atingiram altos estágios de desenvolvimento.
 
Impostos: fonte de injustiças

Outro ponto da política econômica merece ser debatido no contexto de um projeto nacional de desenvolvimento. Trata-se da estrutura tributária brasileira. Virou lugar-comum falar mal da elevada carga tributária brasileira. Ela é mesmo alta, considerando a nossa renda por habitante. Destrinchar esse enigma da alta carga tributária é muito importante para o futuro do país.
No Brasil, as famílias e pessoas de alta renda pagam poucos impostos (quando pagam). Mais da metade da carga tributária brasileira (alguns estudos apontam cerca de 60%) é constituída por tributos indiretos que incidem no consumo e no faturamento das empresas. Os impostos sobre a renda e o patrimônio, embora justos em termos de equidade, são minoritários no bolo da arrecadação tributária. Mesmo no caso do imposto de renda, a maior parcela do montante arrecadado é constituída pelo imposto retido na fonte dos assalariados, e não das pessoas e famílias de renda mais alta.
Os impostos indiretos que incidem na circulação e no faturamento de bens e serviços são integralmente repassados para os preços, e pagos por toda a população. Nesse modelo, os que ganham menos pagam mais impostos, já que o valor do imposto cobrado do consumidor, de alta ou baixa renda, é o mesmo. É o Robin Hood às avessas, quem pode mais paga menos!
A estrutura do sistema tributário nacional tem tudo a ver com o recorrente debate sobre a competitividade da economia brasileira. Como os impostos indiretos estão embutidos nos preços dos bens e serviços, quanto mais dependente dos impostos indiretos é a arrecadação tributária, mais caros e menos competitivos são os produtos brasileiros, dificultando sua competitividade no comércio internacional. Uma profunda mudança do sistema tributário, que alterasse as bases da tributação, aumentando a arrecadação pela via dos impostos sobre a renda e o patrimônio, além da indiscutível justiça em tributar quem tem mais, teria enorme influência na competitividade internacional da economia brasileira.
Não há como negar que avançamos muito nos últimos anos no Brasil. O novo patamar de crescimento e de geração de empregos, as políticas de valorização do salário mínimo, transferência de renda, expansão do crédito, entre outras, foram escolhas importantes da sociedade e do governo federal para atingir esse novo estágio de desenvolvimento.
Caminhando para se transformar na quinta economia do mundo, o Brasil tem atraído as atenções. Os grandes eventos esportivos (Copa e Olimpíadas), a necessária e urgente recuperação da infraestrutura econômica e a descoberta do pré-sal têm criado condições para que sonhemos com um futuro promissor.
Nesse futuro, a imagem de um copo com água pela metade talvez sintetize nosso atual momento. Ou a frase “tão perto, tão longe” possa expressar os próximos desafios. Manter o crescimento acelerado vai introduzir tensões inevitáveis na legítima disputa pela renda nas próximas décadas. Um exemplo oportuno é o atual debate sobre os salários no Brasil. É difícil visualizar um país desenvolvido com os trabalhadores recebendo salários baixos. A trajetória do nosso desenvolvimento passa pela elevação da participação dos salários na renda nacional. Não há outro caminho.
Acompanhando os termos da discussão desse tema atualmente, os analistas de sempre dizem que os salários não podem crescer acima da produtividade. Não há como ignorar que a produtividade é um fator importante para viabilizar a elevação da renda per capita no Brasil. Mas, mantido o crescimento dos salários segundo a produtividade, teremos congelada a atual e injusta distribuição de renda.
Esse talvez seja o principal desafio do país nos próximos anos. Como aumentar os salários e manter a competitividade da economia brasileira? Reduzir a carga de juros, transformar a estrutura tributária e manter o câmbio em patamar competitivo é o caminho para que o país cresça, os salários subam e a distribuição de renda se modifique sem que as tensões dessa legítima disputa impeçam o desenvolvimento.

Clemente Ganz Lúcio é diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES.

Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça
Economista, técnico do DIEESE.

1 Não desconsideramos que o debate sobre o nível de renda per capita, ainda que importante, não deve ser realizado sem envolver a dimensão socioambiental.
2 Comitê de Política Monetária, instituído em 20 de junho de 2006, composto pela diretoria do Banco Central.
3 Atualmente, se essa fosse a única explicação, a moeda chinesa seria a mais valorizada do mundo!

Toquinho – I Concerti Live @ RTSI 8 Giugno 1983 (Áudio do DVD 2008)




Créditos: UmQueTenha

sábado, 9 de julho de 2011

Immanuel Wallerstein: Um tsunami sobre Israel

Os palestinos estão perseguindo seu projeto: obter reconhecimento formal de sua soberania pela ONU, cuja Assembleia Geral vai se reunir em setembro. Querem uma declaração de que seu Estado ocupa as fronteiras de 1967 – as de antes da guerra israelense-palestina. É quase certo que o voto será favorável.


Por Immanuel Wallerstein no VERMELHO

A única questão, no momento, é saber quão favoravel. A liderança política israelense está bem ciente disso. Discute três diferentes respostas. A posição dominante aparenta ser a do primeiro-ministro Netanyahu. Ele propõe ignorar totalmente tal resolução e simplesmente manter as políticas atuais. Netanyahu acredita que Israel ignorou com sucesso, por muito tempo, resoluções desfavoráveis adotadas pela Assembléia Geral. Por que agora seria diferente?

Há alguns políticos de extrema direita (sim, existe uma posição ainda mais à direita que Netanyahu) que propõem, em represália, a anexação formal, por Israel, de todos os territórios ocupados, encerrando qualquer negociação com os palestinos. Parte da extrema direita também quer forçar um êxodo de população não-judaica, a partir deste estado israelense expandido.

O ex-primeiro-ministro (e atual ministro da Defesa) Ehud Barak, cuja base política está agora quase extinta, adverte Netanyahu por estar sendo irrealista. Barak diz que a resolução da ONU será um tsunami para Israel; e que, portanto, Netanyahu deveria ter a sabedoria de fazer algum tipo de acordo com os palestinos, antes que a resolução passe.

Ehud Barak está certo? Será um tsunami para Israel? Há uma boa chance de que sim. Porém, há pouca chance real de que Netanyahu siga os conselhos de Barak e tente fazer com seriedade um acordo prévio com os palestinos.

Considere o que é provável na Assembléia Geral. Sabemos que a maioria (talvez todos) dos países da América Latina e uma parte dos países africanos e asiáticos votarão em favor da resolução. Sabemos que os Estados Unidos votarão contra e tentarão persuadir outros a votar também. Os votos incertos são os da Europa. Se os palestinos obtiverem um número significativo dos votos europeus, sua posição política será muito reforçada.

Os europeus votarão em favor da resolução? Isso dependerá em parte do que acontecer no mundo árabe nos próximos dois meses. Os franceses já sugeriram abertamente que apoiarão a resolução, exceto se virem negociações significativas entre Israel e Palestina (que não ocorrem no momento). É quase certo que os países nórdicos se juntem a eles. A posição da Grã-Bretanha, Alemanha e Holanda está mais indefinida. Se estes países decidirem apoiar a resolução, provavelmente puxarão vários países do leste europeu. Nesse caso, a resolução obterá uma vasta maioria dos votos na Europa.

Precisamos, portanto, olhar o que está acontecendo no Oriente Médio. A segunda revolta árabe ainda está em pleno andamento. Seria temerário prever exatamente quais regimes cairão e quais se aguentarão, nos próximos dois meses. O que parece estar claro é que os palestinos estão à beira de lançar uma terceira intifada. Até os mais conservadores entre eles parecem ter perdido a esperança de qualquer acordo com Israel. Esta é a mensagem clara do acordo entre o Fatah e o Hamas. Levando em conta que as populações de praticamente todos os estados árabes estão em plena revolta política contra seus regimes, como poderiam os palestinos permanecer relativamente tranquilos? Não ficarão em silêncio.

E se não permanecerem em silencio, o que os outros regimes árabes farão? Todos vivem tempos difíceis — para dizer o mínimo –, enfrentando as revoltas em seus próprios países. Apoiar taticamente a terceira intifada seria a posição mais fácil para eles, no esforço para recuperar o controle de seu próprio país. Que regime ousaria não apoiar uma terceira intifada? O Egito já se movimentou claramente rumo a esta postura. E o rei Abdullah da Jordânia deu a entender que também o fará.

Então, imagine a seqüência: uma terceira intifada, seguida pelo apoio árabe ativo, seguido por intransigência israelense. O que farão os europeus em seguida? É difícil vê-los recusar o voto a favor da resolução. Poderíamos facilmente chegar a uma votação em que apenas Israel, Estados Unidos e alguns poucos países minúsculos votariam contra a posição pró-Palestina, talvez com poucas abstenções.

Isso me parece um possível tsunami. Israel teme acima de tudo, nos últimos anos, a “deslegitimação”. Não seria essa votação precisamente o grau mais alto de deslegitimação? E o isolamento norte-americano não enfraqueceria ainda mais a posição de Washington no mundo árabe? O que farão, nesse caso, os Estado Unidos?

Fonte: Opera Mundi

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Professora do RN que criticou a educação recusa prêmio de empresários

Porque não aceitei o prêmio do PNBE

 

Nesta segunda,o Pensamento Nacional de Bases Empresariais (PNBE) vai entregar o prêmio "Brasileiros de Valor 2011". O júri me escolheu, mas, depois de analisar um pouco, decidi recusar o prêmio.
Mandei essa carta aí embaixo para a organização, agradecendo e expondo os motivos pelos quais não iria receber a premiação. Minha luta é outra.
Espero que a carta sirva para debatermos a privatização do ensino e o papel de organizações e campanhas que se dizem "amigas da escola".
Amanda


Natal, 2 de julho de 2011

Prezado júri do 19º Prêmio PNBE,

Recebi comunicado notificando que este júri decidiu conferir-me o prêmio de 2011 na categoria Educador de Valor, “pela relevante posição a favor da dignidade humana e o amor a educação”. A premiação é importante reconhecimento do movimento reivindicativo dos professores, de seu papel central no processo educativo e na vida de nosso país. A dramática situação na qual se encontra hoje a escola brasileira tem acarretado uma inédita desvalorização do trabalho docente. Os salários aviltantes, as péssimas condições de trabalho, as absurdas exigências por parte das secretarias e do Ministério da Educação fazem com que seja cada vez maior o número de professores talentosos que após um curto e angustiante período de exercício da docência exonera-se em busca de melhores condições de vida e trabalho.

Embora exista desde 1994 esta é a primeira vez que esse prêmio é destinado a uma professora comprometida com o movimento reivindicativo de sua categoria. Evidenciando suas prioridades, esse mesmo prêmio foi antes de mim destinado à Fundação Bradesco, à Fundação Victor Civita (editora Abril), ao Canal Futura (mantido pela Rede Globo) e a empresários da educação. Em categorias diferentes também foram agraciadas com ele corporações como Banco Itaú, Embraer, Natura Cosméticos, McDonald's, Brasil Telecon e Casas Bahia, bem como a políticos tradicionais como Fernando Henrique Cardoso, Pedro Simon, Gabriel Chalita e Marina Silva.

A minha luta é muito diferente dessas instituições, empresas e personalidades. Minha luta é igual a de milhares de professores da rede pública. É um combate pelo ensino público, gratuito e de qualidade, pela valorização do trabalho docente e para que 10% do Produto Interno Bruto seja destinado imediatamente para a educação. Os pressupostos dessa luta são diametralmente diferentes daqueles que norteiam o PNBE. Entidade empresarial fundada no final da década de 1980, esta manteve sempre seu compromisso com a economia de mercado. Assim como o movimento dos professores sou contrária à mercantilização do ensino e ao modelo empreendedorista defendido pelo PNBE. A educação não é uma mercadoria, mas um direito inalienável de todo ser humano. Ela não é uma atividade que possa ser gerenciada por meio de um modelo empresarial, mas um bem público que deve ser administrado de modo eficiente e sem perder de vista sua finalidade.

Oponho-me à privatização da educação, às parcerias empresa-escola e às chamadas “organizações da sociedade civil de interesse público” (Oscips), utilizadas para desobrigar o Estado de seu dever para com o ensino público. Defendo que 10% do PIB seja destinado exclusivamente para instituições educacionais estatais e gratuitas. Não quero que nenhum centavo seja dirigido para organizações que se autodenominam amigas ou parceiras da escola, mas que encaram estas apenas como uma oportunidade de marketing ou, simplesmente, de negócios e desoneração fiscal.

Por essa razão, não posso aceitar esse Prêmio. Aceitá-lo significaria renunciar a tudo por que tenho lutado desde 2001, quando ingressei em uma Universidade pública, que era gradativamente privatizada, muito embora somente dez anos depois, por força da internet, a minha voz tenha sido ouvida, ecoando a voz de milhões de trabalhadores e estudantes do Brasil inteiro que hoje compartilham comigo suas angústias históricas. Prefiro, então, recusá-lo e ficar com meus ideais, ao lado de meus companheiros e longe dos empresários da educação.

Saudações,

Professora Amanda Gurgel

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Para a crítica do capitalismo

Escrito por Duarte Pereira   no Correio da Cidadania

A Boitempo Editorial, numa iniciativa conjunta com a Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acaba de lançar a primeira tradução brasileira integral da obra de Karl Marx, celebrizada como Grundrisse (em português, Esboços ou Fundamentos para a crítica da economia política). Uma tradução brasileira da parte desses manuscritos relativa às chamadas Formen (ou Formações econômicas pré-capitalistas) já fora publicada pela Editora Paz e Terra em 1975, com importante introdução escrita pelo historiador britânico Eric Hobsbawn.

Os Grundrisse reúnem manuscritos redigidos por Marx em 1857 e 1858, no andamento de sua monumental investigação crítica do novo modo de produção e da nova formação social – capitalistas – que emergiam e se desenvolviam na Europa, assim como das primeiras interpretações dessa nova economia e dessa nova sociedade, feitas de um ângulo burguês, pelos economistas denominados clássicos, como Adam Smith e David Ricardo.

Aos Grundrisse, mantidos inéditos por Marx, se seguiria a Contribuição à crítica da economia política, publicada em 1859, e, num nível incomparavelmente superior de elaboração, o primeiro volume de O capital, publicado em 1867. Como se sabe, o 2º e o 3º volumes de O capital somente seriam publicados em 1885 e 1894, respectivamente, organizados e editados por Engels após a morte de Marx. O 4º volume, mais conhecido como Teorias da mais-valia ou como História crítica das doutrinas econômicas, reunindo os rascunhos escritos por Marx entre 1861 e 1863, seria organizado e editado por Karl Kautsky em vários tomos publicados entre 1905 e 1910. Existe uma edição brasileira integral dessa obra, traduzida diretamente do alemão por Reginaldo Sant’Anna e lançada pela Editora Civilização Brasileira em 1980.

Ao ler os Grundrisse, é preciso não perder de vista dois comentários feitos pelo próprio Marx, um ressaltando sua importância e outro alertando para seus limites. Primeiro, que os manuscritos foram “o resultado de 15 anos de pesquisa, ou seja, dos melhores anos de minha vida”. E segundo, que “as monografias foram escritas em períodos muito diversos, para meu próprio esclarecimento, não para publicação”. A maioria dos temas e das teses dos Grundisse seria reelaborada nas obras posteriores de Marx, principalmente em O capital, com mais rigor e cuidado no que diz respeito ao conteúdo e à forma e levando em conta o avanço das investigações do autor. Algumas passagens dos Grundisse não seriam reescritas por Marx, nem incorporadas a suas obras posteriores, talvez porque ele sentisse a necessidade de aprofundá-las.

A publicação da primeira edição integral em português dos Grundrisse, traduzida diretamente dos originais alemães por Mário Duayer e um grupo de colaboradores, representa um marco na história da cultura brasileira e uma contribuição muito importante para o estudo especializado e histórico-crítico do marxismo.

Quem ler esses manuscritos seminais com a mente despojada de preconceitos terá a oportunidade de verificar como permanece atual, em suas linhas essenciais, a crítica de Marx ao capitalismo e ao pensamento econômico burguês, feita do ponto de vista dos trabalhadores destituídos de meios modernos de produção e forçados a assalariar-se. 

Ficha técnica

Título: Grundrisse
Subtítulo: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política
Título original: Karl Marx Ökonomische Manuskripte 1857/58
Autor: Karl Marx
Tradução: Mario Duayer, Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman
Supervisão editorial e apresentação: Mario Duayer
Orelha: Jorge Grespan
Quarta capa: Francisco de Oliveira
Páginas: 792
Preço: R$ 79,00
ISBN: 978-85-7559-172-7
Editoras: Boitempo e UFRJ 
Duarte Pereira, 72 anos, é jornalista e escritor.
 
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“Inauguramos um novo momento na Educação Gaúcha”, diz Azevedo no 1º Encontro de Avaliação


O secretário de Estado da Educação, Prof. Dr. Jose Clovis de Azevedo, abriu o 1º Encontro de Avaliação das Coordenadorias Regionais de Educação, na manhã desta quinta-feira (7), no auditório da Caixa Econômica Federal, em Porto Alegre. Azevedo apresentou um diagnóstico das condições políticas e estruturais encontradas pela nova gestão. “Depois de oito anos de neoliberalismo, inauguramos um novo momento na Educação Gaúcha. Nossa concepção de Estado parte do princípio da equidade, onde o Estado tem a obrigação de garantir que todos tenham seus direitos atendidos, e não aumentar as disparidades entre a população”, disse o secretário ao iniciar seu pronunciamento.

Entre os principais pontos relatados: ausência de um centro de reflexão e produção de políticas e propostas para a atividade fim; fragmentação da gestão; ausência de planejamento; terceirização das obrigações do Estado, incluindo o programa de alfabetização; isolamento do governo federal; inexistência de diálogo com os professores e comunidades; priorização dos aspectos quantitativos em detrimento dos aspectos qualitativos e o fechamento de 435 escolas sem políticas para a Educação no campo.

Após, informou os avanços da Seduc nos primeiros seis meses de sua gestão, como: o reajuste de 10,91% que baixou de 66% para 50% a diferença salarial para a integralização do piso nacional; a revogação da ordem de serviço que impedia a participação dos professores em eventos de formação no horário de expediente; os seminários de formação regionais que já mobilizaram 24 mil docentes; a liberação de professores para os núcleos do CPERS, além da realização de concurso público neste ano.

O secretário também apresentou as metas para o próximo semestre, entre elas: a expansão do ensino médio, a ampliação dos programas de formação tanto para professores sem formação superior como para 2ª licenciatura e a formação continuada; a execução de 264 obras de ampliação e reforma das escolas somando R$ 61 milhões; a modernização tecnológica através do projeto piloto Santa Tecla em Bagé e avanço no regime de colaboração com os municípios para a resolução da questão do transporte escolar.

Também reafirmou o compromisso de que não
haverá mudanças no plano de carreira e sim um diálogo para alterações nos critérios de avaliação para a promoção dos professores, e que o piso nacional será integralizado durante os quatros anos de governo.

As atividades seguiram com o relato das coordenadorias com a apresentação do histórico administrativo e pedagógico percorrido até o momento. Os relatos seguem no período da tarde, que também terá a avaliação dos avanços da Seduc pelo chefe da Casa Civil, Carlos Pestana. 
 
Fonte: SEDUC

terça-feira, 5 de julho de 2011

Bicentenário da libertação da Venezuela é comemorado em Brasília



O bicentenário da libertação da Venezuela foi comemorado em Brasília pela Embaixada da Venezuela no Brasil. O embaixador, Maximilien Arvelaiz, recebeu autoridades diplomáticas, parlamentares e a comunidade venezuelana para uma solenidade, com ares de festa, na manhã desta terça-feira (5). E destacou, em seu rápido discurso, a alegria do povo venezuelano de ter o presidente Hugo Chávez de volta ao país para comemorar a data.



Lula Lopes no VERMELHO



Embaixador coloca flores no busto de Simon Bolívar.



A embaixada montou um toldo no pátio em frente ao busto de Simon Bolívar para a solenidade. Após a execução dos hinos nacionais – brasileiro e venezuelano – o embaixador colocou um buquê de flores aos pés da estátua. No breve discurso, disse que a história não se acaba, que é preciso continuar a luta para consolidar e defender a nossa sociedade e a América.






Citando os heróis de ontem, como Simon Bolívar e José Martí, ele lembrou que a luta de hoje enfrenta rechaços, intrigas e traições e a franca resistência de ontem persiste hoje na luta pela América livre.



O embaixador venezuelano lamentou o adiamento da Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (Celac), sobre Integração e Desenvolvimento, que deveria começar nesse dia 5 de julho devido ao estado de saúde do presidente Hugo Chávez. Mas garantiu que ele vai acontecer, destacando a importância da entidade para a integração da região e para atingirr a independência definitiva.



Maximilien Arvelaiz agradeceu aos convidados pela presença e pela preocupação com o estado de saúde de Chavez. “El está bien”, disse o embaixador.



O embaixador encerrou o discurso convidando os brasileiros a compartilhar a arte venezuelana. Após a solenidade, foi aberta a exposição de bonecas de pano “O que aprendi com a mamãe”, da artista Amada Rojas Vargas. O embaixador destacou ainda, como parte da programação do bicentenário da Venezuela, o jantar harmonizado do ‘chef’ venezuelano Eduardo Castañeda, no Mercado Municipal, na Asa Sul, nesta quarta-feira (6), a partir das 19 horas; e o show musical, de quarta a sexta-feira ( 6 a 8) com Caracas Sincrónica & Luisana Perez, em vários locais de Brasília.


Márcia Xavier

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Dirigente do MST: Mais de 24 mil escolas foram fechadas no campo

“Fechamento de 24 mil escolas do campo é retrocesso”, afirma dirigente do MST

por Luiz Felipe Albuquerque, da Página do MST

Mais de 24 mil escolas no campo brasileiro foram fechadas no meio rural desde 2002. O fechamento dessas escolas demonstra o drástico problema na vida educacional no Brasil, especialmente no meio rural.
Após décadas de lutas por conquistas no âmbito educacional, cujas reivindicações foram atendidas em parte – o que permitiu a consolidação da pauta – o fechamento das escolas vão no sentido contrário do que parecia cristalizado.
Nesse quadro, o MST lançou a Campanha Nacional contra o Fechamento de Escolas do Campo, que pretende fazer o debate sobre a educação do campo com o conjunto da sociedade, articular diversos setores contra esses retrocessos e denunciar a continuidade dessa política.
“O fechamento das escolas no campo nos remete a olhar com profundidade que o que está em jogo é algo maior, relacionado às disputas de projetos de campo. Os governos têm  demonstrado cada vez clara a opção pela agricultura de negócio – o agronegócio – que tem em sua lógica de funcionamento pensar num campo sem gente e, por conseguinte, um campo sem cultura e sem escola”, afirma Erivan Hilário, do Setor de Educação do MST.
Essas escolas foram fechadas por estados e os municípios, mas o Ministério da Educação também têm responsabilidade. “Não se têm, por exemplo, critérios claros que determine o fechamento de escolas, que explicitem os motivos pelos quais se fecham, ou em que medida se pode ou não fechar uma escola no campo”, aponta Erivan.
Ele apresenta um panorama do atual momento pelo qual passa a educação do campo, apontando desafios, lutas e propostas. Abaixo, leia a entrevista.
Como se encontra a educação no campo brasileiro, de um modo geral?
Vive momentos bastantes contraditórios. Se por um lado, na última década, avançou do ponto de vista de algumas conquistas e iniciativas significativas no campo educacional, como no caso da legislação e das políticas públicas – a exemplo das diretrizes operacionais para educação básica nas escolas do campo, aprovada em 2002, e tantas outras resoluções do conselho nacional, como o custo aluno diferenciado para o campo e as licenciaturas em Educação do Campo – por outro percebemos que os fechamentos das escolas no campo caminham na contramão desses avanços, conforme demonstram vários dados das próprias instituições do governo. Desde 2002 até 2009, foram fechadas mais de 24 mil escolas no campo. Com isso, voltamos ao início da construção do que hoje chamamos de Educação do Campo, que foi a luta dos movimentos sociais organizados no campo, mais particularmente, o MST, contra a política neoliberal de fechamento das escolas.
A que se deve o fechamento das escolas no campo?
O fechamento das escolas no campo nos remete a olhar com profundidade que o que está em jogo é algo maior, relacionado às disputas de projetos de campo. Os governos têm  demonstrado cada vez mais a clara opção pela agricultura de negócio – o agronegócio – que tem em sua lógica de funcionamento pensar num campo sem gente e, por conseguinte, um campo sem cultura e sem escola.
Nesse sentido, os camponeses e os pequenos agricultores têm resistido contra esse modelo que concentra cada vez mais terras e riqueza, com base na produção que tem como finalidade o lucro. Nessa lógica, os camponeses são considerados como “atraso”. Por isso, lutar contra o fechamento das escolas tem se constituído como expressão de luta dos camponeses, de comunidades contra a lógica desse modelo capitalista neoliberal para o campo.
Quais os objetivos da Campanha Nacional contra os Fechamentos das Escolas do Campo?
O primeiro grande objetivo é fazermos um amplo debate com a sociedade, tendo em vista a educação como um direito elementar, consolidado, na perspectiva de que todos possam ter acesso. O que precisamos fazer é justamente frear esse movimento que tem acontecido, do fechamento das escolas do campo, sobretudo no âmbito dos municípios e dos estados.
Pensar isso significa garantir esse direito tão consolidado no imaginário social, como uma conquista social à educação, garantir que as crianças e os jovens possam se apropriar do conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, que esse conhecimento esteja vinculado com sua prática social e que, sobretudo, esse conhecimento seja um mecanismo de transformação da vida, de transformação para que ela seja cada vez mais plena, cada vez mais solidária e humana.
Colado a isso, temos que fazer esse debate da educação como um direito básico, e que nós não podemos – do ponto de vista da sociedade – dar passos para trás nesse sentido, ao negar esse direito historicamente consolidado.
A educação do campo nasce como uma crítica a situação da educação brasileira no campo. E essa situação na época revelava justamente o fechamento das escolas no campo e o deslocamento das crianças, de jovens e de adultos do campo para a cidade.
Qual o significado do fechamento dessas escolas?
Passado mais de 12 anos do que chamamos de educação do campo, dentro dessa articulação que foi surgindo pela garantia de direitos, de crítica à situação do campo brasileiro, vemos esse movimento na contramão, mesmo já tendo conquistado várias políticas públicas no âmbito educacional. É preciso que não percamos de vista essa luta pela educação no campo. Essa luta passa, essencialmente, pela defesa de melhores condições de trabalho, das condições das estruturas físicas das escolas e pela conquista de mais escolas para atender a grande demanda do campo brasileiro.
A região Nordeste representou mais da metade do total de estabelecimentos fechado nos últimos anos. Por quê?
No Nordeste é onde ainda está concentrada a maior parte da população no campo. Por isso, é maior o impacto nessa região. A exemplo, a maioria das famílias em projetos de assentamentos de Reforma Agrária estão no Nordeste. É onde se fecha mais escola e continua sendo uma região que apresenta baixos níveis de escolaridade da população no quadro geral brasileiro.
A educação é um direito básico que está consolidado no imaginário popular como conquista dos movimentos sociais, da população brasileira, mas tem sido negado. Isso configura um retrocesso histórico em meio aos avanços tidos no âmbito educacional, a exemplo das resoluções do Conselho Nacional de Educação, que assegura que os anos iniciais do ensino fundamental sejam ofertados nas comunidades.
No caso dos anos finais, caso as crianças e jovens tenham que se deslocar, que consigam ir para outras comunidades no próprio campo – o que chamam de intra-campo -, mas somente após uma ampla consulta e debate com os movimentos sociais e as comunidades.
Como trabalhar essa questão nacionalmente tendo em vista que a maioria das escolas que foram fechadas é de responsabilidade dos municípios?
Os dados de fato apontam que são os estados e os municípios que tem fechado. Não poderia ser diferente, já que são estes entes federados que ofertam de maneira geral a educação básica nesse país, cada qual assumindo suas responsabilidades.
Em geral, os municípios têm assumido a educação infantil e o ensino fundamental, e tem ficado cada vez mais para os estados a responsabilidade sobre o ensino médio. O Ministério da Educação tem também responsabilidade pelo fechamento dessas escolas, até porque estamos falando de um espaço de Estado que é a expressão máxima de instituição responsável pela educação no país.
Não se tem, por exemplo, critérios claros que determine o fechamento de escolas, que explicitem os motivos pelos quais se fecham, ou em que medida se pode ou não fechar uma escola no campo.
A escola em um determinado município faz parte de uma rede maior que são as escolas públicas brasileiras. É nessa visão de país que temos que pensar. É preciso garantir que a população do campo tenha acesso ao conhecimento elaborado e que este acesso seja possível no território em que eles vivem.
De qual maneira a luta pela Reforma Agrária se alinha com a luta pela educação?
Quando falamos de luta pela Reforma Agrária, estamos nos referindo a uma luta pela conquista de direitos como o da terra e as condições necessárias para trabalhar e viver, como o direito à educação. Com isso, vinculamos permanentemente à questão do processo educacional à Reforma Agrária, pois pensar um projeto de campo e de país, fundamentalmente, passa também por pensar um projeto de educação.
A história do nosso movimento demonstra que é necessário fazer a luta pela terra paralelamente à luta por outros direitos, como educação, cultura, comunicação. Viver no campo é exigir cada vez mais conhecimento – saber elaborado – para poder viver bem e melhor, cuidando da terra e da natureza e cultivando alimentos saudáveis para toda a sociedade brasileira.
Quais são as propostas do MST para a educação do campo?
Primeiro, que o direito à educação deixe de ser apenas um direito formal, que seja direito real das pessoas que vivem no campo, no sentido de terem em seus territórios acesso à educação e à escola tão necessária e importante como para os que vivem na cidade.
O acesso ao conhecimento não deve ser moeda de troca, em que os que necessitam tenham que comprar, algo tão fortemente presenciado na educação privada. Que possamos seguir lutando para que nenhuma outra escola seja fechada no campo ou na cidade. Temos que seguir lutando cada vez mais para garantir na realidade questões como a ampliação e construção de mais escolas no campo; com acesso a toda educação básica e suas modalidades de ensino; acesso à ciência e à tecnologia, vinculados aos processos de produção da vida social no campo e seus diversos territórios camponeses, de pequenos agricultores.
Além disso, lutamos para assegurar a formação inicial e continuada dos educadores nas diversas áreas do conhecimento para atuação na educação básica, uma vez que são mais de 200 mil educadores no campo sem formação superior; garantir educação profissional técnica de nível e superior; e que se efetive uma política pública com a participação efetiva das comunidades camponesas, dos movimentos sociais do campo.
Qual a importância de que essas escolas sejam voltadas para o campo? Ou seja, que sejam escolas do campo?
Estamos falando de um princípio básico que é da produção da existência dos sujeitos do campo. Os camponeses, os trabalhadores rurais, produzem resistência nesse espaço, nesse território. Portanto, o processo educacional que defendemos é que, além de acessar uma base comum do ponto de vista do conhecimento, precisamos que as escolas que estejam situadas no campo possam incorporar dimensões importantes da vida dos camponeses. Da dimensão do trabalho, da cultura e, fundamentalmente, da dimensão da luta social – algo que é constante no campo brasileiro. Nas últimas décadas, vivemos com o avanço do agronegócio, do capital no campo, que tem se intensificado cada vez mais e tem expulsado os trabalhadores e trabalhadores que ali vivem. Há uma resistência no campo, são os trabalhadores, as comunidades camponesas lutando contra esse modelo. E a escola, de certa maneira, precisa incorporar na organização de seu trabalho pedagógico essas tensões e contradições que constituem a realidade no campo brasileiro.

domingo, 3 de julho de 2011

Sigilo eterno


Como teria sido importante o povo brasileiro ter direito à transparência histórica!


Frei Betto no BrasilDefato

Encerrado o apocalipse, julgados vivos e mortos na grande assembleia universal do Vale de Jericó, Matusalém e Noé, encarregados do rescaldo final, encontraram nos escombros de Brasília, espalhados entre ruínas dos ministérios, os arquivos ultrassecretos da República.
― Veja só, Noé, esses aqui trazem o carimbo de “sigilo eterno”.
― Eterno!? Essa gente não deu ouvidos ao que disse Jesus, que tudo aquilo que se passasse às ocultas seria proclamado nos telhados? Do que as autoridades brasileiras se envergonhavam? – indagou o ancião da arca.
― Vejamos esses papéis aqui. Tratam da Guerra do Paraguai. Eis o relatório da atuação do comandante Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias... Nossa, Noé, que coisa!... Como os soldados brasileiros foram cruéis com os paraguaios!
― Soldados, Matusalém!? Leia isto aqui: escravos arregimentados sob a promessa de uma liberdade que nunca veio. A maioria teve a morte como prêmio de combate.
― Nossa, Noé, e o Barão do Rio Branco! Como ele ousou ampliar assim, na cara de pau, as fronteiras do Brasil!?
― É, Matu, por isso há quem, no Itamaraty, prefira que os documentos fiquem à sombra das barbas do barão. A história se faz entre heroísmos e baixarias. Só que sempre foi escrita pelos vencedores, jamais pelas vítimas. Isso de “sigilo eterno” foi para jogar as infâmias pra debaixo do tapete.
― Veja isso aqui, Noé, os arquivos da ditadura militar. Repare neste mapa: assinala quando, quem, como e onde foram presas, torturadas e assassinadas as vítimas cujos corpos jamais foram localizados e pranteados por suas famílias. E ainda constam os nomes dos militares que participaram de torturas, assassinatos e seqüestros.
― Matu, e este documento aqui, que vergonha!
― Vergonha por quê?
― São os “decretos secretos” da ditadura. Como um documento público, o decreto, pode ser secreto? Isso é o mesmo que alguém se apresentar como ladrão honesto...
― Ora, Matu, vergonhosos são esses papéis que tratam dos governos Sarney e Collor.
― O que há de interessante neles?
― São dados estarrecedores! Quanta sujeirada em tantos governos do Brasil! Haja tráfico de influência, corrupção, nepotismo e favorecimentos. Agora compreendo por que as autoridades brasileiras sonegaram aos historiadores tantos períodos e fatos da história do Brasil!
― Naquela pasta ali – disse Noé – estão as licitações secretas da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil. Haja maracutaia! Obras que ficariam em quinhentos foram multiplicadas por bilhões!
― Pena que o mundo acabou, a história findou e toda essa gente virou pó. Como teria sido importante o povo brasileiro ter direito à transparência histórica! Com certeza teria evitado que a nação repetisse tantos erros e reelegesse aqueles que distorceram os fatos e os encobriram para perpetuarem uma boa imagem que jamais mereceram.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira”, entre outros livros.

Trabalho escravo na extração de erva mate



 Tomado de AGECON – Integrante da RPCC – Rede Popular Catarinense de Comunicação

Força-tarefa flagra trabalho em condições degradantes em SC

Uma força-tarefa formada pela Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Polícia Federal encontrou, na última terça (28/6), trabalhadores em condições degradantes no município de Concórdia, no oeste de Santa Catarina, trabalhando na extração de erva-mate.
O grupo de três auditores-fiscais do trabalho, dois policiais federais, uma procuradora do trabalho, um oficial de justiça, além do juiz titular da vara do trabalho local, Adilton José Detoni, realizou inspeção judicial na localidade de Linha Santa Terezinha para verificar uma denúncia de trabalho escravo na extração de erva-mate.
Logo na chegada, a equipe encontrou cinco trabalhadores, um deles menor de idade, alojados em uma barraca rústica coberta por lona preta, sustentada por taquaras e galhos de árvores. A parte dos fundos era utilizada como dormitório, com colchões e cobertores sobre o chão de terra. Na parte da frente da barraca, aberta e sem lona, havia uma fogueira acesa, uma caixa de madeira com gêneros alimentícios, galão plástico com água, alguns facões, panelas, pratos e copos sobre outra estrutura feita de galhos e taquaras.
Os trabalhadores foram identificados e informaram que utilizavam o mato para as necessidades fisiológicas, e a água do riacho existente nas proximidades para banho e consumo. Recebiam em média R$ 15 por dia de trabalho na extração de erva-mate destinada à Ervateira Tiecher, do município de Vargeão. Todos oriundos do município de Ponte Serrada, disseram estar a serviço de um senhor de nome Librante, identificado pelos trabalhadores como sendo o capataz que chegou ao local algum tempo depois, acompanhado de mais cinco trabalhadores.
Lavrado o auto de inspeção, todos foram intimados a comparecer à VT de Concórdia.

Ajustamento de Condutas

Na audiência, diante do trabalho em condições degradantes flagrado pela força- tarefa, os envolvidos, incluindo o dono da terra onde o trabalho era realizado, chegaram a dois compromissos de ajustamento de conduta (TACs) destinados a sanar as irregularidades verificadas. Também se chegou a um acordo para pagamento das verbas trabalhistas devidas e de indenização por dano moral coletivo.

Imagem tomada de /www.clauderioaugusto.com.br

Os três níveis de homofobia



Eduardo Guimarães em seu Blog da Cidadania

Antes de abordar estudo científico que afirma ter isolado a causa maior daquela que talvez seja a última grande enfermidade social à qual a humanidade não dedica maiores e suficientes esforços para tratar – e que, por isso, é hoje a pior enfermidade dessa natureza -, há que definir o que é homofobia e apontar suas ramificações.
A principal característica dessa enfermidade psicossocial talvez seja a de se constituir em uma das raras doenças sociais com potencial para se transformar em doença mental. Isso porque a homofobia se manifesta em graus de intensidade que podem evoluir, ainda que, uma vez acometido por ela, entende-se que o indivíduo não consegue se curar completamente.
Durante o mês passado, travei longos debates com homofóbicos de várias faixas etárias, gêneros, condição social, origem geográfica e escolaridade. Entre esses grupos, segundo minhas anotações, o grau de homofobia variou entre o que chamarei de níveis dissimulado, aberto e obsessivo.
O nível de homofobia dissimulado começa o seu discurso contra os homossexuais ressalvando que não apóia a violência contra eles e negando ser preconceituoso. Dali em diante, desata a pregação que está por trás dos ataques de violência física de que os homossexuais vêm sendo alvo com freqüência e em quantidade cada vez maiores.
De 2007 para cá, o número de assassinatos de homossexuais causados por repulsa obsessiva à sua orientação sexual cresceu impressionantes 62%. E o que vem impulsionando esses ataques é o levante do grupo de homofóbicos abertos. Esse grupo é o mais perigoso porque trata de tecer todo um discurso “racional” para justificar um delírio psicossocial.
Os dissimulados não admitem que são preconceituosos. São vítimas passivas da homofobia por conta de baixa escolaridade ou por educação familiar preconceituosa, que se origina na baixa escolaridade dos pais ou avós. Este grupo se abstém de traficar preconceito. Contudo, se inquirido diz exatamente o mesmo que os outros grupos.
Os níveis aberto e obsessivo de homofobia ocorrem com maior freqüência entre adeptos da ideologia política conservadora (direita). Já à esquerda do espectro político, é mais comum encontrar homofóbicos passivos, pacientes do nível dissimulado da homofobia. A homofobia, porém, ocorre com muito maior freqüência à direita.
O nível aberto de homofobia é minoria na sociedade e maioria entre os homofóbicos. Este grupo trata de fazer campanha contra direitos para homossexuais e causa pânico veiculando a hipótese da “contaminação gay”. Esse discurso afeta pacientes dos níveis dissimulado, aberto e obsessivo com menor escolaridade e gera os atos de violência homofóbica.
O nível obsessivo é vinculado a ideologias nazistas e fascistas que se aliaram à extrema-direita brasileira e que, além de homofóbicas, são racistas. Esse grupo adota a prática da intimidação dos homossexuais. A idéia por trás da violência que pratica contra eles é a de induzi-los a esconder a própria natureza por medo.
A ciência já identificou a principal origem da homofobia. Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, a variável que mais determina o nível de homofobia é a escolaridade. Há uma grande diferença de preconceito entre quem nunca foi à escola e quem concluiu o ensino superior (em %). Vejam o gráfico abaixo.
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É improvável que se cure a homofobia a curto prazo. Através de leis como a do racismo será possível conter os níveis aberto e obsessivo dessa enfermidade psicossocial, mas o nível dissimulado sempre existirá. O que se pode fazer para reduzir drasticamente o problema, portanto, é melhorar a educação no Brasil.

Entre o novo e o velho mundo: reação e contra-reação hegemônica

Por Cristina Soreanu Pecequilo
 
Os Estados Unidos enfrentam gradual perda de espaços estratégicos, proporcionais a sua crise e à vitalidade das “novas nações”. Mesmo que lenta, e até negada pelos que discordam das hipóteses do declínio, esta redução de projeção e de eficiência é concreta, caracterizada por um avanço gradual das nações emergentes em alianças de geometria variável, organizações internacionais governamentais e em zonas de influência tradicionais do ocidente com a América Latina e África.

Enquanto a sociedade norte-americana e a europeia continuam dando sinais de desgaste, os emergentes ocupam espaços econômicos e políticos. Neste cenário destacam-se a eleição de José Graziano da Silva como chefe da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a presença de Lula como chefe da Missão Diplomática na África para a 17ª Assembléia da União Africana, a inclusão da África do Sul nos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), dentre outros. Com isso, os Estados Unidos enfrentam gradual perda de espaços estratégicos, proporcionais a sua crise e à vitalidade das “novas nações”.

Mesmo que lenta, e até negada pelos que discordam das hipóteses do declínio, esta redução de projeção e de eficiência é concreta, caracterizada por um avanço gradual das nações emergentes em alianças de geometria variável, organizações internacionais governamentais e em zonas de influência tradicionais do ocidente com a América Latina e África. No Oriente Médio observam-se as Primaveras Árabes e a dificuldade em sustentar no poder regimes aliados autoritários, controlar as transições posteriores depois da queda destes aliados e, em países não aliados, acelerar as movimentações populares para recuperar espaços como na Líbia ou na Síria. Independente do desfecho que venha a ter a situação de Kadafi na Líbia, incluindo o recente mandato para sua prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional, é patente a dificuldade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Desde a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (em votação na qual os emergentes se abstiveram, Brasil, Rússia, Índia e China, ao lado da Alemanha), a OTAN tem bombardeado fortemente o território líbio, sem solução decisiva, subestimando a resistência do regime vigente.

Frente a esta realidade, desde a morte de Osama Bin Laden em maio de 2011, o Presidente Barack Obama tem empreendido uma significativa ofensiva externa, acompanhado pela Secretária de Estado Hillary Clinton. Tal ofensiva, além de representar um reposicionamento tático da administração democrata visando ocupar espaços internos diante da fragmentada oposição republicana, demonstra uma real preocupação dos EUA com a crescente perda de espaços estratégicos.

A ofensiva, entre maio e junho, consistiu-se em quatro frentes, em ordem cronológica: Oriente Médio e Norte da África, emergentes, África e Afeganistão. Comum a todas, a “disposição” norte-americana em ajudar aliados democráticos, mas, ao mesmo tempo, em reafirmar liderança. Outro fator de convergência é a resposta aos emergentes. Em termos específicos, a preocupação em sinalizar ao público doméstico que as ações externas não significam desatenção aos problemas internos, mas que a América precisa continuar presente no mundo.

No que se refere ao Oriente Médio e Norte da África, o discurso de Obama em 19 de maio de 2011, ecoou o de janeiro de 2009 sobre a importância da democracia na região, sob o signo de uma realidade diferenciada. Se em 2009 a região mantinha-se à margem dos movimentos populares, em 2011, a mesma tornou-se foco de renovadas dimensões sociais, muitas contrárias aos interesses norte-americanos como no caso do Egito. Obama procurou recuperar a influência na região, por meio de propostas de parcerias comerciais e um “Plano Marshall” para o desenvolvimento local. Retomou a iniciativa no processo de paz Israel-Palestina por meio da proposta de constituição do Estado palestino nas fronteiras pré-Guerra de 1967, sustentada na resolução 242 da ONU. A proposta, mesmo pelos palestinos, foi recebida com desconfiança, e, em Israel e nos EUA, sob protestos, o que a coloca em xeque. Uma proposta real? Ou uma tentativa de desacelerar o processo de reaproximação entre facções palestinas, Hamas e Fatah?

Somado a estes questionamentos, mencionou-se a ausência da Árabia Saudita no texto, que recebeu diversas interpretações: a permanência da tolerância com o regime ou um “recado” indireto pedindo mudanças pró-democracia?

O tom “propositivo e positivo” foi substituído por Obama e, depois Hillary Clinton, por “alertas” aos emergentes e sobre os mesmos. No primeiro caso, diante do Parlamento britânico em 25 de maio, o presidente deixou claro que os EUA não se encontram em declínio e que a ascensão da China, Índia e Brasil é condicionada à hegemonia. O argumento central é que sem a liderança prévia dos EUA para estabilizar o sistema internacional política e economicamente, provendo-o de estruturas de governança, o crescimento dos emergentes não seria possível. A prevalência do “velho” mundo anglo-saxônico ocidental sobre os “novos” pólos permanece.

Chegando à África, o teor é similar. Se em Westminter o “alerta” foi para a conformação dos emergentes à ordem, em visita a diversos países africanos para lançar pacotes de ajuda para o desenvolvimento (Ato de Crescimento e Oportunidade Africano), a Secretária de Estado Hillary Clinton “avisou” os africanos dos riscos de um novo colonialismo. Este novo colonialismo seria praticado pela China e pela Índia, principalmente a China via assistência financeira e projetos de infraestrutura. A natureza da empreitada sino-indiana consistiria, ainda, na busca de mercados, e no acesso a bens primários (alimentos e minérios) e ao gás e petróleo africanos. Além disso, e nesta equação se incluiria o Brasil, os emergentes estariam projetando seu poder no continente visando objetivos políticos próprios. Paradoxalmente, o mecanismo que Hillary critica é reprodução daquele desenvolvido pelas potências europeias no ciclo imperialista do século XIX e XX, ao qual os EUA se associaram posteriormente.

A repercussão das palavras da secretária foi vista de forma crítica. Se há espaços no continente é porque o mesmo esteve colocado à margem dos fluxos internacionais. A “redescoberta” norte-americana da África é produto da percepção de que o vácuo está sendo ocupado e que será preciso mais do que acenos positivos e discursos para recuperar espaço. Por sua vez, os emergentes mantiveram sua postura. Isto sinaliza seu
reposicionamento político diante da hegemonia com uma ação mais autônoma e mais descolada de pressões e contenções.

Finalmente, o Afeganistão. Ainda que o discurso de Obama de 22 de junho tenha sido recebido como uma declaração de mudança de missão, seu conteúdo, pelo menos o da retirada das tropas até 2014, era razoavelmente conhecido desde o encerramento oficial da missão militar do Iraque. A principal diferença reside, portanto, na velocidade da intervenção, encerrando em 2011 a ofensiva que se prolongaria até 2012. A fala de Obama foi uma reação ao corte de verbas pelo Congresso e à queda de apoio à guerra e à Presidência. Mais do que no Afeganistão, a decisão residiu em Washington visando 2012.

Os resultados da ofensiva são parciais: geram visbilidade, mas não revertem em apoio sustentado à Casa Branca. Para a maioria da opinião pública, o principal problema dos EUA é econômico e os demais temas a ele se subordinam. No campo internacional, as relações entre o “novo e o velho” mundo reproduzem dinâmicas de reação e contra reação do líder. Diferente do passado, talvez a “troca” hegemônica do século XXI não ocorra por guerras mundiais, mas sim por um avanço e recuo mútuo de posições estratégicas, que, enquanto não finalizado, alternará momentos de estabilização e crise, no centro e na periferia do poder.


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Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Fonte: Carta Maior

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sábado, 2 de julho de 2011

Elitismo revestido de “meritocracia”



Brizola Neto no TIJOLACO

Obrigado a ficar andando de carro, hoje de manhã, ouvi a pancadaria que recebeu a UFRJ na rádio CBN por ter aderido ao ENEM como forma de seleção exclusiva para o ingresso na mais antigas e uma das mais prestigiosas universidades brasileiras.
Lucia Hippólito e o comentarista Sérgio Besserman Viana – ex-presidente do IBGE no Governo FHC, dirigente nacional do PSDB – disseram que isso era um “nivelamento por baixo”, algo como a destruição do mérito e da qualidade acadêmica, porque não se faria uma seleção “específica” para o nível e as pretensões de uma instituição do padrão da UFRJ.
Não, não é. E Sergio Bessermann é, pessoalmente, prova de que isso não é verdade, a não ser que não considere a si mesmo como exemplo de aluno que não merecia ter sido aprovado. Ele passou no vestibular da UFRJ no mesmo ano em que eu. Ambos sabemos que fomos selecionados num exame igualmente geral – o então Cesgranrio – que servia de porta de entrada  a quase todas as universidades e faculdades do Rio de Janeiro. Exatamente como é o Enem.
O único problema de Besserman com a UFRJ foi vocacional, não de qualidade intelectual, tanto que a deixou para fazer História e, depois, Economia na PUC.
O Cesgranrio tinha deficiências graves. Mas, no geral, passar para um “federal” não era então e não é hoje coisa que aconteça com quem está despreparado. Os pais de adolescentes – e eles, mais do que ninguém – sabem disso, perfeitamente.
Não é o caso de discutir se, do ponto de vista acadêmico, uma universidade pode ou deve ter seleções específicas. Esta é uma longa e profunda discussão. Mas, mesmo que considere assim, igualmente deve usar o Enem como pré-seleção, porque o gigantismo dos vestibulares das universidades públicas tornou-se um processo monstruoso de distorção, em vários aspectos.
Primeiro, das funções da Universidade. Preparar e realizar exames simultâneos para cem mil ou mais vestibulandos, com os requisitos de qualidade e segurança que isso impõe, na aplicação das provas e em sua correção acabou se tornando uma das principais preocupações da academia. E é caríssimo.
Daí, vem o segundo problema. O aluno que faz prova para a UFRJ, faz outra prova para a UFF (em Niterói), outra para a UERJ (estadual) e,  em certos cursos, também para a Unirio (federal) e a Universidade Federal Rural, em Seropédica.  Em outros casos, havia mais  um – o da Universidade Estadual Darcy Ribeiro, em Campos, que hoje também adota apenas o Enem. Para cada uma, uma taxa de inscrição. Em 2008, a inscrição da UFRJ custava R$ 95. Imagine o custo, para uma família de classe média baixa ou para um jovem trabalhador de fazer cinco inscrições para cinco vestibulares?Ou seis, em alguns casos?
Afora isso, o fato de realizar dois ou até três dias de provas para cada um dos cinco vestibulares públicos criava um período em absoluta indisponibilidade e stress para estes jovens. Se, por acaso, tivessem um emprego, era virtualmente impossível fazerem todas estas provas.
É evidente que a elevação do nível de nossas grandes universidades depende, e muito, da qualidade do ensino básico e do médio. Embora a política de cotas seja um correto remédio emergencial para as desigualdades, ela não resolve sozinha estes problemas e nem se deseja que seja eterna, pois que não se deseja a eternidade da desigualdade.
Mas nada justifica que, sob este argumento, seja mantido um sistema de seleção que é  caro, torturante e  elitista.Tanto que das universidades fluminenses – por decisão de seus conselhos acad~emicos e não do Governo – só a UFF não aderiu ainda à seleção apenas pelo Enem.
É uma atitude estranha que isso seja proposto, em nome da “excelência da UFRJ”, por alguém que chegou a ela por um exame geral como era o do Cesgranrio, como Sérgio Besserman.
Com vestibular específico ou com Enem, passar para a UFRJ continuará sendo uma façanha digna de aplauso, pela capacidade e pelo esforço, para qualquer jovem. Como o foi, naquele vestibular de 1977, para o então jovem e então esquerdista Sérgio BessermanViana.

Altamiro Borges: médicos marcam greve e peitam os planos de saúde

  Por Vermelho

Em assembléia realizada na quinta-feira (30) à noite, médicos que atendem os planos de saúde em São Paulo decidiram paralisar as suas atividades. Cerca de 58 mil profissionais são explorados pelas empresas privadas do setor no estado. A paralisação atingirá dez convênios, que reúnem 3 milhões de usuários – no total, são 327 operadoras de planos de saúde em São Paulo, que “atendem” 18,4 milhões de usuários.

A greve, por tempo indeterminado, afetará uma especialidade médica por vez. Ao todo, são 53 especialidades, “o que pode fazer com que a paralisação dure um ano inteiro por meio desse rodízio”, informa o UOL. O objetivo, segundo Florisval Meinão, vice-presidente da Associação Paulista de Medicina, é pressionar os planos a negociarem reajuste dos honorários pagos aos médicos.

O péssimo atendimento “privado”

O grau de exploração dos planos privados de saúde é absurdo. Entre 2003 e 2009, as operadoras concederam reajustes salariais de 44%, em média, índice bem abaixo da inflação acumulada no período. Em abril passado, os médicos já realizaram uma greve nacional por melhores salários. Eles recebem, em média, R$ 30 por consulta. Reivindicam receber R$ 80,00.

Além do arrocho salarial e do ritmo desumano de trabalho, os planos privados de saúde são alvos de crescentes denúncias sobre o péssimo atendimento aos “clientes” – encarados como pura mercadoria. A demora no agendamento das consultas, as filas nos consultórios e o atendimento às pressas, tipo linha de produção fordista, têm irritado cada vez mais o trabalhador que paga os caríssimos planos de saúde. Muitos inclusive têm retornado aos hospitais públicos.

Fortalecimento do SUS

A paralisação dos médicos evidencia a gravidade do setor no Brasil. Nas últimas décadas, ele foi duramente atingido pelo processo mercantilista de privatização. Atualmente, o setor privado é dono de 69% dos hospitais. Segundo reportagem de Cida de Oliveira, da Rede Brasil Atual, “a maior parte da infra-estrutura da saúde no país está nas mãos da iniciativa privada. Dos cerca de 6,3 mil hospitais, 69% são particulares e destinam apenas 38% de seus leitos para o Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Célia Maria de Almeida, pesquisadora e coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Inovação Tecnológica em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fundação Oswaldo Cruz), avalia que o setor vive uma encruzilhada. Por um lado, o SUS representou uma conquista da sociedade, com o aumento da cobertura e a descentralização da gestão. Por outro, a crescente privatização do setor coloca em risco estes avanços.

“Houve um aumento expressivo do setor privado, estimulado pelos governos por meio de incentivos fiscais e de financiamento. Entre os obstáculos que temos pela frente está o de aumentar o financiamento federal da saúde, elevando assim investimentos em infra-estrutura”, observa. Para ela, a questão central é fortalecer o SUS. O poder público deve rever a sua política de subsidiar o setor privado, ao mesmo tempo em que investe pouco no setor público.