Por José Reinaldo Carvalho no
GRABOIS
Quando no início dos anos 1990, o ex-presidente dos Estados
Unidos, George Bush, em meio aos acontecimentos que conduziram ao fim da
Guerra Fria e à primeira Guerra contra o Iraque, proclamou o advento da
chamada Nova Ordem Mundial, estava na verdade anunciando um plano de
dominação global cujas conseqüências se abateram sobre a humanidade ao
longo das duas últimas décadas.
A
proclamação da “nova ordem” visava a estabelecer os meios e modos para
percorrer “o novo século americano”. Seguiu-se um período de uso
indiscriminado da força bruta, desprezo pela legalidade internacional e
pelas instituições multilaterais, militarização crescente das relações
internacionais, decisões unilaterais, desprezo às Nações Unidas,
dominação unipolar e imposição da primazia dos interesses estadunidenses
no mundo.
A posição internacional dos Estados Unidos foi marcada pela denominada
guerra infinita ou permanente ao terrorismo, que ao ser identificado não
só com organizações e redes informais, mas com Estados nacionais
classificados como integrantes do chamado eixo do mal, assumiu todos os
contornos de guerras de agressão contra países e povos, sob o pretexto
de promover ataques preventivos contra os que eram considerados
terroristas ou protetores do terrorismo.
Em decorrência disso, foram desencadeadas as guerras de agressão ao
Afeganistão e ao Iraque e de Israel ao Líbano e ao povo palestino.
Países independentes, como a Síria, o Irã e a República Popular
Democrática da Coréia, por motivações diversas, foram alvo de campanhas e
ameaças de agressão. Surgiram novos focos de tensão, com a guerra do
Cáucaso, a expansão da Otan para o leste da Europa e a afirmação de novo
conceito estratégico desse braço armado do imperialismo que
institucionalizou sua presença em conflitos fora da Europa. A
militarização se intensificou com a proliferação de bases militares, a
criação do Comando Africano (Africom), a competição naval no Oceano
Indico e o relançamento da Quarta Frota da Marinha de Guerra dos Estados
Unidos na América Latina.
Nada mudou
Com a eleição do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em
novembro de 2008, a humanidade foi envolvida pela ilusão em uma mudança
de rumos na situação internacional, que se traduziria na abertura de uma
nova era de paz, convivência democrática entre as nações, segurança,
respeito ao direito internacional, vigência dos direitos humanos e
restauração do multilateralismo sob a égide de uma Organização das
Nações Unidas reformada e pró-ativa na solução pacífica dos conflitos.
Tais expectativas foram alimentadas por uma aparatosa propaganda e pela
exaltação da capacidade de regeneração e transmutação da superpotência
estadunidense.
Mas o movimento pela paz não se deve permitir ilusões. Mesmo
considerando as diferenças de métodos e estilos entre os partidos
Democrático e Republicano e o perfil distinto do presidente Obama
comparativamente ao seu antecessor, devemos analisar os fenômenos com
objetividade para procurar entender o que está em curso na realidade dos
Estados Unidos e internacional.
O objetivo explícito de Barack Obama, manifestado desde a campanha
eleitoral de 2008, é recuperar a liderança mundial dos Estados Unidos,
em todos os domínios – político, diplomático econômico, fazendo valer,
se necessário, o seu poder militar.
O tempo se encarregou de mostrar que, na prática, com Barack Obama não
houve, não há nem haverá mudança essencial na política de guerra do
imperialismo norte-americano.
Essencialmente, a situação internacional não registra progressos em
favor da paz, no que diz respeito às ações dos Estados Unidos e seus
aliados, nem à diminuição das tensões ou focos de conflitos.
As guerras continuam
As chamas da guerra continuam a arder no Iraque sob ocupação das tropas
estadunidenses. O anúncio do plano de retirada a longo prazo não
contribuiu para estabilizar a situação. A presença de tropas de ocupação
e de contingentes mercenários continua a provocar escaramuças militares
e incidentes políticos.
O presidente Obama defendeu a continuidade da chamada “guerra ao
terrorismo”, deslocando o seu centro para o Afeganistão. Desde o início
do seu mandato, tem defendido que os Estados Unidos necessitam de mais
tropas e recursos para ganhar a guerra no Afeganistão e confrontar a
crescente ameaça da Al Qaeda na fronteira com o Paquistão. A Guerra do
Afeganistão, herança maldita do governo de George W. Bush, converteu-se
na guerra de Obama.
Líbia: novo front de guerra
Desde o dia 19 de março último, está em curso mais uma guerra do
imperialismo norte-americano, de seus aliados da União Europeia e da
Otan. É a primeira da Administração Obama, mas a terceira que tem que
conduzir, porquanto herdou as guerras do Afeganistão e do Iraque.
Até o momento a aviação da Otan já descarregou mais de cinco mil
bombardeios sobre a Líbia, atingindo alvos civis e até a residência do
líder do país. Num desses ataques um de seus filhos e três netos foram
mortos.
Tal como todas as guerras recentes do imperialismo estadunidense e seus
aliados contra outras nações, é feita com falsos pretextos e conta com a
cumplicidade de uma colossal e poderosa máquina de mentiras – os meios
de comunicação, que preparam o terreno com a difusão de argumentos sobre
a suposta violação dos direitos humanos, a perpetração de crimes contra
a população civil e a desobediência a tratados internacionais.
Na verdade, os bombardeios na Líbia pela Otan fazem parte de uma
estratégia global das potências imperialistas para reverter a seu favor
os acontecimentos que têm abalado o mundo árabe e todo o Oriente Médio, a
partir das vitoriosas rebeliões na Tunísia e no Egito.
Militarização da América Latina
Ultimamente passou para o centro da política do imperialismo
norte-americano o aumento da presença militar na América Latina e no
Caribe, como demonstram o relançamento da Quarta Frota, no apagar das
luzes do governo de George W. Bush e o acordo militar entre os Estados
Unidos e a Colômbia que prevê a instalação de sete bases militares da
superpotência do Norte nesse país sul-americano. A instalação dessas
bases está interrompida em razão de decisão judicial, mas nada indica
que esteja revogada.
Os Estados Unidos reativaram a Quarta Frota de sua Marinha de Guerra num
momento em que a América Latina ruma para a consolidação de um bloco
regional que se caracteriza pelas posturas solidárias, independentes e
soberanas, construindo fóruns regionais como o Mercosul, a Unasul, a
Alba e o Conselho de Defesa Sul-Americano, afastando-se objetivamente da
tutela estadunidense. Hoje a região dá um salto qualitativo em seu
processo de integração política e unidade com a criação da Celac –
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos.
A América Latina está vivendo, desde 1998, com a eleição do presidente
venezuelano Hugo Chávez, uma etapa inédita em sua história política
desde a primeira independência há 200 anos. Ao longo do século 20, a
região foi vítima do sistemático intervencionismo norte-americano. Nas
décadas de 1960 e 1970 teve lugar o ciclo das ditaduras militares
pró-estadunidenses. E nos anos 1980 e 1990, a região foi uma presa
econômica, social e politica das engrenagens do neoliberalismo
codificado no chamado Consenso de Washington.
Da eleição de Hugo Chávez em 1998 até o momento, ocorreram muitas
vitórias políticas eleitorais, fruto da acumulação de forças pelos
povos, que levaram ao poder coalizões progressistas. Hoje, boa parte dos
países da região são dirigidos por governos democráticos, populares e
anti-imperialistas que estão contribuindo para alterar a geopolítica
mundial. O sentido mais geral dos fenômenos em curso na região é a
formação de uma corrente transformadora e a acumulação de vitórias dos
povos e países em termos de independência, soberania, democracia,
mecanismos de participação popular, justiça, desenvolvimento e progresso
social.
Por isso, para o imperialismo norte-americano, a despeito da retórica do
presidente Obama, está no centro das suas preocupações estratégicas
recuperar o controle geopolítico da América Latina.
Contra as estratégias belicistas
Em todo este contexto, o movimento pela paz reafirma sua condenação às
estratégias guerreiras do imperialismo norte-americano e seus aliados, à
militarização e todas as ameaças à paz. Exige a retirada das tropas de
ocupação do Iraque e do Afeganistão e a libertação da Palestina, com a
criação do seu Estado nacional independente. Manifesta indeclinável
solidariedade com os povos latino-americanos na luta por sua
independência e soberania, pela democracia e a integração, contra a
ingerência do imperialismo estadunidense, contra a Quarta Frota e as
bases militares . Luta pelo encerramento da base de Guantânamo, pelo fim
do bloqueio a Cuba e pela libertação dos seus cinco heróis encarcerados
injustamente nos Estados Unidos.
Internacionalismo e patriotismo
A solidariedade internacional, o internacionalismo dos povos, o
internacionalismo de massas é um traço essencial da ética e da linha
política dos movimentos populares e progressistas. Temos em Marx, Lênin,
José Martí e nos próceres das lutas pela independência em nosso
continente as fontes doutrinárias que orientam tal conduta.
O internacionalismo, a solidariedade entre povos, estão intrinsecamente
ligados ao patriotismo. Só é internacionalista aquele que ama seu país e
luta pela emancipação nacional e social de seu povo. E só é
verdadeiramente patriota quem sabe que os combates pela independência
nacional não terão conseqüência se não estiverem vinculados com as lutas
dos demais povos irmãos.
Não há nenhuma contradição entre o patriotismo e o internacionalismo.
Classes dominantes antinacionais
A partir de determinado momento na história – precisamente entre o final
do século 19 e o início do século 20 – o capitalismo se transformou em
imperialismo. Ele mudou de fase, transformou-se de capitalismo
concorrencial em capitalismo monopolista. Transformou-se de capitalismo
nos marcos nacionais em capitalismo que extravasou as fronteiras
nacionais. Transformou-se de capitalismo que auferia lucros a partir
apenas do investimento de capital nos setores internos da economia em um
capitalismo que aufere lucros a partir de investimentos de capitais
fora do país. Instaurou-se o mecanismo da exportação de capitais. Deixou
de haver um capitalismo cujo lucro máximo era obtido apenas da
espoliação da classe operária nacional e passou a obter seu lucro máximo
a partir também da exploração dos povos colonizados de uma maneira
geral. E até mesmo da dominação de nações inteiras. Foi aí que surgiu o
fenômeno do neocolonialismo e do imperialismo.
Em decorrência disso, na atual época histórica na qual predomina o
capital financeiro, as classes dominantes locais exercem seu poder por
meio das mesmas políticas chamadas globais e dos mesmos mecanismos
supranacionais representados pelos dogmas neoliberais que consistem na
abertura do mercado, no debilitamento do Estado nacional, nas
privatizações etc. Esta é uma razão a mais para sermos
internacionalistas. Porque essas políticas da burguesia internacional
associada com as burguesias locais em grande medida se uniformizaram,
uma vez que são as únicas correspondentes ao estágio atual do
capitalismo.
O Brasil é um eloqüente exemplo disso. Vivemos em nosso país, desde a
primeira eleição de Lula, um momento político novo e carregado de
esperanças na transformação social. Mas, as classes dominantes são as
mesmas de sempre. Abandonaram os interesses nacionais, ataram seus
destinos aos do imperialismo e ao seu sistema econômico
internacionalizado. Nessa medida, a burguesia moopolista-financeira
brasileira traiu os interesses nacionais, tornou-se incapaz de conduzir
qualquer processo de caráter democrático, ou nacional e soberano.
É por isso que na boca da grande burguesia brasileira, o nacionalismo é
letra morta, em suas mãos o patriotismo é uma bandeira esfarrapada.
Quando os representantes da grande burguesia brasileira enchem o peito
para falar dos valores nacionais, na verdade estão defraudando a
consciência popular e a própria consciência nacional. Não é possível ser
nacionalista defendendo as políticas que a grande burguesia brasileira
defende.
A política das elites nacionais é de aviltamento, fragilização e
comprometimento da soberania nacional. O nacionalismo da classe
dominante é falso.
Registro histórico
A história registra episódios importantes da solidariedade internacional
no Brasil: o combate ao nazi-fascismo, a partir dos anos 1930; a luta
para que o Brasil se incorporasse ao esforço de guerra dos aliados,
inclusive com o envio de tropas ao front europeu da Segunda Guerra
Mundial; a luta pela manutenção da paz no imediato pós-Segunda Guerra;
registre-se a intensa, ampla, corajosa e heróica atividade dos lutadores
pela paz, organizados pela ramificação brasileira do Conselho Mundial
da Paz, precursora do Cebrapaz; a luta contra a intervenção
norte-americana na guerra da Coreia (inclusive os Estados Unidos
pressionaram o governo brasileiro a enviar tropas para aquele país
asiático, pressões que malograram pelas reações negativas que
despertaram na opinião pública). As revoluções populares da segunda
metade do século 20, nomeadamente a Revolução Chinesa, a Revolução
Cubana, a Luta de Libertação Nacional do Vietnã, a Luta anticolonialista
na Argélia e nas colônias africanas lusófonas receberam a solidariedade
dos movimentos sociais brasileiros.
A propósito, ressalte-se que a segunda metade do século 20 foi marcada
por grandes revoluções, grandes acontecimentos no mundo. O século 20 foi
o século das lutas por uma nova sociedade, das revoluções
anticolonialistas e anti-imperialistas, o século da descolonização da
África, da Ásia e da afirmação da consciência nacional na América
Latina. Foi um século de grandes acontecimentos revolucionários aos
quais a luta do povo brasileiro não esteve alheia.
Anti-imperialismo, conteúdo essencial
O conteúdo fundamental que define a ação internacionalista hoje é o
anti-imperialismo. O objetivo central é derrotar as estratégias do
imperialismo norte-americano, sua política de guerra, seu
conservadorismo atávico, seus dogmas neoliberais, a ofensiva brutal que
move contra a paz, a soberania nacional, a democracia e os direitos dos
povos.
A tarefa número um dos movimentos sociais no plano internacional é
derrotar essas políticas. Tudo o que fizermos para impedir, retardar
essa ação imperialista ainda será pouco. Porque este é o principal
perigo que afronta a humanidade. E, obviamente, nos atinge de uma
maneira ou outra. O Brasil não é uma ilha de bem-estar, conforto e
tranquilidade. A nossa índole pacífica e a nossa cordialidade não nos
previnem de ataques. O que nos prevenirá e defenderá serão as políticas
corretas, as orientações justas, a nossa capacidade de unir o povo e
lutar para defender a independência nacional, o progresso social e a
paz.
É preciso também derrotar as políticas econômicas do imperialismo, suas
orientações neoliberais, a destruição promovida pelas políticas atuais
do capitalismo, a degradação do nível de vida dos trabalhadores, do
progresso do país, a dilapidação do meio-ambiente. Todas essas são
tarefas de dimensões internacionais.
Para derrotar essas políticas, é preciso levantar com a maior energia a voz de protesto dos povos contra as guerras de agressão.
Ligado a isso é que colocamos no centro de nossa atividade internacional
a luta pela paz, contra a guerra imperialista. E a luta contra os
planos neocolonialistas dos EUA vis-à-vis a América Latina. Por razões
históricas e pela trajetória que percorremos como povo e nação desde a
proclamação da Independência até hoje, o Brasil faz parte do que se
chama de sistema de poder do imperialismo norte-americano. Somos
considerados o quintal desse imperialismo. Objetivamente, fazemos parte
desse sistema por razões históricas, geográficas e econômicas e pelo
comportamento submisso das classes dominantes e dos governos que as
representavam. Derrotar essas políticas é uma questão essencial para a
trajetória, para a luta da libertação nacional e social do povo
brasileiro.
Nesse contexto, é importante defender a soberania nacional, apoiando ao
mesmo tempo os processos de integração e unidade continental na América
Latina.
Movimentos sociais
Há uma realidade inteiramente nova nos movimentos sociais. Surgiram
novas formas de articulação política internacional e de atividade
internacionalista. Seguem atuantes o Fórum Social Mundial e suas
respectivas ramificações continentais. Seguem atuantes as diferentes
Redes, destacadamente a Campanha pela Desmilitarização das Américas,
realizam-se as “cumbres” dos povos, paralelas às reuniões de chefes de
Estado e de governo e as campanhas continentais. Revitalizam-se
organizações que fizeram história, como a Federação Sindical Mundial
(FSM), a Federação Mundial das Juventudes Democráticas (FMJD), a
Federação Democrática Internacional de Mulheres (Fedim) e o Conselho
Mundial da Paz. E surgem importantes movimentos anti-bélicos e de
solidariedade contra os povos agredidos ou ameaçados pelo imperialismo.
Ultimamente, recobrou fôlego o movimento pela abolição das armas
nucleares.
Renascem as lutas
O ambiente de derrota e dispersão que o movimento social, incluído o
movimento pela paz, viveu no início dos anos 1990 vai sendo superado. A
última década foi marcada por um novo despertar, um renascimento das
lutas. E esse renascimento foi implicando também o surgimento de uma
série de novas forças políticas e novos movimentos, novas formas de
articulação. Além disso, é preciso perceber que os EUA estão sofrendo
muitas derrotas nas suas aventuras bélicas e isolados politicamente. É
preciso tomar em consideração o cenário latino-americano, palco de
importantes transformações políticas. Está aí a olhos vistos a vigência
de uma série de governos democráticos, alguns assumidamente
revolucionários, anti-imperialistas e socialistas. Mudou totalmente o
panorama político no continente e no mundo. Significa que a revolução
está batendo na porta? Não, não significa. Mas significa que as
condições para lutar, para acumular forças revolucionárias estão
melhorando. Estamos atuando num ambiente melhor, num ambiente mais
progressista, num ambiente mais propiciador da unidade das forças
avançadas.
Portanto, em nossa análise não podemos considerar a ofensiva do
imperialismo como o único fator. Os ativistas sociais devem recorrer ao
método dialético e perceber as potencialidades revolucionárias que estão
despertando, porque, percebendo a incidência dessas novas forças,
compreendendo essas potencialidades, poderemos dar passos na luta pela
paz, por uma nova ordem mundial e pela conquista de um mundo melhor, de
justiça e progresso social.
Penso que a concepção que nos norteia é o anti-imperialismo e a
convicção de que o imperialismo não é invencível, será derrotado pela
luta dos povos.
Nota: Texto apresentado na Conferência Internacional “A Integração
Latino-Americana e a Luta pela Paz”, promovido pelo Centro Brasileiro de
Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz – Cebrapaz, realizado em São
Paulo, em 17 e 18 de junho.