domingo, 8 de agosto de 2010

As muitas violencias




por Silvio Caccia Bava no LeMondeDiplomatique
Nos últimos três anos foram assassinadas mais de 140 mil pessoas no Brasil. Uma média de 47 mil pessoas por ano. Uma parcela expressiva destas mortes, que varia de região para região, é atribuída à ação da polícia, que se respalda na impunidade para continuar cometendo seus crimes. São 25 assassinatos ao ano por cada 100 mil pessoas, índice considerado de violência epidêmica, segundo organismos internacionais, e que se mantém estável, apesar dos esforços do governo federal com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da Segurança, lançado em agosto de 2007, e o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que tinha por meta reduzir em 50% os assassinatos neste ano de 2010, mas não o conseguiu. 
A situação é um pouco melhor que alguns anos atrás: em 2000, o índice era de 26,7; em 2001, de 27,8; em 2002, de 28,45, segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Não fazemos ideia do que esses números significam. Apenas para ter uma comparação, nos três anos mais cruentos da invasão do Iraque (2005-2007) foram assassinados, por atos de guerra, 80 mil civis.  Uma média de 27 mil mortes por ano.
Se os assassinatos com armas de fogo são uma face da violência vivida na nossa sociedade, ela não é a única. Logo atrás, em termos de letalidade, estão os acidentes fatais de trânsito, com cerca de 33 mil mortos em 2002, e 35 mil mortes por ano em 2004 e 2005. Isto, sem falar nos acidentados não fatais socorridos pelo Sistema Único de Saúde, que multiplicam muitas vezes os números aqui apresentados e representam um custo que o Ipea estima em R$ 5,3 bilhões para o ano de 2002. Novamente aqui os jovens são as principais vítimas, e uma pesquisa aponta que 95% dos acidentes de trânsito são de responsabilidade do motorista: desrespeito à sinalização, excesso de velocidade, avanço do sinal.1 Quanto aos atropelamentos, foram mais de 40 mil em 2006, penalizando principalmente os mais idosos.
A lista da violência alonga-se incrivelmente. Sobre as mulheres, os negros, os índios, os gays, sobre os mendigos na rua, sobre os movimentos sociais etc. Uma discussão num botequim de periferia pode terminar em morte. A privação do emprego, do salário digno, da educação, da saúde, do transporte público, da moradia, da segurança alimentar, tudo isso pode ser compreendido, considerando que são direitos assegurados por nossa Constituição, como outras tantas violências.

Para buscar interpretar estes acontecimentos, não é possível isolar uma única forma de violência, ainda que suas distintas manifestações requeiram políticas também diferenciadas para enfrentá-las. É o jeito de viver em sociedade, que assumimos ao longo do tempo, que nos leva a esta situação-limite.

Quando a Justiça não funciona, principalmente para os pobres; quando a polícia mata com impunidade, em vez de garantir a lei e a ordem; quando o que nos ensinam é que temos de tirar vantagem sobre os demais; quando as políticas públicas não garantem a proteção social das famílias; quando os jovens não têm perspectiva de emprego neste modelo de desenvolvimento; tudo somado, desaparece o que é de interesse comum, a coisa pública, a afirmação dos direitos, as regras de convivência democrática.
É aqui que mora o perigo. Se o domínio privado do espaço público prevalecer, como é o caso das milícias e do narcotráfico nas favelas, assim como dos sistemas de segurança privada nos acessos aos condomínios de luxo e nos shoppings, então continuaremos a viver uma guerra contínua e não declarada que estenderá seu manto de sofrimento por toda a sociedade.
Hannah Arendt valoriza o espaço público como espaço de socialização, da comunicação, do debate, do exercício democrático, do cultivo das liberdades. Claude Lefort, Viveret e toda uma corrente de pensadores nacionais e estrangeiros que defende o exercício da democracia direta pelos cidadãos, falam da (re)apropriação do espaço público, de um processo de (re)fundação democrática que crie novas instituições para um novo tempo, com maior controle social e sentido público.
Sem espaço público não há democracia, e o espaço público é também uma construção associada à construção do próprio Estado, que necessita se abrir para o controle social para produzir políticas que universalizem direitos. As experiências recentes de construção de um novo jeito de viver que ocorrem em países vizinhos, como a Bolívia e o Equador, dizem que este caminho é possível e que existem movimentos fortes na sociedade que bancam estas mudanças.
A maior violência para alguém é estar sozinho, sem trabalho, sem proteção social, desvalorizado perante si mesmo, privado dos seus meios de socialização, de um papel a cumprir na sociedade.


Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade da Terra


via cinefusão

Fiocruz descarta alerta para hepatite "E" no país

Por: Agência Brasil

Fiocruz descarta alerta para hepatite E no país
Cuidados com a higiene dos alimentos ajudam a prevenir contaminação (Foto: Image Source/David Cleveland)

Brasília - O virologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Marcelo Alves Pinto afirmou na manhã desta sexta-feira (6) que, por enquanto, o primeiro caso de vírus da hepatite E descoberto no país não é motivo de preocupação. “A gente presume que a incidência desse tipo de hepatite seja baixa”, disse em entrevista ao programa Revista Brasil, da Rádio Nacional AM.
Os pesquisadores responsáveis pela descoberta suspeitam que a doença tenha sido causada pela ingestão de carne suína. Eles perceberam semelhanças entre o sequenciamento genético do vírus encontrado e o de suínos criados no Brasil.
“Pelo histórico clínico do paciente, parece que o indivíduo fez ingestão de carne suína. Só que nós não tivemos acesso a amostras desse material, então, não pudemos detectar o genoma do vírus na carne consumida”, acrescentou o virologista, que coordenou o estudo.
Segundo Alves Pinto, não há diferenças clínicas entre a hepatite A, tipo mais comum da doença no Brasil, e a E. “As duas são consideradas de caráter benigno porque na maioria das vezes o indivíduo se cura e não deixa sequelas.”
Ambas são causadas pelo contato com o agente infeccioso por meio de água e alimentos, por isso, o virologista recomenda a higiene constante das mãos e de alimentos para consumo. Ele também alerta para o cuidado com o cozimento e a refrigeração dos produtos.
A descoberta do vírus é resultado da análise de 64 amostras sorológicas de pacientes com hepatite aguda sem agente causador conhecido. O material, selecionado pelo Laboratório de Hepatites Virais da Fiocruz, foi coletado entre 2004 e 2008. A ocorrência é de 2006 e refere-se a um morador do Rio de Janeiro.
A pesquisa foi publicada na forma de artigo pelo periódico científico Journal of Clinical Virology, sob o título First Report of a Human Autochthonous Hepatitis E Virus Infection in Brazil. A hepatite é uma doença inflamatória que atinge o fígado e pode causar cirrose ou câncer.

O rumo!!!


Os números indicam que neste ano de desgraça européia, consequência direta da crise não resolvida no umbigo do mundo, o crescimento da América Latina se sustenta com características inéditas: pela primeira vez na história moderna da região, junto com a elevação do crescimento, as taxas de desemprego e de pobreza baixaram, e com elas, a desigualdade. Essas coisas são os grandes demônios do neoliberalismo. O social deve ser varrido do mapa, como o faz o macrismo de Buenos Aires. Te dou um guarda-sol amarelo e ponho bancos de designers nas praças do norte [zona rica de Buenos Aires], mas fico com os recursos dos hospitais e não executo o orçamento da educação. O artigo é de Sandra Russo, do Página/12.

Pela primeira vez em cinco séculos esta região está “crescendo sin desigualar”, disse a secretária geral da Cepal na Cúpula de San Juan na semana que passou, além de elogiar, no conjunto, a Argentina, por sua política ativa de emprego. Sabe-se que isso não será jamais título de um jornal, ou telejornal, porque esses títulos surgem de outro tipo de informação, e não necesariamente de informações recentes. É uma lógica interna dos meios a que faz com que a controvérsia seja um título possível, enquanto que a boa notícia, não.

Contudo, tratando-se de uma afirmação decorrente da comparação de dados, parece interessante resgatá-la, porque indica um rumo e a consciência desse rumo provavelmente seja vital para aprofundá-lo. Esse dado supõe também uma lógica: os respectivos eleitorados elegem esse rumo e em consequência a mesquinhez especulativa dos grandes meios, voltandos em cheio para a política, insistirá em manter as conquistas opacas. Mas nada impede resgatar esse dado bruto aqui: afinal, o que a funcionária da Cepal disse se baseava em dados reais, não em seus gostos pessoais. São nada menos que suas altezas, os números, que indicam que neste ano de desgraça européia, consequência direta da crise não resolvida no umbigo do mundo, o crescimento da América Latina se sustenta com uma característica inédita: pela primeira vez na história moderna da região, junto com o aumento do crescimento, as taxas de desemprego e de pobreza baixaram, e com elas, a desigualdade.

É óbvio que se trata apenas do princípio de uma mudança, os primeiros resultados de um modelo. Desse modelo regional não estamos todos nos mesmos patamares, paradoxalmente, já que a informação sobre a região é ainda mais enviesada que a nacional. As coberturas sobre o conflito entre Colômbia e Venezuela são um exemplo de como contar a série começando pelo décimo capítulo. Enquanto isso, as respectivas oposições não trabalham nem aspiram a sínteses superadoras, mas apenas se refregam na rememoração do horrível, e inexplicavelmente voltam a propô-lo. Aqui e acolá dirigentes políticos e empresários, que já não se distinguem entre si, falam com encantamento dos anos 90, numa performance louca que propõe um esquecimento suicida e coletivo, para voltar à “ordem” de que têm saudade: o direito a expropriar o mundo do trabalho dos seus direitos, para entregar o poder ao mundo do capital. Os anos 90 foram, sinteticamente, isso.

Os 90' foram uma foto como a que tiraram esta semana de vários personagens da política e do mundo empresarial com Héctor Magnetto (1). Na falta de uma explicitação do modelo que a oposição propõe, presume-se seu alinhamento com as demandas de seus principais representados: os que têm a faca e o queijo na mão. Com os demais se pode abusar, como com os 82% de usuários da telefonia móvel, mesmo depois de ter votado contra a reestatização dos fundos de pensão. Nisso se encontram com a esquerda, que lhes leva às ruas para apoiar suas demandas.

Voltando aos dados reais da Cepal, e ao caminho democrático eleito virtuosamente pela região, que ainda não reconhece o governo de Honduras precisamente por sua gênese golpista, esse dado é em si mesmo um sinal de rumo, só isso. Não implica que não haja desigualdade, não implica que as coisas não possar ser melhor e mais rápidas ou feitas de maneira mais ágil ou justa. Assinala um rumo, apenas. Uma direção.

Nos países envolvidos por essa nova tendência, a do crescimento que não “desiguala”, há governos tão diferentes como há idiossincrasias e tradições. Mas o que transcende essas enormes diferenças em matéria de ritmo e consistências políticas é algo que podemos ver: o crescimento sem desigualar, sustentado em dois eixos: políticas ativas de emprego e políticas sociais.

Ambas essas coisas são os grandes demônios do neoliberalismo. O social deve ser varrido do mapa, como o faz o macrismo de Buenos Aires. Te dou um guarda-sol amarelo e ponho bancos de designers nas praças do norte [zona rica de Buenos Aires], mas fico com os recursos dos hospitais e não executo o orçamento da educação. E o emprego: se pudessem, cortariam sistematicamente as cabeças, de novo, a cada conquista e dariam baixa nos subsídios [trabalhistas]. O modelo que têm mente não tem qualquer resposta para o mundo do trabalho, já que é em si mesmo a resposta do mundo do capital para o Estado de Bem-Estar. Não é preciso se chegar ao extremo do “socialismo estatizante”, frase pronunciada por Biolcati (2) mas também por todo o poder econômico e midiático em 1977, quando celebrou o primeiro aniversário ditadura. Qualquer Estado que arbitre entre fortes e débeis será para eles um “estatismo socializante”: dá-lhes nojo tanta negociação entre setores. Para que tanto, se são eles os donos.

Encontra regionalmente uma direção política e econômica permite endereçar-nos a um continente gestado como pátio dos fundos. Claro que não é a revolução, mas o que é a revolução? É necessariamente algo súbito, ou é um caminho cheio de enganos e enganadores? É algo a que as vanguardas conduzem ou é um imenso coletivo político que se adere ao que o faz girar para a frente, e expulsa o que pretende atrasar? São perguntas que não têm respostas, porque pertencem a debates silenciosos.

NOTAS
(1) Executivo do maior grupo midiático da Argentina, o Grupo Clarín. N.deT.

(2) Hugo Biolcati, atual presidente da Sociedade Rural Argentina, entidade representativa do latifúndio vinculado à agropecuária extensiva, fundada ainda no século XIX. N.deT.

Tradução: Katarina Peixoto

Bertold Brecht


1
De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados,ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?
2

Em vez de serem apenas bons,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor:que a torne supérflua!

Em vez de serem apenas livres,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!

Em vez de serem apenas razoáveis,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.

sábado, 7 de agosto de 2010

Agronegócio escraviza milhares de trabalhadores no campo

070810_agroneg Ciranda - A impressão que se tem é a de que se está entrando no túnel do tempo e retornando alguns séculos no calendário gregoriano. Aos olhos dos mais desavisados, pode parecer estranho e até mesmo irreal que ainda hoje existam pessoas sendo submetidas à escravidão em nosso país. Mas infelizmente essa gravíssima violação aos direitos humanos é uma dura realidade no Brasil do século 21.
Milhares de pessoas ainda são submetidas a trabalho forçado e a condições degradantes no campo e na cidade. Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2005, estimava em 25 mil o número de trabalhadores mantidos em condições análogas a de escravos no país. Destes, 80% atuavam na agricultura e 17%, na pecuária. Os números do organismo internacional, no entanto, parecem estar subdimensionados se levarmos em conta o total de trabalhadores libertados pelos agentes do governo federal na gestão do presidente Lula. De 2003 a maio de 2010, foram retirados da condição de escravos 31.297 pessoas, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego.
A prática criminosa não está restrita apenas ao Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou no mesmo ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores eram vítimas da sanha de latifundiários e empresários inescrupulosos pelo mundo.
O fenômeno da globalização nos anos 90 foi decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo em escala mundial. As transações comerciais e financeiras disseminaram ainda mais a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira encontrada por esses patrões, para reduzir o preço final de seus produtos, se deu pela drástica redução do custo-trabalho. Os escravagistas do século 21 não prendem mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem chibatadas. A escravidão contemporânea tem suas particularidades, mas nem por isso esses patrões deixam de ser considerados escravocratas. O artigo 149 do Código Penal brasileiro é absolutamente claro na definição do que seja praticar escravidão nos dias de hoje.
"Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto", afirma o texto penal.
Apesar de soar extemporânea, a prática escravista está arraigada no cotidiano brasileiro mais do que se pode imaginar. "É uma mentalidade da elite econômica e política do país", afirma o senador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.
Segundo o senador, a bancada ruralista no Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para coibir a prática criminosa. Neste momento, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 438 em defesa da erradicação do trabalho escravo no país. A PEC 438 já foi aprovada em primeira e segunda votação no Senado e em primeira, na Câmara, e aguarda a ida ao plenário para a segunda votação. O dispositivo é necessário para que a matéria possa se transformar em lei.
O sucesso de sua aprovação ainda este ano está ameaçado. "Apresentamos 280 mil assinaturas ao presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer) e a todos os lideres partidários pedindo a urgência na votação da PEC. Mas as lideranças do governo estão criando várias dificuldades. Dizem que não querem discutir e votar matérias polêmicas no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito à dignidade e ao bem-estar das pessoas. Não concordo com esse tipo de atitude que impede a legislação de avançar no combate ao trabalho escravo no Brasil", ressalta Nery.
O parlamentar quer pelo menos incluir a matéria na pauta de votação da Câmara logo após o término do segundo turno das eleições. "Estamos tentando arrancar do presidente da Câmara e dos líderes partidários esse compromisso."
O secretário de políticas sociais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney, é menos otimista que Nery. O sindicalista considera que a PEC só será votada na próxima legislatura. "Entre por na pauta e não aprovar é melhor jogar para a frente. É melhor recuar taticamente. O Congresso é muito conservador, a maioria é ruralista", afirma.
Pelo texto da PEC 438, as propriedades rurais e urbanas que forem flagradas com trabalhadores escravos serão expropriadas para efeito de reforma agrária no campo e destinadas a programas sociais de moradia popular em áreas urbanas.
O arco de alianças eleitoral e da base de sustentação do governo, além de interesses econômicos dos parlamentares, impede que a matéria avance com celeridade em Brasília. Apesar de ninguém defender publicamente o trabalho escravo, na prática ele é tolerado.
O ex-presidente da Câmara, deputado Inocêncio de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades flagradas por auditores fiscais do trabalho com a prática da escravidão, não sofreu nenhum tipo de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas vezes o cargo de presidente da República durante o mandato de Itamar Franco.
Mais recentemente o senador João Ribeiro (PR-TO)( ler o comentário do jornalista André Camargo  abaixo, desmentindo parte da matéria) também foi acusado de se utilizar de trabalho escravo dentro de sua propriedade. O Ministério do Trabalho e Emprego não divulga mais detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma que informações sobre pessoas físicas e jurídicas só podem ser divulgadas após o término do processo administrativo.
O Ministério também mantém uma lista com o nome de quem usa o trabalho escravo no País. A lista suja, como é conhecida a relação de escravagistas, é atualizada semestralmente e pode ser consultada em http://www.mte.gov.br/trab_escravo/...
CPT X latifúndio Para o bispo emérito de Goiás e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo argumento é utilizado para explicar a não realização da reforma agrária no país.
"Por que não há reforma agrária? Porque mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica fácil de entender. O trabalho escravo cresce com o agronegócio, que é a menina dos olhos da política governamental. Apesar de ter apresentado um plano de erradicação para o trabalho escravo, o governo continua elogiando os usineiros, chamando-os de heróis. A concentração do capital em poucas mãos com o apoio governamental está criando uma desigualdade social brutal. O Brasil é o segundo país do mundo em concentração de terra, em latifúndio. Só perde para o Paraguai", critica o religioso.
Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding do setor sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em suas usinas, para demonstrar a falta de compromisso do agronegócio com a dignidade humana.
A Cosan é a maior empresa produtora de áçucar e álcool do mundo. É proprietária das marcas do açúcar União e Da Barra. Em dezembro de 2008, a companhia também passou a controlar a operação de ativos da distribuição de combustíveis da Esso. e assumiu o controle da produção e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos setores de alimentos e combustíveis, a Cosan também atua na área de produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar.
O exemplo de pujança que a empresa tenta demonstrar mascara uma realidade nada agradável. A Cosan engrossa a lista suja de empresas que utilizam o trabalho escravo em suas unidades divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A companhia ingressou no ranking escravista no final do ano passado. Seus advogados se apressaram e obtiveram liminar na Justiça para retirá-la da lista suja. O Ministério tenta agora cassar a liminar expedida, para inseri-la novamente na lista dos escravagistas.
Ícone do desrespeito às normas mais elementares da dignidade humana, a Cosan é responsável, em parceria com a ExxonMobil, eplo patrocínio do principal prêmio do jornalismo brasileiro: o Prêmio Esso.
A empresa que pratica escravidão em suas propriedades também tem seu Conselho de Administração um ex-ministro da Fazenda. Mailson da Nóbrega integra seu conselho administrativo desde dezembro de 2007.
Capital paulista abriga escravidão
Prática criminosa cresce no coração do capitalismo com utilização de mão de obra sulamericana na indústria de confecção.
Se engana quem pensa que o trabalho escravo é uma característica apenas dos rincões mais afastados das áreas urbanas. Apesar de um maior número de trabalhadores escravizados se encontrarem na zona rural, a prática criminosa se propaga também na principal cidade do país.
A indústria da confecção desponta como a principal área de absorção da mão de obra escrava na cidade. A Associação Brasileira da Indústria Têxtil calcula que a demanda por roupa cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo, não há estatísticas oficiais que projetem com segurança o número de pessoas nessas condições, embora se saiba que não são poucas.
A quase totalidade desses trabalhadores vem de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai, castigadas no passado recente por décadas de ditadura feroz. "Todos os dias chegam ao Brasil de três a cinco ônibus lotados de pessoas para trabalharem nessas oficinas", afirma a Defensora Pública Federal, Daniela Muscari Scacchetti.
A precariedade das condições de vida em seus países de origem e a falta de instrução escolar as torna presas fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas. Apesar de os atravessadores serem as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador são os grandes magazines os responsáveis pela prática criminosa.
A rede de lojas Marisa, por exemplo, já levou 49 autos de infração dos auditores fiscais do trabalho e foi autuada em R$ 600 mil. "Mas a gente acredita que a imensa maioria da produção têxtil paulista, o que costuma ser comercializado por C&A, Renner, Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins, é resultado de mão de obra escrava de trabalhadores sulamericanos", conta o chefe da Seção da Fiscalização do Trabalho da Superintendência Regional de São Paulo, Renato Bignami.
Além de jornadas extenuantes de trabalho, precarização das condições de trabalho e do cerceamento à liberdade, com ameaças a vida do trabalhador e de seus familiares no país de origem, o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para fazer uma camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a R$ 0,50. Um casaco mais elaborado que leva até três horas para ficar pronto pode render no máximo R$ 1,50. A mesma peça é vendida na loja de departamento por R$ 300.

Fisk: Explodem as tensões entre Líbano e Israel

Explodem as tensões Israel-Líbano: 4 mortos

Robert Fisk, The Independent, UK

Tradução de Caia Fittipaldi

Uma árvore pode deflagrar uma guerra no Oriente Médio? Ontem, quase deflagrou.
Que se possa escrever essa pergunta é mostra de o quanto é incendiário o clima na Região, a desconfiança mútua entre árabes e israelenses e a perigosa fronteira do sul do Líbano, que ontem – como tantas outras vezes – ficou encharcada de sangue: três soldados libaneses, um tenente-coronal israelense e um jornalista libanês morreram ali, nos arredores de uma vila que, sem aquelas mortes, continuaria desconhecida do mundo: Addaiseh.
E depois do fogo dos tanques, dos ataques de mísseis dos helicópteros israelenses, das metralhadoras e dos lança-granadas libaneses, a ONU conclamou os dois lados a “exercer a moderação” e a batalha acabou, sob os olhos frios de um batalhão espanhol da ONU e de uns poucos soldados da Malásia.
Mas isso veio depois de uma cúpula árabe tripartite em Beirute; de ataques misteriosos de foguetes nas fronteiras da Jordânia, Israel e Egito há dois dias; da denúncia, pelo Hizbollah libanês, de que o inquérito da ONU sobre o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri é “projeto israelense”; e da descoberta – na 2ª-feira, – de mais um suposto espião israelense que estaria operando na rede telefônica do Líbano.
Mas voltemos à árvore. Miserável, esquelética, talvez um abeto – sob a onda de calor de 46ºC no Líbano –, os galhos bloqueavam a visão das câmeras de segurança de Israel, na fronteira Israel-Líbano, perto de Addaiseh. Os israelenses resolveram usar uma escavadeira para arrancar a árvore. O problema? Ninguém sabe exatamente onde passa a linha de fronteira entre Israel e o Líbano.
Em 2000, a ONU traçou uma “Linha Azul” que fora – nos idos pós-Balfour –, a linha de fronteira entre o Mandato francês do Líbano e o Mandato Britânico da Palestina. Além da linha, do ponto de vista dos libaneses, fica a “cerca técnica” de Israel, uma maçaroca de arame farpado, fios eletrificados e trilhas de areia (para registrar pegadas). Portanto, quando o exército libanês viu os israelenses manobrarem uma escavadeira por cima da cerca, ontem pela manhã, gritaram que os israelenses se afastassem dali.
No instante em que o braço da escavadeira cruzou a “cerca técnica” – e aqui é preciso explicar que a “Linha Azul” não acompanha necessariamente o traçado da “cerca” – os soldados libaneses atiraram para cima. Os israelenses, segundo os libaneses, não atiraram para cima. Atiraram diretamente contra os soldados libaneses.
Bom. Para o exército libanês, derrotar os israelenses, com seus 264 mísseis nucleares, seria tentar cumprir ordem impossível. Mas para o exército israelense, derrotar o exército de um dos menores países do mundo, sem dúvida seria asinino, dentre outros motivos porque o presidente do Líbano Michel Sleiman assistira às comemorações do Dia do Exército em Beirute, dois dias antes – e ordenara que seus soldados defendessem sua fronteira.
Assaf Abu Rahal, correspondente do jornal local Al-Akhbar chegou a Addaiseh para cobrir essa troca de tiros. Pouco tempo depois, um helicóptero israelense – aparentemente atirando do lado israelense da fronteira (e isso ainda não está esclarecido) – disparou um foguete contra um blindado libanês e matou três soldados e o jornalista.
Soldados libaneses, cumprindo ordens de Beirute, revidaram e mataram um tenente-coronel israelense. O Hizbollah, milícia iraniana xiita paga pelo Irã, e que não estava envolvida na batalha, anunciou a morte desse coronel israelense cinco horas antes de os israelenses confirmarem; a informação que o Hizbollah divulgou aparentemente veio de um telefone celular de um soldado israelense. Foi destaque no canal de televisão Al-Manar, do Hizbollah.
Durante toda a tarde, israelenses e libaneses trocaram insultos, acusando-se uns os outros de agressores. Israel disse que a coisa toda fora um mal-entendido. Saad Hariri, primeiro-ministro do Líbano e filho de Rafiq, pelo telefone, falando ao presidente Hosni Mubarak do Egito, denunciava “violações por Israel à soberania do Líbano”, e Israel dizia que estava levando a questão ao Conselho de Segurança da ONU. “Israel considera o governo libanês responsável por esse sério incidente e alerta para o risco de novas violações”, disse um porta-voz. Por causa de uma árvore?
Claro, os israelenses querem ter um arquivo de “incidentes”, antes da próxima guerra Hizbollah-Israel, quando juraram destruir a infraestrutura do Líbano pela sexta vez em 32 anos – sob a justificativa de que o Hizbollah está hoje representado (e está) no governo libanês.
E tudo isso, ao mesmo tempo em que o presidente Ahmadinejad do Irã – um dos patrocinadores do Hizbollah – diz que quer conversações cara a cara com o presidente Obama sobre o programa nuclear iraniano; e poucos dias depois de o International Crisis Group ter divulgado novo relatório no qual alerta que a próxima guerra Israel-Líbano será a mais violenta de todas.
Fato é que os israelenses usaram tanques e helicópteros ontem; o exército libanês usou foguetes lança-granadas e fogo de metralhadoras pesadas, na direção oposta. Em resumo, o muito sacrificado sistema libanês de telefonia móvel por pouco não entrou em colapso. Não por causa de Milad Ein, o dito espião que trabalhava para a Ogero Communications Company. Mas porque todos os libaneses queriam saber se estavam na iminência de enfrentar outra guerra. Por causa de uma árvore.
Uma fronteira explosiva
“Excepcionalmente calma e a mais perigosa do mundo”. Assim um grupo de experts descreveu ontem a fronteira que separa o sul do Líbano e o norte de Israel.
Reina ali uma calma agônica, numa das regiões políticas mais inflamáveis do mundo, desde a guerra de 2006, de Israel contra o Hizbollah. Mas a região, infestada de minas terrestres e patrulhada por soldados libaneses e 13 mil soldados da ONU, continua não tensa e volátil como sempre.
O International Crisis Group, think-tank com sede em Bruxelas, alertou ontem que as raízes políticas da crise de 2006 jamais foram discutidas e permanecem inalteradas; e que outra guerra pode ser mais devastadora que a de 2006.
O Hizbollah, milícia apoiada pelo Irã, que enfrentou Israel em 2006, não esteve envolvida nas escaramuças de ontem, mas o secretário-geral do partido, Sayyed Hassan Nasrallah, disse que seu grupo reagirá, se o exército libanês for novamente atacado.
“As mãos israelenses que atirarem contra o exército libanês serão cortadas” – disse ele.

CANDIDATOS NÃO DEBATEM DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA

 

Mário Augusto Jakobskind

Não é preciso ser nenhum especialista em questões midiáticas para constatar que os grandes proprietários de veículos de comunicação estão colocando as asas de fora, cada vez mais na base da ampliação do esquema do pensamento único. Os debates em torno da democratização dos meios de comunicação se ampliam com a participação de mais brasileiros e isso contraria interesses dos barões da mídia.  

O tema ainda não se faz presente nos debates dos candidatos à Presidência da República, Sabem o motivo? Os editores dos veículos de comunicação procuram a todo custo evitar que o tema aflore. Testem se o que está sendo dito aqui procede ou não, fazendo perguntas onde haja debates com os candidatos.  Aguardem  para ver o que acontece, ou seja, de um modo geral as perguntas não aparecem. Mas se os interessados insistirem com as perguntas é possível que em algum momento acabem tornando-se visíveis. Vale o teste.

Nas últimas semanas a questão da mídia foi objeto de pronunciamento do presidente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Alejandro Aguirre, que chegou ao cúmulo de afirmar que no Brasil há restrições à liberdade de imprensa e acusou o Presidente Lula de não ser “democrata”, o que valeu uma moção de repúdio da Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa. Para a Comissão, Aguirre na prática “estimula setores conservadores a promover denúncias sem fundamento e que no fundo tentam encobrir debates sobre a questão da mídia e a disposição para que o setor seja democratizado”.

Fazendo coro com a SIP, O Globo e outros órgãos de imprensa da mesma linha volta e meia se posicionam demonstrando  preocupação com um suposto “chavismo” por parte do atual governo brasileiro e mesmo da  candidata apoiada por Lula, Dilma Roussef.

O Globo, O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo, as revistas Veja e Época, entre outros órgãos de imprensa integrantes da SIP, simplesmente colocam as mangas de fora na defesa dos seus interesses, pois sabem perfeitamente que com a ampliação das discussões sobre o tema mídia, mais possibilidades acontecem no sentido da redução do poder absoluto que mantêm sobre os corações e mentes dos brasileiros.

Querendo ou não os barões da mídia, o tema terá que ser discutido por amplos setores da sociedade brasileira que almejam o aprofundamento da democracia no país.  

Nesse sentido vale assinalar que a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura) avalia que o Estado, ou seja, o Poder Público deve impedir a concentração indevida no setor de mídia e assegurar a pluralidade. E para que isso aconteça, segundo ainda a Unesco, os governos podem adotar regras para limitar a influência que um único grupo pode ter em um ou mais setores.

E tem mais, a Unesco entende que “os responsáveis pelas leis antimonopólio precisam atuar livres de pressões políticas” e que "as autoridades devem ter, por exemplo, o poder de desfazer operações de mídia em que a pluralidade está ameaçada”.

É isso aí, o tema está na ordem do dia, para desespero dos ”democratas” da mídia de mercado, que nos últimos tempos ficaram ainda mais ousados na defesa com  argumentos frágeis e que não resistem  a um maior aprofundamento, como, por exemplo, a defesa incondicional da liberdade de empresa com o argumento de liberdade de imprensa.

Por estas e muitas outras está na hora do mundo político ter a coragem de se posicionar, ou seja, dizer o lado em que estão.  Pode ser até incômodo para certos setores mostrar a cara, porque a linguagem da hora do vamos ver exige definições. Mas para que isso aconteça é preciso que maiores contingentes de brasileiros cobrem posicionamentos dos seus representantes nos poderes Executivo e Legislativo.

Podem crer numa coisa: a hora da verdade midiática está mais próxima do que imaginam os senhores barões da mídia. E por isso, estejam certos os leitores, os jornalões e as emissoras de televisão aumentarão o tom da cantilena segundo a qual no Brasil há “perigo” de restrições à liberdade de imprensa, uma balela que a SIP, a pedido de seus integrantes brasileiros, já encampou.

No mais, ao apagar das luzes do governo Álvaro Uribe, a pedido provavelmente do Departamento de Estado, fabricou-se uma crise com a Venezuela em função da insistência  da mentira segundo a qual as Farcs montaram acampamentos em território venezuelano. Uribe, com o sinal verde de Hillary Clinton, quer porque quer o aumento do estado de tensão na região, o que poderá resultar no descontrole da situação e derivar numa crise ainda maior do que a atual. Podem crer que a orquestração do conservadorismo vai se ampliar.

E o Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas denunciou que na Colômbia os paramilitares gozam de total impunidade. Mas O Globo prefere ignorar o fato e apoiar Uribe, da mesma forma que apoiou historicamente outros presidentes de direita em várias partes do mundo, bem como ditaduras na América Latina.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

“Estratégia em três níveis para que ‘outro mundo’ seja possível”

Por Chico Whitaker (*) via Sul21

O Fórum Social Mundial (FSM), que completou dez anos em janeiro, está realizando ao longo de 2010 uma série de fóruns inspirados em seu conhecido lema “Outro Mundo É Possível”. Em sua sequência de criação de “espaços abertos” e de redes de organizações da sociedade civil, do nível local ao planetário, o processo do FSM se desenvolve em três níveis.

No primeiro, são experimentadas práticas de uma nova maneira de fazer política, tendente à união dos que lutam por “outro mundo possível”. No segundo, procura-se superar a fragmentação da sociedade civil para que atue de forma articulada, mas autônoma em relação aos partidos e governos, como um novo ator político. No terceiro, são propostas e organizadas ações políticas – para quem decidir realizá-las –, a fim de alcançar o objetivo final dos fóruns, de substituir a lógica da busca insaciável pelo lucro que domina o planeta por uma lógica de satisfação das necessidades humanas.

Nos dois primeiros níveis estão se assentando os princípios que vão moldar a nova cultura política indispensável para que “outro mundo” seja possível.

A nova cultura política contradiz e inverte a certeza de que a condição prévia para construir outro mundo é a tomada do poder e questiona a postura de que para isso todos os meios são válidos. No FSM, afirma-se ser preciso construir antes – ou simultaneamente – a base de uma sociedade formada por cidadãos conscientes, livres, ativos, solidários e corresponsáveis pelo que ocorre em nosso entorno e no planeta Terra. O esforço pela construção dessa cultura é a grande contribuição do processo de dez anos do fórum para infundir uma ação política transformadora.

A discussão sobre o caráter do FSM – é um espaço ou um movimento? – continuará por longo tempo. E é evidente que estamos muito longe de essa nova cultura estar presente na ação dos atores políticos.

O primeiro nível parte da certeza quase unânime de que sempre é preciso buscar a união dos que participam da mesma luta. É simplesmente a adoção do velho provérbio popular “a união faz a força”. Verdadeiramente, diante do poder descomunal do sistema dominante, a luta para mudá-lo exige uma força imensa.

O caminho experimentado no primeiro nível em favor da união consistiu em organizar os fóruns com uma metodologia que nos liberasse da cultura da competição, estimulando seu contraveneno, que é um elemento básico de um sistema não capitalista: a cooperação.

O segundo nível se assenta em uma convicção mais diretamente política: a crença de que para mudar o mundo em profundidade e de maneira duradoura é imperioso o empenho de toda a sociedade. Isto é, não basta a ação dos partidos e dos governos – constituídos por via eleitoral ou revolucionária. Para que haja mudanças que sejam duráveis, toda a sociedade deve assumi-las como uma necessidade e incentivá-las.

Os partidos e os governos têm estruturas e ocasiões para organizar sua força política em todos os níveis. Não é assim com os setores das sociedades que se organizam, menos ainda em escala mundial. Por isso, na Carta de Princípios do FSM está estabelecido que ele é um espaço reservado para a articulação da sociedade civil e enfatizado que, embora membros de partidos e governos possam participar dos fóruns, nessa condição não podem propor ou organizar atividades próprias.

Essa reserva de espaço é contestada por quem não compartilha da convicção de que não pode haver transformação sem a participação de toda a sociedade e afirma que os partidos deveriam entrar nos fóruns com plenos direitos, e que se poderia passar do primeiro nível ao terceiro, que debate sobre a luta por uma nova lógica econômica e social. Mas isso colocaria em segundo plano o objetivo de articular a sociedade civil como ator político autônomo e subordinaria os participantes dos fóruns aos partidos e governos.

No seminário realizado em janeiro, não foi considerado necessário avaliar detalhadamente as iniciativas que conduzem aos dois primeiros níveis e foi aberto um debate sobre os temas vinculados ao conteúdo da luta, que corresponde ao terceiro nível: quais ações políticas transformadoras podem levar ao objetivo final dos fóruns, uma lógica de satisfação das necessidades humanas?

No terceiro nível, o processo do FSM se encontra com o altermundialismo, que atua tendo em vista, diretamente, as mudanças em nível mundial. É importante considerar que entre as características do altermundialismo figuram – como no FSM – a multiplicidade e a diversidade de seus componentes, a participação maciça da sociedade civil e o uso das redes como forma de organização. Mas, ao contrário do FSM, pode incluir partidos em suas fileiras e obter a adesão de governos.

Ao encontrar-se com o altermundialismo no terceiro nível, o processo do FSM não pode pretender substituí-lo nem com ele competir. O que corresponde então no contexto do processo do FSM é reforçar o altermundialismo com as novas articulações, redes e movimentos que nascem dos fóruns. E continuar seu papel instrumental para as organizações que o integram, associadas umas às outras em sua ação concreta – no âmbito ou não do altermundialismo – para mudar o mundo.

Nesse plano, o altermundialismo pode e deve utilizar a experiência feita nos dois primeiros níveis. Assim como pode e deve utilizar as reflexões sobre a ação política que surgem do terceiro nível, a serviço de “pensar” antes, durante e depois da ação. Para concluir, nada impede que o processo do FSM tenha essa mesma utilidade para os partidos políticos por meio do altermundialismo.

* Chico Whitaker é membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, a qual representa na Comissão do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial (FSM).

Estatuto da Igualdade Racial: 'Luta Social ou Luta de Raça?'

  Valéria Nader, da Redação do Correio da Cidadania   
 
A versão do Estatuto da Igualdade Racial recém aprovada pelo Senado foi bastante discutida nas últimas semanas. Tratando-se de um daqueles temas amplamente abordados tanto pelos grandes veículos de comunicação, como também por aqueles menores, mais alternativos e com um viés à esquerda, nem por isso as opiniões suscitadas são capazes de consolidar um entendimento mais fundamentado de questão tão complexa.
 
Deparamo-nos os leitores, essencialmente, com a visão daqueles que defendem as políticas afirmativas de inclusão, em contraposição àqueles que não as vêem como positivas, na medida em que reforçariam a ‘racialização’ da sociedade brasileira. A defesa das cotas para negros em universidades é o tópico em que se concentram os maiores esforços dos primeiros, como forma de se contrapor minimamente às injustiças históricas e arraigadas em um país de passado colonial e escravocrata. Os críticos à racialização não têm, por sua vez, espaço amplo e diversificado o suficiente para a apresentação de seus argumentos,
 
O historiador Mário Maestri, entrevistado especial do Correio, amplifica os termos desse debate, tomando-o a partir da atual sociedade capitalista, uma sociedade dividida entre as classes ligadas ao capital e ao trabalho, e na qual se desenvolvem as relações sociais e as relações de produção. O historiador alerta para que as discussões estão sofrendo pesada influência das forças do capital, deixando na ‘penumbra a diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta da luta pela igualdade racial’.
 
Ainda segundo Maestri, para a ideologia da igualdade racial não haveria mal na existência de opressores e oprimidos, desde que ambos os segmentos se caracterizassem pelo equilíbrio étnico. Confira entrevista exclusiva a seguir.
 
Correio da Cidadania: Qual a importância da discussão sobre a igualdade racial e do Estatuto da Igualdade Racial, para regulamentá-la?
 
Mario Maestri: Trata-se de debate fundamental, até agora dominado pelas forças do capital e sofrendo sua influência, que tem mantido na penumbra a diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta da luta pela igualdade racial. O anti-racismo é luta democrática contra a discriminação na escola, no trabalho, na educação etc. É parte da luta geral, no aqui e no agora, contra os exploradores, pela extinção da sociedade de classes, base das opressões econômica, nacional, sexual, étnica etc. A luta anti-racista é parte do programa do mundo do trabalho, é mobilização democrática, progressista, revolucionária.
 
A proposta de igualdade racial propõe a existência de raças diversas, que devem ser igualadas no que se refere ao tratamento e, sobretudo, às oportunidades no seio da sociedade atual. Por além de eventual retórica radical e apesar do indiscutível unitarismo da espécie humana, recupera e trabalha com o conceito medonho de raça e reduz a opressão social à opressão racial de negros por brancos. É programa regressista e conservador, parte das estratégias do capital contra o mundo do trabalho e seu programa.
 
A proposta de igualdade racial avança essencialmente no combate às desigualdades de oportunidade. Denuncia o tratamento, no melhor dos casos, igual, dos desiguais. Através da discriminação positiva, os discriminados negativamente concorreriam em igualdade com os privilegiados, estabelecendo-se, assim, a justiça social. Nos fatos, naturaliza e recupera positivamente a competição social, pilar essencial da retórica capitalista. Para essa ideologia, não há mal em haver opressores e multidões de oprimidos. Desde que exista equilíbrio étnico nos dois segmentos!
 
A África do Sul é exemplo patético e cada vez mais gritante dessa política. Durante décadas, o apartheid serviu para a dura exploração das terras e dos braços negro-africanos. Por isso, o movimento de libertação articulava corretamente a luta contra o racismo e contra a exploração capitalista. Com a derrota mundial dos trabalhadores em fins dos anos 1980, a direção do CNA (Congresso Nacional Africano) terminou aceitando substituir a já superada elite racista na gerência da exploração das massas negras sul-africanas.
 
No governo pós-apartheid, mantiveram-se as relações de propriedade e de exploração, ou seja, econômico-sociais, sob gestão de classe política e lumpén-burguesia negro-africana, a serviço do capital e do imperialismo. O fim do apartheid estabilizou a opressão de classe, a tal ponto que o país acolhe hoje uma Copa do Mundo, sendo apresentado como exemplo a ser seguido!
A miséria e a opressão dos trabalhadores e populares sul-africanos seguiram aprofundando-se, sob a batuta de políticos negro-africanos tão corruptos e venais como os brasileiros. Atualmente, eles se preocupam, essencialmente, em formar uma classe média negra, para maior estabilização da nova ordem!
 
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre as cotas universitárias, o principal e mais discutido tópico de reivindicações do movimento negro?
 
Mario Maestri: A proposta de igualdade racial e discriminação positiva (cotas estudantis) não se preocupa com as multidões de jovens negros (pardos, brancos etc.) marginalizados em diversos graus pelo capitalismo. Pretende sobretudo conquistar equilíbrio racial entre os privilegiados. De certo modo, é como se propusesse colocar pesos nos corredores brancos, esguios, para igualá-los aos negros, mais pesados, devido a handicaps sociais históricos. Equilibrando-se as desigualdades, os vencedores serão os mais capazes.
 
O problema é que essa corrida premia os cem primeiros chegados e marginaliza os 9.900 perdedores, em diversos graus. O que importa é conquistar equilíbrio racial entre os cem laureados. Uma proposta que sequer vislumbra a possibilidade e necessidade de se pôr fim à competição canibal, para que todos sejam vencedores, segundo seus esforços, capacidades e necessidades. Trata-se de mobilização por um mundo de exploradores e de explorados sem diferenças raciais, desde que no paraíso dos privilegiados e opressores haja vagas cativas para privilegiados e opressores negros.
 
Estudar nas melhores universidades, em geral públicas, é privilégio de pequena minoria de jovens, principalmente brancos ou quase brancos. A política cotista promete que, um dia, nessa minoria de felizardos, haverá um número proporcional de negros. O que já é uma falácia, pois a base da desigualdade social apóia-se essencialmente na posse e no domínio da propriedade. A proposta cotista despreocupa-se com as multidões de jovens marginalizados – em forte proporção, negros. O fundamental é mais generais, advogados, médicos, engenheiros, farmacêuticos, capitalistas negros. Todos ferrando a população trabalhadora, branca e negra, como fazem normalmente os congêneres brancos.
 
As principais justificativas dessa proposta são duas. A primeira é que, enquanto não chegamos a uma sociedade justa (socialismo), há que melhorar a realidade na sociedade capitalista. O problema é que essa proposta correta justifica o incorreto abandono da luta, no aqui e no agora, do ensino universal, gratuito e de qualidade, parte do programa democrático – e não socialista. Esse programa inarredável das classes populares foi imposto, substancialmente, pelo mundo da democracia e do trabalho, em países como a Alemanha, a França, a Bélgica, a Itália, a Suécia etc., todas sociedades capitalistas!
 
A segunda justificativa é que o Brasil não teria recursos para garantir esse privilégio para todos. Defendendo o programa cotista, Valério Arcary, intelectual  pró-cotista, afirmou, sem enrubescer, que sequer um "governo dos trabalhadores, pelo menos nas fases iniciais da transição ao socialismo, num país como o Brasil, poderia garantir acesso irrestrito ao ensino superior para todos "! O governo brasileiro entrega bilhões a banqueiros e capitalistas, nacionais e internacionais, mas não tem os meios para implementar programa cumprido por Cuba, um país pobre, literalmente desprovido de recursos naturais e de capitais!
 
Correio da Cidadania: Dessa forma, a quem interessa a política de igualdade racial e as propostas de discriminação positiva na escola, partidos, serviço público etc., rejeitadas pelo Senado quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial?
 
Mario Maestri: Por primeiro, interessa ao capital, grande responsável pela defesa, propaganda e impulsão dessa política nos EUA, em fins dos anos 1950. Ela foi consolidada, como política de manipulação da questão racial, após a repressão geral e não raro massacre físico da vanguarda negra classista e revolucionária estadunidense, nos anos 1960 e 1970. Ela começou a ser introduzida no Brasil pela Fundação Ford, entre intelectuais negros, nos anos 1980. Não é por nada que a senhora Hillary Clinton, em recente viagem ao Brasil, na única atividade não oficial, foi prestigiar essas políticas em faculdade brasileira organizada a partir de critérios raciais.
 
Mas qual foi e é o resultado das cotas nos EUA? No frigir dos ovos, meio século após a implantação da política cotista, a droga e sobretudo o cárcere são a solução prioritária para a questão negra estadunidense. Os EUA, com 5% da população mundial, possuem 20% dos prisioneiros. Deles, 50% negros! No país mais rico do mundo, com recursos inimagináveis, o jovem negro acaba normalmente nos braços da droga e da prisão e raramente em universidade e emprego razoáveis.
 
E, apesar disto, o Estatuto da Igualdade Racial propõe nada menos que o Brasil esteja, "no mínimo, meio século atrás dos Estados Unidos em matéria de cidadania para o povo negro"! Isso porque, ali, o fundamental para essa política foi atingido – temos presidente, alguns generais, médicos, diplomatas, capitalistas etc. negros.
 
A política cotista é estratégia do grande capital, pois prestigia e naturaliza a ordem capitalista; nega a luta social e de classes; procura dividir os trabalhadores e oprimidos por cor e raça; fortalece a base social da sociedade opressora. E tudo isso, em geral, sem custos ao Estado.
 
A política de escola pública, gratuita e de qualidade exige investimentos, que são feitos onde ainda dominam os princípios democráticos e republicanos dos serviços públicos básicos universais. Ao contrário, a política cotista não exige que o Estado gaste um real, ao destinar 30%, 60% ou 90% das vagas das universidades públicas – dos cargos federais, postos de trabalho etc. – para negros, índios, mulheres etc. O Estado não gasta nada, pois são investimentos já feitos. Só redistribui os privilégios e as discriminações.
 
E, com as políticas cotistas, além dos dividendos político-ideológicos, o Estado classista, prestigiado, vê cair a luta e a pressão popular pela extensão desses serviços. Ao igual que nos EUA. Não é por nada, portanto, que as atuais lideranças do movimento negro cotista não exigem ensino público, livre e gratuito universal. E imaginem só a saia justa do governo, do Estado e do capital, se a juventude popular e trabalhadora, como um todo, tomasse as ruas, exigindo ensino universal, público e de qualidade! Se não obtivessem tudo que pedissem na primeira vez, levariam certamente muito.
 
As propostas de igualdade entre as raças, na ordem capitalista, interessam também a certo tipo de liderança negra. Defendendo as políticas do capital de racialização da sociedade, inserem-se no jogo da representação política e institucional, sendo por isso gratificada econômica, social e simbolicamente. Não creio que tenha sido estudada a gênese-consolidação dessa representação étnica nascida à sombra do Estado, fortemente impulsionada durante os governos Lula da Silva. Porém, mutatis mutandis, não parece ser processo diverso do ocorrido com as representações sindicais e populares cooptadas pelo Estado, após a enorme derrota dos trabalhadores de fins dos anos 1980.
 
Finalmente, essas políticas interessam a segmentos médios e médio-baixos negros. É segredo de Polichinelo que as políticas de cotas privilegiam sobretudo os segmentos negros relativamente mais favorecidos, em detrimento dos trabalhadores e marginalizados de mesma origem. O filho do professor negro vence o filho do pedreiro negro, na disputa de uma cota. Ao igual do que ocorre com filho do engenheiro branco, ao disputar com o do zelador de mesma cor no vestibular. Ainda que, em bem da verdade, os filhos dos zeladores e dos pedreiros sequer sonhem com um curso universitário.
 
Correio da Cidadania: E quem está contra o Estatuto da Igualdade Racial? O que você pensa da participação do senador Demóstenes Torres na relatoria desse projeto, após declarações preconceituosas sobre a escravidão e a opressão aos negros?
 
Mario Maestri: No Brasil, a oposição às políticas de igualdade racial tem duas grandes vertentes, essencialmente opostas (com posições intermediárias, é claro). A vertente minoritária, com escasso espaço na mídia e no debate, é formada por um punhado de intelectuais, ativistas, sindicalistas, lideranças sociais etc., negros e brancos, de tradição republicana, democrática, socialista e revolucionária. Em geral, ela expressa, direta ou indiretamente, os interesses do mundo do trabalho e, portanto, da grande população trabalhadora e marginalizada negra, discriminada e esquecida pelas propostas retóricas de igualdade racial. Essa vertente mobiliza-se pela luta anti-racista e pelos direitos democráticos gerais, no aqui e no agora, sem qualquer exceção e privilégios.
 
A vertente majoritária, com grande presença na mídia, formada sobretudo por políticos, jornalistas, intelectuais, é impulsionada por preconceitos elitistas, racistas e corporativistas. É formada essencialmente por brancos e alguns oportunistas não-brancos. O senador Demóstenes Torres é representante exótico desta corrente, assim como, por exemplo, o jornalista  Ali Kamel constitui defensor refinado das mesmas visões.
 
A primeira vertente, ao refletir, direta ou indiretamente, o mundo do trabalho e seu programa, tem consciência das conseqüências dramáticas das propostas de racialização da sociedade brasileira para a luta e as conquistas sociais e para a própria organização e convivência nacionais. A segunda representa os setores sociais médios brancos em parte deslocados por essas políticas, em favor dos setores da classe média e médio-baixa negra, como proposto.
 
No último caso, trata-se de defesa conservadora de privilégios das classes médias brancas, contra as políticas raciais conservadoras do grande capital, despreocupado no geral com aqueles segmentos. Trata-se de um movimento em algo semelhante à resistência final dos racistas sul-africanos, quando o capital decidira a entronização da nova classe política negro-africana. Resistência que se mantém até hoje em forma já residual na África do Sul. Não devemos esquecer que o capital não tem cor. Historicamente, ele se serve do racismo para impor sua dominação e obter super-exploração. Porém, quando necessário, ferra sem dó os segmentos racistas.
 
Correio da Cidadania: O Senado retirou do projeto a obrigatoriedade do registro da cor das pessoas nos formulários de atendimento do SUS, considerado por muitos como o retrocesso maior, já que os índices referentes à saúde da população negra denunciariam fortemente a discriminação racial.
 
Mario Maestri: É enrolação estatística dizer que os negros, por serem negros, são mais desfavorecidos que os brancos, por serem brancos, por exemplo, no relativo à saúde. Comparemos os engenheiros negros e os pedreiros brancos. Nesse caso, a saúde dos brancos é certamente pior do que a dos negros. E se cotejarmos a saúde dos médicos brancos à dos médicos negros certamente ela será, no geral, idêntica.
 
O fato de que há maioria de negros entre as classes exploradas e maior número de brancos entre os privilegiados determina diferença social que pode ser percebida artificialmente como racial, e não social. Seria estatisticamente mais interessante registrar e tornar pública a situação sócio-profissional dos atendidos pelo SUS, registrando a enorme insuficiência das classes trabalhadoras e marginalizadas, brancas, negras e pardas, quanto à saúde e à esperança de vida. Realidade não retida, como devia ser, no relativo à remuneração e à idade de aposentadoria.
 
No essencial, as propostas da obrigação da definição da cor (no fato, da pretensa raça) quando de registros públicos procuram impor literalmente racialização artificial do país. Para essa proposta, você não seria mais simplesmente brasileiro. Mas, obrigatoriamente, brasileiro branco ou brasileiro negro.
 
Trata-se de proposta anti-republicana, antidemocrática e profundamente racista determinar pela lei que todo cidadão assuma uma identidade racial aleatória ou oportunista. Uma identidade racial que, no novo mundo proposto, poderia ensejar privilégios em relação ao resto da população. Esta proposta se apóia igualmente na concepção da necessidade da definição da raça quando do atendimento médico, pois, segundo ela, negros e brancos, de raças diversas, exigiriam tratamentos e procedimentos médicos diversos! Ou seja, que brancos e negros seriam biologicamente diversos, como defendiam já os escravistas e seus ideólogos racistas, como o celerado e farsante conde de Gobineau (1816-1882).
 
Proposta racista, de caráter acientífico, que demonstra sua enorme obtusidade, ainda mais no Brasil, onde a auto-definição racial tende no geral a sequer possuir uma correspondência genética mais precisa. Os estudos científicos apontam para que, em uma enorme quantidade, os brasileiros são produtos de uma forte mescla genética de população das mais diversas origens européias, americanas, africanas, asiáticas etc. E não devemos esquecer que aquelas populações já resultavam de enormes interações genéticas.
 
Correio da Cidadania: Como você enxerga as lamentações do movimento negro, que definiu a aprovação dessa versão do Estatuto como traição a lutas históricas e que seria melhor brigar mais dez anos pela aprovação de versão satisfatória? Você incluiria o projeto aprovado no rol de recuos do governo Lula da Silva, em praticamente todas as pautas de caráter mais progressista?
 
Mario Maestri: Foi enorme a cooptação pelo Estado de dirigentes populares no governo Lula da Silva. Hoje, enorme parte das direções negras tem ligações diretas ou indiretas com o lulismo, com o petismo, com o Estado, com os quais não arriscam oposição e dissidências. Ao igual que as direções sindicalistas, camponesas, populares etc. também cooptadas.
 
Jamais vimos essas lideranças do movimento negro mobilizando-se contra a ocupação do Haiti pelo Exército brasileiro. Ou levantando-se contra o tratamento bestial do sistema prisional brasileiro, habitado por enorme população negra. Ou denunciando o quase total abandono das populações flageladas dos últimos tempos. Silêncio de túmulo.
 
A reprovação do Estatuto no Senado parece ter causado apenas as assinaladas lamentações das lideranças responsáveis por sua apresentação. Ele não interpretava as necessidades da população negra pobre e explorada, que continua abandonada à sua sorte, sem conseguir construir suas verdadeiras lideranças e programas, ao igual que a maioria dos trabalhadores e oprimidos dos campos e das cidades do Brasil.
 
Correio da Cidadania: Por fim e diante de todos os pontos expostos, você acredita que se realizou um debate público a contento, com a participação efetiva da sociedade, na discussão das políticas de discriminação racial positiva, em geral, e do Estatuto, em particular?
 
Mario Maestri: Houve debate, superestrutural e institucional: programas de rádio e de televisão; artigos e livros jornalísticos e acadêmicos; alguns editoriais. Porém, o debate jamais alcançou a população nacional, a ser enquadrada pelo Estatuto, seja qual for a sua cor. Se fizéssemos um levantamento, a imensa maioria dos brasileiros não sabe o que seja o Estatuto e a quase totalidade não sabe realmente o que ele propõe.
 
O debate jamais foi realmente enfrentado, mesmo pela esquerda, que, paradoxalmente, no passado, destacou-se pela ênfase da importância da escravidão e do racismo na sociedade de classes no Brasil. No século 20, foram efetivamente militantes marxistas e comunistas que contribuíram fortemente para que a questão negra se transformasse no Brasil em problema histórico e teórico de larga discussão – Astrogildo Pereira, Edison Carneiro, Benjamin Perét, Clóvis Moura, Décio Freitas etc. 
 
A vanguarda da esquerda organizada aceitou as propostas de racialização da sociedade nacional sem crítica e reflexão, como parte das novas e antigas sensibilidades ambientalistas, feministas, anti-racistas etc. Contribuíram nessa aceitação acrítica e passiva a escassa formação política e, sobretudo, os frágeis vínculos com o operariado nacional. Operariado em franca regressão, no Brasil e no mundo, sobretudo após a derrota histórica de fins de 1980, que ensejou depressão dos valores universalistas, racionalistas, socialistas etc. Ou seja, com a crescente fragilidade do programa dos trabalhadores, fortaleceu-se a influência das propostas ideológicas e conservadoras do capital, também entre a própria esquerda, como no caso das visões raciais da sociedade.
 
Nas razões dessa renúncia passiva ao programa socialista ajuntaríamos uma espécie de consciência culpada, por parte de militantes em geral com origem na classe média e médio-baixa branca, no contexto de escassa importância dada à questão, vista tradicionalmente como periférica aos problemas centrais da revolução, mesmo quando destacada nos programas políticos. Foram também importante as pressões da juventude negra estudantil radicalizada, conquistada para essas propostas no processo de flexibilização de organizações de esquerda, como o PSTU, de frágeis vínculos sociais e políticos com os trabalhadores.
 
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; colaborou Gabriel Brito, jornalista.
 

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Liberdade de expressão: o “efeito silenciador” da grande mídia


Venício Lima, na Carta Maior

Desde a convocação da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM), em abril de 2009, os grandes grupos de mídia e seus aliados decidiram intensificar a estratégia de oposição ao governo e aos partidos que lhe dão sustentação. Nessa estratégia – assumida pela presidente da ANJ e superintendente do grupo Folha – um dos pontos consiste em alardear publicamente que o país vive sob ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão [e, sem mais, a liberdade da imprensa] corre sério risco.
Além da satanização da própria CONFECOM, são exemplos recentes dessa estratégia, a violenta resistência ao PNDH3 e o carnaval feito em torno da primeira proposta de programa de governo entregue ao TSE pela candidata Dilma Roussef (vide, por exemplo, a capa, o editorial e a matéria interna da revista Veja, edição n. 2173).
A liberdade – o eterno tema de combate do liberalismo clássico – está na centro da “batalha das idéias” que se trava no dia-a-dia, através da grande mídia, e se transformou em poderoso instrumento de campanha eleitoral. Às vezes, parece até mesmo que voltamos, no Brasil, aos superados tempos da “guerra fria”.
O efeito silenciador
Neste contexto, é oportuna e apropriada a releitura de “A Ironia da Liberdade de Expressão” (Editora Renovar, 2005), pequeno e magistral livro escrito pelo professor de Yale, Owen Fiss, um dos mais importantes e reconhecidos especialistas em “Primeira Emenda” dos Estados Unidos.
Fiss introduz o conceito de “efeito silenciador” quando discute que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade. O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove “a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma” (p. 30).
Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, a pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política.
Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.
Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, ao invés da regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48).
Creio que o exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público nas sociedades onde ele (ainda) é controlado pelos grandes grupos de mídia.
Censura disfarçada
A liberdade de expressão individual tem como fim assegurar um debate público democrático onde, como diz Fiss, todas as vozes sejam ouvidas.
Ao usar como estratégia de oposição política o bordão da ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão corre risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é pautado pela grande mídia como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.
Nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos do de um “liberalismo antidemocrático” no qual as normas e procedimentos relativos a outorgas e renovações de concessões de radiodifusão são responsáveis pela concentração da propriedade nas mãos de tradicionais oligarquias políticas regionais e locais (nunca tivemos qualquer restrição efetiva à propriedade cruzada), e impedem a efetiva pluralidade e diversidade nos meios de comunicação.
A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada.
Este é o “efeito silenciador” que o discurso da grande mídia provoca exatamente em relação à liberdade de expressão que ela simula defender.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.

Opção pela água e pela superação do monocultivo


Pedro Carrano
O brasileiro ingeriu, em média, 3,7 quilos de agrotóxicos em 2009. Trata-se de uma massa de cerca de 713 milhões de toneladas de produtos comercializadas no país por cerca de seis corporações transnacionais. Estas empresas controlam toda a cadeia produtiva, da semente ao agroquímico ligado a ela. Uma condição que pressiona o agricultor familiar, refém da compra do “pacote tecnológico” gerador da dependência na produção. O capital dessas companhias do ramo é maior que o produto interno bruto da maioria dos países da Organização das Nações Unidas. Só no Brasil lucraram 6,8 bilhões de dólares em 2009.
Para tanto, o país ergueu a taça de campeão mundial em uso de agrotóxicos e bateu outro recorde: duplicou o consumo em relação a 2008. Relatórios recentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que vem sendo criticado pelo lobby do agronegócio, apontam que 15% dos alimentos pesquisados pelo órgão apresentaram taxa de resíduos de veneno em um nível prejudicial à saúde. Cana-de-açúcar, soja, arroz, milho, tabaco, tomate, batata, hortaliças (veja tabela) são produtos do dia-a-dia que passaram a ter alto índice de toxidade.
Agroquímico, semente, terra e mercado fazem parte da mesma cadeia produtiva sob controle dos monopólios. Larissa Parker, advogada da Terra de Direitos, aponta uma relação direta entre a concentração do mercado de sementes e de agrotóxicos. A transnacional Monsanto controla de 85 a 87% do mercado de sementes. No caso do transgênico Milho BT (da empresa estadunidense), de acordo com a advogada, o próprio cereal é desenvolvido com uma toxina contra determinado tipo de praga. Ainda assim, agricultores no Rio Grande do Sul precisaram realizar mais de duas aplicações de agrotóxicos na lavoura. Os insetos mostraram-se resistentes à substância tóxica. Na Argentina, as corporações cobram patentes apenas dos agrotóxicos e não das sementes, já que o seu uso está atrelado a elas.
Apesar de surgir como a “salvação da lavoura”, prometendo aumento de produtividade, a introdução do químico ligado à semente transgênica incentivou o aumento do uso de tóxicos. O cultivo da soja teve uma variação negativa em sua área plantada (- 2,55%) e, contraditoriamente, uma variação positiva de 31,27% no consumo de agrotóxicos, entre os anos de 2004 a 2008, como explicam os professores Fernando Ferreira Carneiro e Vicente Soares e Almeida, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB).
Além disso, produtos que foram barrados no exterior são usados em diferentes cultivos brasileiros. Entre dezenas de substâncias perigosas, o endosulfan, por exemplo, é um inseticida cancerígeno, proibido há 20 anos na União Europeia, Índia, Burkina Faso, Cabo Verde, Nigéria, Senegal e Paraguai. Mas não é proibido no Brasil, onde é muito usado na soja e no milho.
Outro exemplo de um cenário absurdo: grandes produtores de cítricos não têm usado determinada substância tóxica, não por consciência ecológica, mas porque países importadores não a aceitam. De acordo com informações da página da Anvisa “todos os citricultores que exportam suco de laranja já não utilizam mais a cihexatina, pois nenhum país importador, como Canadá, Estados Unidos, Japão e União Européia, aceita resíduos dessa substância nos alimentos”.
Cultura internalizada
O Censo Agropecuário de 2006, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informou que 56% das propriedades brasileiras usam venenos sem assistência técnica. De acordo com a mesma pesquisa, práticas alternativas, como controle biológico, queima de resíduos agrícolas e de restos de cultura, que poderiam gerar redução no uso de agrotóxicos, também são pouco utilizadas.
Adriano Resemberg, engenheiro agrônomo do departamento de fiscalização da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná (Seab), analisa a questão dos agrotóxicos a partir dos seguintes eixos: o primeiro é que o uso dos agrotóxicos produz um impacto e uma alteração do bioma local. O outro é que a prática do uso de venenos é desnecessária, mas acaba sendo apontada como a única saída para o produtor. E vira uma cultura. “Muitas boas práticas agrícolas, como o manejo do solo, têm sido deixadas de lado. O uso do agrotóxico é mais fácil, diante da falta de uma saída do serviço de assistência técnica pública do Estado. O que vemos são profissionais levando pacotes [tecnológicos] e não soluções, um modelo que leva o agricultor a usar o agrotóxico e não questionar muito isso. Usar um inimigo natural não significa menos tecnologia, ao contrário”, analisa.