quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Lula, o filho da dialética


Não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura. O artigo é de J. Carlos de Assis.

O que há de comum entre a dialética marxista e o princípio milenar de Lao Tsé segundo o qual não se deve remar contra a corrente, mas usar sua força a seu favor? Tudo. É essencialmente o mesmo princípio. O que me impediu durante décadas de ver isso foi uma leitura superficial de Marx. Ou melhor, uma leitura de Marx que não considerava os fundamentos mais profundos de sua própria dialética no plano filosófico, ainda hoje insuperável, pela razão de que ela está recoberta por uma dialética política impressionista que se revelou idealista e fracassada.

Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.

Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.

A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.

Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.

Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.

Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.

O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.

O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.

No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.

A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.

Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.

O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.

No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).

Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.

Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.

O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.

Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.

Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).

Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.

Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.

Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!

É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.

Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.

Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.

Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.

Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.

Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.

O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.

Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.

Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.

No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.

A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.

Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.

Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.

Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.

(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.

Estado do RS prepara ação em defesa do piso nacional dos professores

Documento já vinha sendo elaborado pela assessoria jurídica do governador Tarso Genro.

 A Procuradoria Geral do Estado deve protocolar nesta quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF) uma petição oficializando que o governo do RS é contrário à Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que visa revogar a lei que instituiu o piso nacional dos professores.

A Adin foi impetrada em 2008 por cinco governadores, entre eles a ex-governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius. "Queremos mostrar aos ministros do STF que o nosso governo é favorável e fará todos os esforços para cumprir com o piso dos professores", ressalta o secretário chefe da Casa Civil, Carlos Pestana. A petição já vinha sendo elaborada pela assessoria jurídica do governador.

De acordo com o artigo 5° da lei número 9.868, depois de proposta a ação direta, não se admite desistência.

Ainda no primeiro semestre deste ano o Governo Tarso irá convocar os professores para negociar a forma de pagamento do piso. Desde a campanha eleitoral o governador vem ressaltando que a concessão do benefício é um compromisso, mas em função das dificuldades financeiras do Estado ele será pago de forma processual.

O piso nacional dos professores da educação básica foi criado pela Lei nº 11.738/2008.

http://www.jornalvs.com.br/site/noticias/ensino,canal-8,ed-149,ct-730,cd-302234.htm

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O contexto da crise de Cuba

China, Brasil e alguns Estados da União Européia se converteram em contrapesos aos estadunidenses de linha dura. Com um espaço de manobra, os cubanos podem evitar as piores consequências da obsoleta doutrina de choque que Washington mantém durante 50 anos.

Por Saul Landau e Nelson P. Valdés na Revista Fórum

No dia 18 de dezembro de 2010, o presidente cubano Raúl Castro advertiu os cidadãos cubanos de que a nação enfrentava uma crise. As condições desastrosas da economia de Cuba já não permitiam que o Estado tivesse espaço de manobra para sair do perigoso “precipício” de ineficiência, baixa produtividade e corrupção. Sem reformas, Cuba entraria em colapso, e junto com ela o esforço de todas as gerações que buscaram uma Cuba livre, desde a primeira revolta aborígene contra o domínio colonial espanhol.

Os cubanos compreendem que desde a Revolução de 1959, com todos os seus erros, protegeu-se a independência da nação – a soberania nacional. Desde 1492 (desembarque de Colombo) até dezembro de 1958, as potências estrangeiras decidiram o destino dos cubanos.

Em princípios do século XIX emergiu um tipo “cubano”, não um espanhol em uma ilha distante ou um escravo africano, mas sim um híbrido produto de três séculos de colonialismo, que buscou a autodeterminação tal qual a população colonial estadunidense em 1776.

Quando Batista e seus generais fugiram, fracassou a materialização de um golpe de Estado apoiado pelos EUA, apesar de todas as conspirações encabeçadas pelo governo estadunidense. Os rebeldes então estabeleceram a moderna nação cubana, a qual rapidamente se converteu em um desafio real e até então quase inimaginável à dominação dos EUA.

Esta verdade não expressada, e compreendida em Havana e Washington, afetou os dois países. Washington se negou a ceder o controle; a Revolução rechaçou a autoridade dos EUA. Desde 1898, os EUA trataram Cuba como um apêndice da sua economia. Os consórcios dos Estados Unidos possuíam as maiores centrais açucareiras de Cuba, as melhores terras, as companhias de telefone e de eletricidade, as minas e muito mais. O governo cubano, tal qual seus vizinhos do “quintal dos EUA”, obedeciam automaticamente os ditados da política de Washington.

A rebeldia da Revolução, a redução em 50% dos aluguéis e a aprovação de uma lei de reforma agrária sem nem mesmo pedir permissão, tudo isto conseguiu atrair finalmente a atenção de Washington. Palavras como “ditadura” e “comunista” começaram a aparecer rotineiramente nas reportagens dos órgãos de imprensa incentivados pelo governo.

A ilha de 6 milhões de habitantes, tendo como produto principal o açúcar, necessitava tanto dos recursos materiais como humanos para garantir uma verdadeira independência, e Washington tinha plena ciência disto. Alguns funcionários estadunidenses, escreveu E. W.  Kenworthy, “creem que o governo de Castro deve ‘passar o que passou Caim’ antes que compreenda a necessidade da ajuda de Washington e concorde com as medidas estabilizadoras que tornarão possível receber esta ajuda”.  (“Os problemas de Cuba põe a prova a política dos EUA”, NY Times, 26 de abril de 1959.)

Quando os líderes cubanos ignoraram ou ridicularizaram as advertências advindas de Washington, em março de 1960 o presidente Eisenhower autorizou uma operação encoberta para derrubar o governo cubano – que terminou em um fracasso na Bahia de Cochinos em abril de 1961. No entanto, em outubro de 1960, em resposta à nacionalização das propriedades estadunidenses por parte de Cuba – uma confrontação em escalada, tanto de ações de Cuba como de castigos de Washington – Eisenhower impôs um embargo a Cuba.
Porém, já em abril de 1960 o Departamento de Estado havia emitido suas orientações de castigo: “Devem tomar-se rapidamente todas as medidas possíveis para debilitar a vida econômica de Cuba... uma linha de ação que, ainda que seja tão hábil e inadvertida quanto possível, tenha êxito em negar dinheiro e suprimentos a Cuba, a fim de reduzir o dinheiro e os salários reais pra provocar a fome, o desespero e a queda do governo”. (Oficina do Historiador, Birô de Assuntos Públicos, Departamento de Estado; John P. Glennon e todos, editores, Relações Exteriores dos Estados Unidos, 1958-1960, Vol. VI, Cuba (em inglês), Washington D.C.: GPO, 1991, 885.)

Havana respondeu fazendo o impensável. Em 1961, Cuba se aliou com a União Soviética. Para garantir a independência, os líderes cubanos se tornaram dependentes da ajuda soviética. Em 1991, a derrocada soviética deixou os cubanos – por fim – em uma total “independência” política e sem apoio material externo para a manutenção da nação. O embargo adotou uma dimensão maior. Em 1959, os revolucionários de 20 a 30 anos não previram a ferocidade do castigo dos EUA e nem mesmo compreenderam que o pecado de desobediência se colocava mais para além dos ditados do poder dos EUA e chegava ao núcleo de um sistema global. Washington era a capital informal do mundo.

Neste papel, Washington atacou Cuba sem descanso – inclusive depois de os EUA terem deixado de exercer a hegemonia hemisférica. O mantra do controle ainda se infiltra pelas paredes dos escritórios de segurança nacional e por osmose penetra no cérebro dos burocratas: “Não permitimos uma insubordinação”. Os cubanos têm que pagar pela resistência que seus líderes apresentaram. A lição de Washington: é inútil resistir.
No mês passado, Raúl Castro informou aos cubanos a necessidade de reformas drásticas. A Revolução treinou, educou e curou a população cubana. Porém, admitiu Raúl, o Estado já não pode satisfazer algumas necessidades básicas que os cubanos assumiram como direitos humanos (ou direitos, somente). Um milhão de pessoas, anunciou, perderão seu trabalho; seriam reduzidos ou eliminados programas sociais.

A falta de produtividade dos cubanos – uma relaxada ética do trabalho, ineficiência burocrática e ausência de iniciativa – multiplicou-se junto com a corrupção. O embargo estadunidense provoca situações de escassez e  encoraja os delitos burocráticos. Um burocrata aumenta sua renda resolvendo os mesmos obstáculos que os burocratas ajudaram a criar.

Depois de mais de 51 anos, o castigo de Washington pareceu forçar Cuba a aceitar uma doutrina de choque, entretanto sem os custos sociais regressivos que a maioria dos países do Terceiro Mundo pagaram. Em 1980, um jamaicano comentou, depois que o Primeiro Ministro Manley se submeteu às duras medidas de austeridade do Fundo Monetário Internacional: “Fomos FMIados”

A Revolução cubana uma vez mais adentra um território que terá que cruzar até o fim. No entanto, os reformistas contam com grandes recursos: um povo com consciência social, absorvida durante décadas de educação e experiência.

Ainda assim, as trocas geopolíticas do mundo oferecem algumas vantagens aos líderes cubanos: China, Brasil e alguns Estados da União Européia se converteram em contrapesos aos estadunidenses de linha dura. Com um espaço de manobra, os cubanos poderiam evitar as piores consequências da obsoleta doutrina de choque que Washington mantém durante 50 anos.

* Saul Landau é membro do Instituto para Estudos de Política. Seu filme Por Favor, que se fique de pé o verdadeiro terrorista, estreou em dezembro no Festival de Cine de Havana. Nelson Valdés é Professor Emérito da Universidade do Novo México.

Tradução de Cainã Vidor. Publicado por Rebelión. Fonte: http://progreso-semanal.com/4/index.php?option=com_content&view=article&id=3048:el-contexto-de-la-crisis-de-cuba&catid=3:en-los-estados-unidos&Itemid=4. Foto por http://www.flickr.com/photos/jadis1958/.

"Ana de Holanda e ECAD atacam política de Lula"


O movimento de software livre, de recursos educacionais abertos e os defensores da liberdade e diversidade cultural votaram em Dilma pelos compromissos que ela afirmou em defesa do bem comum. No mesmo dia que a Ministra Ana de Holanda atacou o Creative Commons retirando a licença do site, a Ministra do Planejamento Miriam Belquior publicou a normativa que consolida o software livre como a essência do software público que deve ser usada pelo governo. É indiscutível o descompasso que a Ministra da Cultura tem em relação à política de compartilhamento do governo Dilma. O artigo é de Sergio Amadeu da Silveira.

Os defensores da indústria de intermediação e advogados do ECAD lançam um ataque a política de compartilhamento de conhecimento e bens culturais lançada pelo presidente Lula. Na sua jornada contra a criatividade e em defesa dos velhos esquemas de controle da cultura, chegam aos absurdos da desinformação ou da mentira.

Primeiro é preciso esclarecer que as licenças Creative Commons surgiram a partir do exemplo bem sucedido do movimento do software livre e das licenças GPL (General Public Licence). O software livre também inspirou uma das maiores obras intelectuais do século XXI, a enciclopédia livre chamada Wikipedia. Lamentavelmente, os lobistas do ECAD chegam a dizer que a Microsoft apóia o software livre e o movimento de compartilhamento do conhecimento.

Segundo, o argumento do ECAD de que defender o Cretaive Commons é defender grandes corporações internacionais é completamente falso. As grandes corporações de intermediação da cultura se organizam e apóiam a INTERNATIONAL INTELLECTUAL PROPERTY ALLIANCE® (IIPA, Associação internacional de Propriedade Internacional) e que é um grande combatente do software livre e do Creative Commons. O Relatório da IIPA de fevereiro de 2010 ataca o Brasil, a Malásia e outros países que usam licenças mais flexíveis e propõem que o governo norte-americano promova retaliações a estes países.

Terceiro, a turma do ECAD desconsidera a política histórica da diplomacia brasileira de luta pela flexibilização dos acordos de propriedade intelectual que visam simplesmente bloquear o caminho do desenvolvimento de países como o Brasil. Os argumentos contra as licenças Creative Commons são tão rídiculos como afirmar que a Internet e a Wikipedia é uma conspiração contra as enciclopédias proprietárias, como a Encarta da Microsoft ou a Enciclopédia Britânica.

Quarto, o texto do maestro Marco Venicio Andrade é falso até quando parabeniza a presidente Dilma por ter "restabelecido a soberania de nossa gestão cultural, anulando as medidas subservientes tomadas pelos que, embora parecendo modernos e libertários, só queriam mesmo é dobrar a espinha aos interesses das grandes corporações que buscam monopolizar a cultura". O blog do Planalto lançado pelo presidente Lula e mantido pela presidente Dilma continua com as licenças Creative Commons. Desse modo, os ataques que o defensor do ECAD fez a política dos commons lançada por Gilberto Gil, no MINC, também valem para a Presidência da República.

Quinto, o movimento de software livre, de recursos educacionais abertos e os defensores da liberdade e diversidade cultural votaram em Dilma pelos compromissos que ela afirmou em defesa do bem comum. No mesmo dia que a Ministra Ana de Holanda atacou o Creative Commons retirando a licença do site, a Ministra do Planejamento Miriam Belquior publicou a normativa que consolida o software livre como a essência do software público que deve ser usada pelo governo. É indiscutível o descompasso que a Ministra da Cultura tem em relação à política de compartilhamento do governo Dilma.

(*) Sergio Amadeu da Silveira é professor da UFABC. Sociólogo e doutor em Ciência Política. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e primeiro coordenador do Comitê Técnico de Implementação do Software Livre na gestão do presidente Lula.

Brasileiros entrevistam Julian Assange


“Não somos uma organização exclusivamente da esquerda. Somos uma organização exclusivamente pela verdade e pela justiça”. Essa é apenas uma das muitas afirmações feitas pelo fundador e publisher do WikILeaks, Julian Assange, em entrevista aos internautas brasileiros.

Julian, que enfrenta um processo na Suécia por crimes sexuais e atualmente vive sob monitoramento em uma mansão em Norfolk, na Inglaterra, concedeu a entrevista para internautas que enviaram perguntas a este blog.
Eu selecionei doze perguntas dentre as cerca de 350 que recebi – e não foi fácil. Acabei privilegiando perguntas muito repetidas, perguntas originais e aquelas que não querem calar. Infelizmente, nem todos foram contemplados. Todas as perguntas serão publicadas depois.
No final, os brasileiros não deram mole para o criador do WikiLeaks. Julian teve tempo de responder por escrito e aprofundar algumas questões.
O resultado é uma entrevista saborosa na qual ele explica por que trabalha com a grande mídia – sem deixar de criticá-la -, diz que gostaria de vir ao Brasil e sentencia: distribuir informação é distribuir poder.
Em tempo: se virasse filme de Hollywood, o editor do WikiLeaks diz que gostaria de ser interpretado por Will Smith.
A seguir, a entrevista.
Vários internautas - O WikiLeaks tem trabalhado com veículos da grande mídia – aqui no Brasil, Folha e Globo, vistos por muita gente como tendo uma linha política de direita. Mas além da concentração da comunicação, muitas vezes a grande mídia tem interesses próprios. Não é um contra-senso trabalhar com eles se o objetivo é democratizar a informação? Por que não trabalhar com blogs e mídias alternativas?
Por conta de restrições de recursos ainda não temos condições de avaliar o trabalho de milhares de indivíduos de uma vez. Em vez disso, trabalhamos com grupos de jornalistas ou de pesquisadores de direitos humanos que têm uma audiência significativa. Muitas vezes isso inclui veículos de mídia estabelecidos; mas também trabalhamos com alguns jornalistas individuais, veículos alternativos e organizações de ativistas, conforme a situação demanda e os recursos permitem.
Uma das funções primordiais da imprensa é obrigar os governos a prestar contas sobre o que fazem. No caso do Brasil, que tem um governo de esquerda, nós sentimos que era preciso um jornal de centro-direita para um melhor escrutínio dos governantes. Em outros países, usamos a equação inversa. O ideal seria podermos trabalhar com um veículo governista e um de oposição.
Marcelo Salles – Na sua opinião, o que é mais perigoso para a democracia: a manipulação de informações por governos ou a manipulação de informações por oligopólios de mídia?
A manipulação das informações pela mídia é mais perigosa, porque quando um governo as manipula em detrimento do público e a mídia é forte, essa manipulação não se segura por muito tempo. Quando a própria mídia se afasta do seu papel crítico, não somente os governos deixam de prestar contas como os interesses ou afiliações perniciosas da mídia e de seus donos permitem abusos por parte dos governos. O exemplo mais claro disso foi a Guerra do Iraque em 2003, alavancada pela grande mídia dos Estados Unidos.
Eduardo dos Anjos – Tenho acompanhado os vazamentos publicados pela sua ONG e até agora não encontrei nada que fosse relevante, me parece que é muito barulho por nada. Por que tanta gente ao mesmo tempo resolveu confiar em você? E por que devemos confiar em você?
O WikiLeaks tem uma história de quatro anos publicando documentos. Nesse período, até onde sabemos, nunca atestamos ser verdadeiro um documento falso. Além disso, nenhuma organização jamais nos acusou disso. Temos um histórico ilibado na distinção entre documentos verdadeiros e falsos, mas nós somos, é claro, apenas humanos e podemos um dia cometer um erro. No entanto até o momento temos o melhor histórico do mercado e queremos trabalhar duro para manter essa boa reputação.
Diferente de outras organizações de mídia que não têm padrões claros sobre o que vão aceitar e o que vão rejeitar, o WikiLeaks tem uma definição clara que permite às nossas fontes saber com segurança se vamos ou não publicar o seu material.
Aceitamos vazamentos de relevância diplomática, ética ou histórica, que sejam documentos oficiais classificados ou documentos suprimidos por alguma ordem judicial.
Vários internautas – Que tipo de mudança concreta pode acontecer como consequência do fenômeno Wikileaks nas práticas governamentais e empresariais? Pode haver uma mudança na relação de poder entre essas esferas e o público?
James Madison, que elaborou a Constituição americana, dizia que o conhecimento sempre irá governar sobre a ignorância. Então as pessoas que pretendem ser mestras de si mesmas têm de ter o poder que o conhecimento traz. Essa filosofia de Madison, que combina a esfera do conhecimento com a esfera da distribuição do poder, mostra as mudanças que acontecem quando o conhecimento é democratizado.
Os Estados e as megacorporações mantêm seu poder sobre o pensamento individual ao negar informação aos indivíduos. É esse vácuo de conhecimento que delineia quem são os mais poderosos dentro de um governo e quem são os mais poderosos dentro de uma corporação.
Assim, o livre fluxo de conhecimento de grupos poderosos para grupos ou indivíduos menos poderosos é também um fluxo de poder, e portanto uma força equalizadora e democratizante na sociedade.
Marcelo Träsel - Após o Cablegate, o Wikileaks ganhou muito poder. Declarações suas sobre futuros vazamentos já influenciaram a bolsa de valores e provavelmente influenciam a política dos países citados nesses alertas. Ao se tornar ele mesmo um poder, o Wikileaks não deveria criar mecanismos de auto-vigilância e auto-responsabilização frente à opinião pública mundial?
O WikiLeaks é uma das organizações globais mais responsáveis que existem.
Prestamos muito mais contas ao público do que governos nacionais, porque todo fruto do nosso trabalho é público. Somos uma organização essencialmente pública; não fazemos nada que não contribua para levar informação às pessoas.
O WikiLeaks é financiado pelo público, semana a semana, e assim eles “votam” com as suas carteiras.
Além disso, as fontes entregam documentos porque acreditam que nós vamos protegê-las e também vamos conseguir o maior impacto possível. Se em algum momento acharem que isso não é verdade, ou que estamos agindo de maneira antiética, as colaborações vão cessar.
O WikiLeaks é apoiado e defendido por milhares de pessoas generosas que oferecem voluntariamente o seu tempo, suas habilidades e seus recursos em nossa defesa. Dessa maneira elas também “votam” por nós todos os dias.
Daniel Ikenaga – Como você define o que deve ser um dado sigiloso?
Nós sempre ouvimos essa pergunta. Mas é melhor reformular da seguinte maneira: “quem deve ser obrigado por um Estado a esconder certo tipo de informação do resto da população?”
A resposta é clara: nem todo mundo no mundo e nem todas as pessoas em uma determinada posição. Assim, o seu médico deve ser responsável por manter a confidencialidade sobre seus dados na maioria das circunstâncias – mas não em todas.
Vários internautasEm declarações ao Estado de São Paulo, você disse que pretendia usar o Brasil como uma das bases de atuação do WikiLeaks. Quais os planos futuros?  Se o governo brasileiro te oferecesse asilo político, você aceitaria?
Eu ficaria, é claro, lisonjeado se o Brasil oferecesse ao meu pessoal e a mim asilo político. Nós temos grande apoio do público brasileiro. Com base nisso e na característica independente do Brasil em relação a outros países, decidimos expandir nossa presença no país. Infelizmente eu, no momento, estou sob prisão domiciliar no inverno frio de Norfolk, na Inglaterra, e não posso me mudar para o belo e quente Brasil.
Vários internautasVocê teme pela sua vida? Há algum mecanismo de proteção especial para você? Caso venha a ser assassinado, o que vai acontecer com o WikiLeaks?
Nós estamos determinados a continuar a despeito das muitas ameaças que sofremos. Acreditamos profundamente na nossa missão e não nos intimidamos nem vamos nos intimidar pelas forças que estão contra nós.
Minha maior proteção é a ineficácia das ações contra mim. Por exemplo, quando eu estava recentemente na prisão por cerca de dez dias, as publicações de documentos continuaram.
Além disso, nós também distribuímos cópias do material que ainda não foi publicado por todo o mundo, então não é possível impedir as futuras publicações do WikiLeaks atacando o nosso pessoal.
Helena Vieira - Na sua opinião, qual a principal revelação do Cablegate? A sua visão de mundo, suas opiniões sobre nossa atual realidade mudou com as informações a que você teve acesso?
O Cablegate cobre quase todos os maiores acontecimentos, públicos e privados, de todos os países do mundo – então há muitas revelações importantíssimas, dependendo de onde você vive. A maioria dessas revelações ainda está por vir.
Mas, se eu tiver que escolher um só telegrama, entre os poucos que eu li até agora – tendo em mente que são 250 mil – seria aquele que pede aos diplomatas americanos obter senhas, DNAs, números de cartões de crédito e números dos vôos de funcionários de diversas organizações – entre elas a ONU.
Esse telegrama mostra uma ordem da CIA e da Agência de Segurança Nacional aos diplomatas americanos, revelando uma zona sombria no vasto aparato secreto de obtenção de inteligência pelos EUA.
Tarcísio Mender e Maiko Rafael Spiess - Apesar de o WikiLeaks ter abalado as relações internacionais, o que acha da Time ter eleito Mark Zuckerberg o homem do ano? Não seria um paradoxo, você ser o “criminoso do ano”, enquanto Mark Zuckerberg é aplaudido e laureado?
A revista Time pode, claro, dar esse título a quem ela quiser. Mas para mim foi mais importante o fato de que o público votou em mim numa proporção vinte vezes maior do que no candidato escolhido pelo editor da Time. Eu ganhei o voto das pessoas, e não o voto das empresas de mídia multinacionais. Isso me parece correto.
Também gostei do que disse (o programa humorístico da TV americana) Saturday Night Live sobre a situação: “Eu te dou informações privadas sobre corporações de graça e sou um vilão. Mark Zuckerberg dá as suas informações privadas para corporações por dinheiro – e ele é o ‘Homem do Ano’.”
Nos bastidores, claro, as coisas foram mais interessantes, com a facção pró- Assange dentro da revista Time sendo apaziguada por uma capa bastante impressionante na edição de 13 de dezembro, o que abriu o caminho para a escolha conservadora de Zuckerberg algumas semanas depois.
Vinícius Juberte – Você se considera um homem de esquerda?
Eu vejo que há pessoas boas nos dois lados da política e definitivamente há pessoas más nos dois lados. Eu costumo procurar as pessoas boas e trabalhar por uma causa comum.
Agora, independente da tendência política, vejo que os políticos que deveriam controlar as agências de segurança e serviços secretos acabam, depois de eleitos, sendo gradualmente capturados e se tornando obedientes a eles.
Enquanto houver desequilíbrio de poder entre as pessoas e os governantes, nós estaremos do lado das pessoas.
Isso é geralmente associado com a retórica da esquerda, o que dá margem à visão de que somos uma organização exclusivamente de esquerda. Não é correto. Somos uma organização exclusivamente pela verdade e justiça – e isso se encontra em muitos lugares e tendências.
Ariely Barata – Hollywood divulgou que fará um filme sobre sua trajetória. Qual sua opinião sobre isso?
Hollywood pode produzir muitos filmes sobre o WikiLeaks, já que quase uma dúzia de livros está para ser publicada. Eu não estou envolvido em nenhuma produção de filme no momento.
Mas se nós vendermos os direitos de produção, eu vou exigir que meu papel seja feito pelo Will Smith. O nosso porta-voz, Kristinn Hrafnsson, seria interpretado por Samuel L Jackson, e a minha bela assistente por Halle Berry. E o filme poderia se chamar “WikiLeaks Filme Noire”.

Divórcio litigioso, vizinhos inquietos


O sul decide separar-se. Isso pode ser bom para o novo país, mas alimenta o fundamentalismo no mundo árabe

O plebiscito sobre a separação do Sudão do Sul realizou-se de 9 a 15 de janeiro sem incidentes graves e com comparecimento de 96%, quando um mínimo de 60% o validaria. Na quinta-feira, 19 de janeiro, já tinham sido contados bem mais que o 1,89 milhão de votos necessários para aprovar a independência. Na capital regional, Juba, o “sim” à secessão recebeu 211.018 votos e o “não”, 3.650; e em várias partes do interior, mais de 99% votam pela separação. Quais serão as consequências?
Sul e norte do Sudão são bem diferentes. O sul, com 20% da população e 25% do território, é formado por florestas, savanas e pântanos, e habitado por africanos negros não islamizados, que na maioria são das etnias dinka, nuer, shilluk e azande, e praticam cultos étnicos tradicionais, mesmo se a imprensa ocidental insiste em considerar a região como “cristã”. O norte é árido, na grande maioria islâmico e culturalmente árabe, embora haja muitas -etnias e tribos, e a população descenda em grande parte de núbios, bejas, hauçás e outros povos de pele negra, alguns dos quais falam suas próprias línguas.
Mas praticamente não há nação africana que não seja multiétnica e muitas etnias atravessam fronteiras nacionais – os hauçás, por exemplo, se espalham do Sudão à Costa do Marfim, com maior concentração na Nigéria. Desde a descolonização, havia uma regra não escrita pela qual as fronteiras africanas herdadas do período colonial, por arbitrárias que fossem, seriam respeitadas. Considerá-las ilegítimas seria agravar com o caos de mais guerras civis e internacionais sem fim o sofrimento de um continente já conturbado.
Em 1960, a separação  de Katanga do Congo foi apoiada pela Bélgica, que esperava assim manter o controle das riquezas minerais da ex-colônia, mas não foi reconhecido e acabou derrotado e reincorporado três anos depois. O mesmo aconteceu, entre 1967 e 1970, quando a região separatista do sudeste da Nigéria, com o nome de Biafra, mesmo tendo o apoio de França, Portugal, África do Sul e Israel, foi reconhecida por apenas três pequenas nações da África negra. Embora governem de fato, os governos de Somalilândia e Puntlândia, formados a partir de partes da Somália nos anos 90, são ignorados pela comunidade internacional.
O Egito anexou o Sudão em 1820, mas em 1879 as potências europeias intervieram no Cairo para impor um governante impopular e incompetente. Uma das consequências foi o surgimento no Sudão, em 1885, do mahdismo, um movimento teocrático muçulmano que lutou contra o Egito e seus patronos europeus até 1899. Quando os mahdistas foram derrotados por tropas britânicas, o Sudão tornou-se, na prática, mais uma colônia de Londres, embora teoricamente compartilhada com o  Cairo.
Quando o Egito recuperou sua independência de fato, com Nasser, os britânicos preferiram dar a independência ao Sudão, em 1956, a devolvê-lo. Mas o sul, que os britânicos governavam em separado, rebelou-se contra Cartum já em 1955 e a prosseguiu em fogo lento até 1972, quando um acordo celebrado em Adis-Abeba deu à região autonomia e dez anos de paz.
Em 1983, o presidente  Gaafar Nimeiry rompeu o acordo ao transformar o Sudão em república federativa, dividir o Sul em vários estados e impor leis de caráter islâmico a todo o país. As tropas do sul se rebelaram sob a liderança do coronel John Garang e a guerra civil se reiniciou. Nimeiry caiu em 1985 e no ano seguinte, celebradas (apenas no norte) as últimas eleições livres no país, mas o presidente Ahmad Al-Mirghani foi deposto em 1989 pelo general Omar Al-Bashir, ainda hoje no poder.
Al-Bashir perseguiu oposicionistas, impôs a sharia no norte, convidou Osama bin Laden a se estabelecer no país, fez um acordo com o líder rebelde Riek Machar e a seu lado aprofundou a ofensiva no sul, retomando a maior parte do território. Mas os rebeldes de Garang conseguiram o apoio do Ocidente, apresentando a guerra como uma campanha de Cartum para impor o Islã e a língua árabe ao sul “cristão”. Após uma trégua de seis meses em 1995, mediada por Jimmy Carter, Al-Bashir endureceu ainda mais o regime e buscou o apoio de fundamentalistas, embora também fizesse Bin Laden deixar o país pelo Afeganistão, por pressão do Egito. O Sudão foi tachado de “Estado terrorista” e, em 1998, Bill Clinton tentou desviar a atenção do público do escândalo extraconjugal com Monica Lewinsky, fazendo-o de bode expiatório: bombardeou uma suposta fábrica de armas químicas perto de Cartum, que, provou-se mais tarde, era apenas um laboratório farmacêutico.
Nos anos 2000, pressionado pelo isolamento internacional e pela eclosão de outras guerras civis em Darfur e no Sudão Oriental, Al-Bashir procurou apaziguar o Ocidente e fazer um acordo com o sul. Embora seu regime continuasse extremamente autoritário, em janeiro de 2005 negociou um acordo em Nairóbi que devolveu a autonomia ao sul e previu o plebiscito sobre a separação em seis anos, agora realizado. As regiões petrolíferas, situadas na área limítrofe, seriam partilhadas. O governo Obama ofereceu a Al-Bashir retirar as sanções que pesam contra o país e perdoar parte da dívida se o compromisso fosse cumprido.
Apesar de a guerra continuar em outras regiões do Sudão, no sul foi praticamente encerrada, salvo incidentes isolados, deixando 1,9 milhão de mortos, na maioria civis. Garang tornou-se presidente da região  e vice do Sudão, até o fim do prazo. Falecido em um acidente de helicóptero ainda em 2005, foi substituído por Salva Kiir Mayärdït, ainda no posto.
Dada a duração e amargura do conflito, pode ser que a separação seja a solução menos ruim para o Sudão do Sul e a União Africana tenha razão ao aceitar essa exceção à sua regra. Mas, ao ocorrer em um contexto de atritos entre o Islã e o Ocidente, nutre o fundamentalismo muçulmano. No Egito e no norte do Sudão, chefes religiosos alegam fraude e ligam a divisão do país à luta sectária no Iraque como parte de um plano global de balcanizar e enfraquecer o mundo islâmico. Um líder fundamentalista foi preso em Cartum ao pedir ao povo para se rebelar “como na Tunísia”. O preço da paz no sul do Sudão pode ser mais violência no Norte da África e Oriente Médio.

Antonio Luiz M. C. Costa

Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.

Governo cria agenda de combate à violência sexual e ao racismo


O combate à violência sexual contra meninas e mulheres foi tema do encontro entre as ministras da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Maria do Rosário, e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Iriny Lopes, realizado nesta terça-feira (25), em Brasília.

Segundo as ministras, a proposta do encontro é criar uma ação unificada do governo federal para o enfrentamento da violência sexual no Brasil.

“Vamos montar uma agenda integrada que potencialize a nossa causa. A menina e a mulher que sofrem a exploração sexual são do mesmo gênero”, afirmou a ministra Maria do Rosário.

Um estudo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), publicada em dezembro do ano passado, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indica que cerca de 2,5 milhões de pessoas com 10 anos ou mais sofreram agressões físicas em 2009.

Deste total, 40% eram mulheres (cerca de 1.081.000). Um terço delas foram agredidas por parentes, companheiros ou ex, que foram responsáveis por mais de um quarto do total de agressões (25,9% ou cerca de 280 mil).

Isso significa que a cada dois minutos ocorre uma agressão contra a mulher no Brasil (são, em média, 767 por dia, 32 por hora ou uma a cada 30 segundos). Outro dado reforça a natureza doméstica da agressão contra a mulher: mais de um quarto delas (25,4%) ocorrem dentro da própria residência.

Tráfico de seres humanos

A ministra Iriny Lopes salientou que também é necessário realizar um trabalho focado no combate ao tráfico de seres humanos. Ela pediu apoio da SDH nesse esforço.

“O nosso trabalho tem muitas afinidades. Uma mulher que é traficada está sofrendo graves violações dos seus direitos humanos”, disse.

Racismo

O respeito e a igualdade étnico-racial e os impactos do racismo na infância também estão no foco do governo federal. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), além de outros órgãos do governo, estão apoiando a campanha do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) sobre o tema: “Em um mundo de diferenças, enxergue a igualdade”.

Para o Unicef, a discriminação racial não apenas persiste no cotidiano das crianças no Brasil, como também se reflete nos números da desigualdade entre negros, indígenas e brancos.

Com a campanha, a entidade pretende fazer um alerta sobre a necessidade da quebra do círculo vicioso do racismo para, dessa forma, estimular a criação e o fortalecimento de políticas públicas voltadas para as populações mais vulneráveis.

Ainda segundo a entidade, a luta contra o racismo implica a valorização das diferenças e a promoção da igualdade de tratamento e oportunidades.

Para sensibilizar a sociedade, reforçando os direitos de crianças e adolescentes, a campanha vai divulgar histórias de pessoas e organizações que realizaram ações contra o racismo na infância ou adolescência.

Estatísticas

Dados do IBGE/Pnad 2009 apontam que 57 milhões de crianças e adolescentes vivem no Brasil, e, desse número, 31 milhões são negras e cerca de 100 mil indígenas.

Segundo o IBGE/Pnad, das 530 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola, cerca de 330 mil (62%) são negras e 190 mil brancas.

Ministério da Saúde

A violência doméstica, sexual e outras violências contra a mulher também integram a lista de eventos de notificação compulsória relacionados pelo Ministério da Saúde, em Portaria publicada nesta quarta-feira (26) no Diário Oficial da União. A Portaria padroniza critérios, procedimentos e atribuições dos profissionais de saúde em relação a diversas doenças e eventos de saúde pública.

A notificação deve ser feita obrigatoriamente quando a mulher for atendida em serviços de saúde públicos ou privados, e vale para todos os profissionais de saúde, tais como médicos, enfermeiros, odontólogos, biomédicos e farmacêuticos, entre outros.

Com informações do Blog do Planalto via Portal Vermelho

Violações aos direitos humanos não revogam concessões no Brasil

Pedro Caribé - Observatório do Direito à Comunicação
Relacionar o controle público dos meios de comunicação a regulação de conteúdo se consolidou como um dos maiores tabus do Brasil nos últimos oito anos. O pavor que a pauta se aproximasse da censura foi instaurado pelos grandes empresários, esparramou-se pela classe política, até chegar no cidadão comum. Assim, setores do governo e organizações sociais foram transformados em algozes por defender a permanência do termo.

Sem os mesmos espaços para se explicar, qualquer reivindicação associada ao conteúdo se confrontou com reações desprorporcionais, quando o teor, na maioria das vezes, solicitava apenas o cumprimento da legislação ou enquadramento do país a acordos internacionais.

O resultado é que pouca coisa avançou no Brasil em termos de regulação de conteúdo e o pior, esse tema se tornou um dos maiores obstáculos para a sociedade compreender a natureza pública da comunicação e o porque de se realizar reformas imediatas no Marco Regulatório.

Laurindo Leal Filho, apresentador do Ver Tv na Tv Brasil, narra que nos últimos 15 anos a sociedade civil aumentou seu senso crítico, enquanto a televisão buscou formatos apelativos para disputar a audiência. Para ele os caminhos das reivindicações de conteúdo sempre foram democráticos tornando importantes sua manutenção: "O que aconteceu é que houve confusão deliberada para caracterizar regulação de conteúdo com censura, proibição. Isso ajuda desqualificar discussões mais amplas como propriedade cruzada".

Professor aposentado da USP, Laurindo explana que resumir a questão ao controle remoto é argumento dos concessionários, sem sustentação na realidade nacional: "O que é oferecido ao público é via interesse comercial. Colocam no ar programação semelhante. Qual a consequência? Ao telespectador não sobra alternativa na programação", defende o professor.

Violações sem punições

Ao final do Governo Lula nenhuma concessão de rádio e televisão foi revogada por violar os direitos humanos, em contrapartida iniciativas para acabar com a sensação de impunidade dos radiodifusores se ploriferaram na sociedade civil. Pouco a pouco observatórios e campanhas se estabeleceram em busca do cumprimento a legislação federal e dos tratados internacionais nos quais o país é signatário.

O governo federal tentou corresponder a essas reivindicações e teve como principal ato o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Porém o bombardeio dos setores conservadores foi intenso, tendo resoluções e ações modificadas na calada da noite , para felicidade dos radiodifusores.

Laurindo acha que o Brasil está na "idade da pedra" em termos de regulação da mídia e relaciona o PNDH com a necessidade de um caderno de encargos, inexistente no país: "É preciso assumir uma série de compromissos com o concedente, um destes seria o de respeito aos DH, dentro da Lei brasileira e acordos internacionais".

Para Bia Barbosa, associada do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, a Classificação Indicativa foi o único trunfo do Governo Lula e no recuou do PNDH-3: "Ficou explício que o governo não pretendia mesmo comprar nenhum enfrentameno neste sentido com os donos da mídia", e continua: "Somente nos últimos meses o discurso mudou, com a realização de um seminário internacional no país, promovido pela Secom, que apresentou inúmeros exemplos de regulação democrática de conteúdo em diferentes nações".

Ministério Público

Sem ter acolhimento no executivo e legislativo em Brasília, o Ministério Público, seja estadual ou federal, se tornou o principal aliado das entidades. O caso de maior êxito da parceria foi com o Ministério Público Federal, quando o programa Tardes Quentes da RedeTV!, apresentado por João Kléber, esnobou dos convites da justiça para adequar sua programação e teve a transmissão suspendida por 30 dias em 2005. No lugar foi exibido o programa Direitos de Respostas, realizado por um conjunto de de organizações.

A campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, iniciada em 2002, chegou ao seu 18º ranking no fim de 2010 e programas como o Pânico na TV (Rede TV), Big Brother Brasil (Rede Globo) e Brasil Urgente (Band) são costumeiros frequentadores dos primeiros lugares, mas até o momento nenhuma medida contundente foi tomada.

Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal é responsável direta pela criação e continuidade da campanha e tem como presidente Janete Pietá, única deputada federal mulher pelo PT paulista. Pietá adianta que o tema levantará discussões profundas no Congresso, mas por enquanto a única estratégia a seguir é "mudar de canal": "A medida que a população começar a rejeitar, mudando de canal, fazendo críticas, isso vai mostrar que não são alguns grupos, mas grande parte da população".

Nahr Al-Bared : a nova face dos campos palestinos do Líbano?


“Não é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia, três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem motivo aparente”
por Marina da Silva no LeMonde-Brasil
“A situação no campo de Nahr al-Bared é um desastre.” Quantas vezes já ouvimos essa afirmação categórica? Nós mesmos precisamos de oito dias só para conseguir permissão para entrar – e, mesmo assim, sob escolta militar – nesse campo palestino localizado dez milhas ao Norte de Trípoli, onde o grupo Fatah al-Islam e o exército libanês se enfrentaram, de 20 maio a 2 setembro de 20071. Após o combate, os saques continuaram, 95 % do antigo campo foram destruídos e os arredores completamente devastados. Fechados em uma área dita temporária (e de confinamento), assustadora, protegida de todos os olhares, dois terços dos seus 30 mil refugiados voltaram para o campo.
Nahr al-Bared era o segundo campo de refugiados palestino em número de habitantes. E era também um dos mais tranquilos e dos menos cercados. Criado em 1949 em uma área de mero 0,2 km2, primeiramente com barracas, e em seguida com um emaranhado de estruturas mais sólidas (feitas de pedra, alvenaria e concreto), ele é limitado a Noroeste pelo mar que os habitantes chamavam de “o mar de pobres”, porque trazia com ele toda a poluição da cidade industrial. Com o crescimento contínuo da população, o campo se estendeu a duas cidades vizinhas, Bhanin e Muhmarra, em uma área quatro vezes maior, mas menos povoada, comumente chamada de “novo campo”.
“Ele era um verdadeiro centro de atividade, o único campo onde havia muitas joalherias”, conta Hodda, que chegou a trabalhar ali regularmente, com a associação de mulheres Najdeh. “Os libaneses também iam até lá para fazer compras, algumas vezes comprar mercadorias contrabandeadas da Síria.” Isso agora é passado. Os habitantes se sentem traídos. “Eles evacuaram o campo a pedido do exército e de organizações palestinas, mas para eles a rendição de cerca de 400 jihadistas não pode justificar uma destruição dessa dimensão”.
A primeira onda de refugiados a voltar, em outubro de 2007, sofreu um choque terrível: “O campo tinha sido completamente arrasado por tratores. Nossas casas foram saqueadas, roubadas, nossos locais de culto profanados. Nós havíamos deixado tudo nelas. Eu não tenho uma única foto. Perdemos tudo! Até mesmo nossa memória”, lamenta-se Abu Ghassan, que encontramos em Chatila, em Beirute, onde 200 famílias estão instaladas. Mas grande parte da população, cerca de oito mil pessoas, foi obrigada a se instalar em Badaoui, um outro campo de refugiados palestino ao lado de Trípoli, que viu sua população dobrar em 2007. Foi preciso mais de um ano para resolver os problemas ligados ao acolhimento desses refugiados, graças ao Escritório de Socorro e de Trabalhos das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA, em inglês), e ao conjunto das organizações palestinas do campo. Foram abertas mais duas outras escolas, feitas de material pré-moldado. Algumas famílias ainda estão dormindo nas garagens transformadas em casas, mas a maior pobreza fica mesmo no lado do chamado “novo campo”.
"Não é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia, três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem motivo aparente", declara Khaled. Toda a área se transformou em zona militar, proibida aos estrangeiros. Somente os palestinos que viviam ou trabalhavam ali e os funcionários da UNRWA ou de outras organizações não-governamentais (ONGs) podem entrar.
No antigo campo, os trabalhos acabaram de começar. “Precisamos de mais de um ano e meio para limpar o terreno, sendo que após a guerra israelense de 2006 as pessoas voltaram imediatamente para casa, apesar das milhares de bombas lançadas sobre o Sul”, explica Khaled. No “novo campo”, as famílias são obrigadas a viver entre ruínas e escombros. Eles reconstruíram suas casas com as próprias mãos – nuas! Corredores de pré-fabricados abandonados são utilizados como abrigos temporários. Uns poucos pontos de comércio foram reabertos, mas raros são os clientes que conseguem cruzar as barragens impostas pelo exército.
“Para os palestinos, haverá um antes e um depois de Nahr Al-Bared”,diz Ali Hassan. Eles acreditaram por muito tempo que seu futuro estaria ligado a Ain El-Heloueh, o grande campo de Sidom, que sempre foi o foco das atenções. Ali, a presença de grupos jihadistas já é antiga2, e os incidentes frequentes. Mas as organizações palestinas continuam fortes o bastante para manter a segurança. E, sobretudo, “os extremistas são eles próprios oriundos do campo. Ali eles têm suas famílias e não estão dispostos ao enfrentamento. Em Nahr al-Bared, eles foram introduzidos em 2006 e na maioria das vezes nem eram palestinos, mas libaneses, sauditas, iemenitas, iraquianos etc. De onde eles vinham ? A quais interesses serviam ?”Essas são questões importantes3,mas que acabam por ocultar a questão central : os direitos dos refugiados palestinos no Líbano.
 “A recusa de sua instalação definitiva (tawtin) é afirmada tanto na Constituição quanto lembrada nos Acordos de Taif4. Mas essa recusa é um disfarce para o tratamento discriminatório”, resume Sari Hanafi, professor de sociologia da universidade americana de Beirute5.Ele vê uma melhora na recente alteração da legislação trabalhista, que permite que os palestinos exerçam certo número de atividades até então proibidas – apesar de as profissões liberais continuarem proibidas. Mas ele lembra que a lei proibindo a eles o acesso à propriedade, promulgada em 2001, [também] ainda está em vigor e foi um dos principais obstáculos à reconstrução de Nahr al-Bared, o que obrigou o Estado a comprar o terreno.
Membro da Comissão de Reconstrução de Nahr al-Bared, ele observa: “Muitos campos de refugiados palestinos já foram destruídos no Líbano, mas essa é a primeira vez que um deles é reconstruído. Esse é um projeto piloto, bastante incomum, realizado em coordenação com os refugiados, as organizações palestinas, o Comitê de Diálogo Líbano-palestino, as autoridades libanesas e a UNRWA.”
Para UNRWA, esse é o projeto mais importante de sua história, onde aposta toda sua credibilidade. Há dois anos, Salvatore Lombardo é o seu responsável, se lançando de corpo e a alma. “Se nós falharmos, causaremos com toda certeza grandes desilusões e convulsões sociais que poderiam afetar a estabilidade do Norte do Líbano. Espero que os libaneses não sejam acometidos de cegueira política”.
Foi necessário um ano e meio para desenvolver os planos: “Primeiro tivemos de reconstruir cada lugar, cada rua, chegar a um acordo sobre sua localização, superfície e, posteriormente, sobre sua transformação, além de obter o consentimento das famílias. Você pode imaginar os recursos necessários para desenvolver todo esse trabalho!” Os arquitetos levaram em conta o tecido sociológico de Nahr al-Bared, organizado, como na maioria dos campos, em função de relações da vizinhança de locais de origem na Palestina antes de 1948. Foram feitas reuniões com os moradores, muitos dos quais são originários dos vilarejos de Safouri e Saf-Saf, na Galileia.
A situação ficou complicada quando foi preciso submeter o master plan ao governo, que fez uma série de restrições: não mais de quatro andares para os prédios (regra usual para os campos), com possibilidade de ter um balcão ou um terraço só no terceiro e quarto andares, de modo a proibir o acesso da rua, em caso de agitações. Nenhuma construção no subsolo. Estradas mais largas: de pelo menos quatro metros e meio, dimensão que permite a passagem de um tanque. No final, uma perda estimada de pelo menos 15 % da superfície de ocupação, para cada família.
Finalmente aprovado o master plan ainda precisa ser executado. Ele foi dividido em oito zonas de reconstrução (chamadas de packages), cada uma das quais precisa, por sua vez, ser validada pelo ministério do Planejamento. Outros obstáculos têm surgido, como a descoberta, em março-abril de 2009, dos restos arqueológicos de Orthosia, o que bloqueou o trabalho por sete meses, forçando a UNRWA a indenizar o departamento de Antiguidades. Ou, em meados de 2009, a moratória pedida pelo general Michel Aoun, líder cristão do Movimento Patriótico Livre, o que levou a uma nova interrupção. O medo da instalação dos palestinos6, o que alteraria o equilíbrio religioso no Líbano e visto como uma desistência do direito de regresso, por parte dos refugiados, é compartilhado por todos os partidos políticos libaneses.
O montante necessário para reconstruir o velho campo foi estimado em 328 milhões de dólares. Foi pago apenas um terço, ou seja, 119 milhões de dólares, e ainda faltam 46 milhões para finalizar as packages 3 e 4 – o que equivale apenas à metade do antigo campo. A agência sempre divulga o andamento dos trabalhos, a fim de convencer os doadores (até agora, essencialmente a Comissão Europeia, os Estados Unidos e Arábia Saudita), que haviam se comprometido, já por ocasião do final confrontos e da conferência de Viena, em junho de 20087.
Quanto ao novo campo, sua reabilitação foi deixada por conta dos próprios habitantes, uma vez que a agência não dispõe de recursos para reconstruí-lo. Ela tem apenas um orçamento de ajuda emergencial que permite que ele funcione.
“Restam ainda cerca de 300 unidades pré-fabricadas. A UNRWA sugeriu à população que elas fossem fechadas, em especial neste verão, quando a temperatura chegou a 45 graus, mas as pessoas se recusam a ir embora, por terem demasiado medo, e por quererem marcar com sua presença a determinação de voltar para casa.”As famílias que estão fora do campo recebem assistência habitacional. No começo de 200 dólares, esse auxílio foi reduzido a 150 dólares no segundo semestre de 2009. Enquanto o aluguel médio na região aumentou de 75 para 250 dólares.
Para as organizações palestinas, a reconstrução do campo é um consenso. “Perdemos a batalha de Nahr al-Bared”, reconhece Jemal Chehabi, líder político do Hamas no norte do Líbano. “Nós não conseguimos evitar sua destruição e agora somos responsáveis por sua reconstrução”. Já o representante do Fatah em Badaoui, Abou Jihad Fayad, considera que “o campo de Nahr al-Bared foi um incidente que atingiu tanto os palestinos quanto o exército”,mas lembra: “Prioritariamente, as pessoas estão esperando para voltar à para a Palestina.”
Esse é o primeiro dossiê no qual a Fatah e o Hamas cooperam, um passo importante ressaltado por Abdallah Abdallah, o novo embaixador da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) em Beirute: “Estamos trabalhando para criar uma delegação unificada. Não queremos que a questão seja tratada meramente sob o ângulo da segurança, é necessário levar em consideração nossos direitos políticos e melhorar a situação humanitária. Queremos desconstruir os estereótipos ligados à imagem dos campos. Temos necessidade de segurança e as autoridades libanesas também. Precisamos trabalhar juntos. Os tratamentos discriminatórios podem levar a uma situação de explosão8. Para nós, o importante é manter contacto com a população, e a confiança em nossa própria força.”
Responsável pelo dossiê para a OLP e diretor da Comissão Superior de Nahr al-Bared, Marwan Abdelall, conhece bem o campo, onde ficou sitiado por três meses. Segundo ele, os vários obstáculos para a reconstrução foram vencidos, mas o problema da liberdade de acesso persiste: “Os postos de controle arbitrários, o arame farpado, o controle de deslocamentos dentro e fora do campo, com a exigência de autorizações a todos os moradores – tudo isso não pode continuar.” Ele acrescenta: “Em fevereiro de 2009, o ministério da Defesa tentou instalar uma base naval na orla do antigo campo. Acabou desistindo, mas estamos preocupados com o projeto de uma delegacia de polícia dentro do campo.” Na verdade, cinco milhões de dólares estariam destinados para a segurança no interior do campo, despesas até agora assumidas pelas organizações palestinas, obedecendo a uma disposição do documento de Viena.
Esse dispositivo assusta a população, que vê nele uma ameaça para todo o Líbano. “Será como uma colônia israelense. Um teste que conduzirá à expansão do controle do exército aos outros campos de refugiados”, lamenta Oum Tarek.

1 Os confrontos resultaram na morte de 47 civis e 163 militares, 220 membros do grupo e na detenção de centenas de outros ainda aguardam julgamento, enquanto alguns conseguiram escapar.
2 Ver Bernard Rougier, Le djihad au quotidien, PUF, Paris, 2004.
3 LerFidaa Itani, “Enquête sur l’implantation d’Al-Qaida au Liban, e Vicken Cheterian, “Désarroi des militants au Liban », Le Monde diplomatique, respectivamente fevereiro e dezembrode  2008.
4 Acordos assinados em 22 de outubro de 1989, e que puseram fim à guerra civil.
5 State of Exception and Resistance in The Arab World, Center for Arab Unity Studies, Beirute, 2010.
6 A recusa de sua implantação foi lembrada pelo presidente Michel Sleimane na assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 26 de setembro de 2010.
7 Por iniciativa dos governos do Líbano e da Áustria, da Liga Árabe e da União Europeia (UE), e com a participação de delegações de vários países do mundo árabe, Europa, Estados Unidos, China, Japão e representantes das instituições financeiras envolvidas na cooperação e apoio aos refugiados palestinos. O documento de Viena prevê ainda o reforço da segurança no interior do campo de Nahr al-Bared.
8 Sobre a situação do conjunto dos campos do Líbano, ver também o relatório do International Crisis Group, “Nurturing instability : Lebanon’s Palestinian refugees camps”, Bruxelas, fevereiro de 2009.