domingo, 25 de maio de 2014

Algumas ideias sobre o Capital de Piketty

harveyphoto copyEsquerda - [David Harvey] Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que
causou grande celeuma. Ele defende a taxação progressiva e a tributação
da riqueza global como único caminho para deter a tendência à criação
de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de uma
desigualdade “apavorante” de riqueza e rendimento.

Também
documenta com detalhes excruciantes, e difíceis de rebater, como a
desigualdade social de ambos, riqueza e rendimento, evoluíram nos
últimos dois séculos, com ênfase particular no papel da riqueza. Ele
aniquila a visão, amplamente aceite, de que o capitalismo de livre
mercado distribui riqueza e é o grande baluarte para a defesa das
liberdades individuais. Piketty demonstra que o capitalismo de livre
mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte
do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração deu
base à indignação liberal e levou o Wall Street Journal à apoplexia.


O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o
século 21 do trabalho de Marx sobre o século 19, que tem o mesmo título.
Piketty nega que fosse essa a sua intenção, na verdade – o que parece
certo, uma vez que seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele
não nos conta por que razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está
a demorar tanto para tanta gente se levantar, sob o fardo do desemprego
prolongado e da execução da hipoteca de milhões de casas. Ele não nos
ajuda a entender por que o crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em
oposição à China, e por que a Europa está travada sob uma política de
austeridade e uma economia de estagnação.


O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e
seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a
produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de
nós, não é novidade. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de
Marx, no primeiro volume da sua versão do Capital. Piketty fracassa em
observar isso, o que não é surpresa, já que sempre clamou, diante das
acusações dos média de direita de que é um marxista disfarçado, que não
leu O Capital de Marx.


Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar a sua
argumentação. A sua descrição das diferenças entre rendimento e riqueza é
persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre as
heranças, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global
como possíveis (embora que certamente politicamente inviáveis) antídotos
contra o avanço da concentração de riqueza e poder.


Mas, por que razão ocorre essa tendência para o crescimento da
desigualdade? A partir dos seus dados (temperados com ótimas alusões
literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para
explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por
parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento
Occupy) é devido ao simples facto de que a taxa de retorno sobre o
capital (r) sempre excede a taxa de crescimento do rendimento (g). Isso,
diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.


Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma
explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e
sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo.
Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao
desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda
é válida. A queda constante da participação do trabalho no rendimento
nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político
e económico, à medida que o capital mobilizava tecnologia, desemprego,
deslocalização de empresas e políticas anti-laborais (como as de
Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.


Como Alan Budd, um conselheiro económico de Margaret Thatcher,
confessou num momento de descuido: as políticas anti-inflação dos anos
1980 mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e
aumentar o desemprego era um modo extremamente desejável para reduzir a
força das classes trabalhadoras… o que foi construído, em termos
marxistas, como uma crise do capitalismo que recriava um exército de mão
de obra de reserva, possibilitou que os capitalistas lucrassem mais do
que nunca.” A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e
dos executivos-chefes era de cerca de trinta para um em 1970. Hoje está
bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, de cerca de
1200 para um.


Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty também
não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do
capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a
capacidade do mercado de absorver os produtos do capital. Henry Ford
reconheceu esse dilema há muito tempo, quando determinou o salário de
cinco dólares para o dia de oito horas dos trabalhadores – para aumentar
a procura dos consumidores, disse.


Muitos pensavam que a falta de procura efetiva estava na base da
Grande Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas
expansionistas keynesianas depois da Segunda Guerra Mundial e resultou
em alguma redução das desigualdades de rendimento (nem tanto da
riqueza), no meio de uma forte procura que levou ao crescimento. Mas
essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho e na
construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação
progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980,
durante cerca de meio século, o imposto de rendimento federal mais
alto, nos EUA, era em média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o
crescimento (outra parte das evidências de Piketty, que rebate os
argumentos da direita).


Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas
que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do
trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas
respeitáveis, houve uma deslocação para o lado da oferta e para o
pensamento de Milton Friedman, e teve início uma cruzada para
estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o Estado
social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma
queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma
grande fonte de rendimento dos ultra-ricos – passaram a ser tributados
por taxas muito menores nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de
capital do 1% do topo da pirâmide.


Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty.
Tal “efeito cascata” de benefícios dos ricos no restante da população
(outra crença favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado
por leis matemáticas. Tudo era política.


Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais importante
tornou-se: e onde está a procura? Piketty ignora essa questão. Os anos
1990 encobriram essa resposta com vasta expansão do crédito, inclusive
estendendo o financiamento hipotecário aos mercados subprime.
Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar, como
aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman
Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, as taxas de
lucro e a consequente concentração de riqueza privada recuperaram muito
rapidamente depois de 2009, enquanto todos os outros continuavam muito
mal. As taxas de lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre
estiveram nos EUA. As empresas estão sentadas sobre grande quantidade de
dinheiro e recusam-se a gastá-lo, porque as condições do mercado não
estão robustas.


A formulação da lei matemática de Piketty camufla, mais do que revela
sobre as políticas de classe que estão em jogo. Como notou Warren
Buffett, “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos,
que está a lutar, e estamos a vencer.” Uma medida-chave da sua vitória
são as crescentes disparidades de riqueza e rendimento do 1% do topo em
relação a todo o resto da população.


Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele
repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um
processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é
usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente
– por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital
como o stock de todos os ativos em mãos de particulares,
empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se
estão a ser usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de
propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como
determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil,
sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r,
significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não
há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados
para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado. Todo o
pensamento económico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está
fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende
essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital se valoriza na
base do que produz e não pelo que utilizou para a sua produção. O seu
valor é fortemente influenciado por condições especulativas, e pode ser
seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan
supôs detetar como característica dos mercados imobiliário e de ações.
Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das
coleções de arte dos hedge funders– a partir da
definição de capital (e a razão para a sua inclusão é bastante débil),
então a explicação de Piketty para o aumento das desigualdades de
riqueza e rendimento desabaria, embora a sua descrição do estado das
desigualdades passadas e presentes ainda ficassem de pé.


Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão a ser
usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno
sobre o capital que está a ser usado é porque uma parte do capital foi
retirado de circulação e, de facto, está em greve. Restringir a oferta
de capital para novos investimentos (fenómeno que estamos a testemunhar
agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o capital que está em
circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o que fazem as
companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro: é o
que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a
tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é
definido ou medido) exceder sempre a taxa de crescimento do rendimento.
Esta é a forma como o capital garante a sua própria reprodução, não
importa quão desconfortáveis sejam as consequências para o resto de nós.
E é assim que a classe capitalista vive.


Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty.
Mas, a sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à
oligarquia surgem está seriamente comprometida. As suas propostas de
solução para a desigualdade são ingénuas, se não utópicas. E ele
certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século
21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os
dias atuais.





Artigo de David Harvey, disponível em davidharvey.org.


Tradução de Inês Castilho para outraspalavras.net, revista por Carlos Santos para esquerda.net

Por um transporte coletivo humanizado

Por um transporte coletivo humanizado

 
 
 Frei Marcos Sassatelli
  







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Nestes dias, assistimos a uma verdadeira guerra no transporte
coletivo da Grande Goiânia. Só para se ter uma ideia da gravidade da
situação, foram depredados - conforme noticiou a imprensa - 104 ônibus
(20 só num dia).





Antes da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC), da
Companhia Metropolitana do Transporte Coletivo (CMCT) e das empresas
concessionárias, a responsabilidade por essa situação é do Poder
Público. É ele que tem a obrigação de cuidar, direta ou indiretamente,
do transporte coletivo para que seja um transporte humanizado e de
qualidade. O que realmente falta é a vontade política de resolver o
problema. Os motoristas e os trabalhadores, usuários do transporte
coletivo, merecem respeito. Chega de tanto descaso!





Por que será que o Poder Público tem sempre tanta dificuldade para
dialogar e negociar com o povo? Por que será que esse mesmo Poder
Público nunca quer atender (ou, pelo menos, demora demais para atender)
as justas reivindicações dos trabalhadores? O “bem viver” do povo não
deveria ser a prioridade das prioridades da ação política?





Infelizmente, na nossa sociedade capitalista neoliberal - que é
estruturalmente iníqua, iniusta e desumana - o que prevalece não é o
“bem viver” do povo, mas o lucro a qualquer preço das grandes empresas.
Os trabalhadores, que já são “legalmente” explorados em seu trabalho,
depois de uma jornada exaustiva e desgastante, são obrigados - mesmo
cansados - a enfrentar um transporte coletivo humilhante, deprimente e
insuportável.





Embora ninguém seja a favor da violência, dá para entender a revolta
do povo. A estrutura psicológica da pessoa dos trabalhadores tem um
limite. Ninguém aguenta mais! Antes que aconteçam as depredações ou a
queima de ônibus, as autoridades não deveriam dialogar com os
trabalhadores? Ninguém sabe até onde pode chegar o desespero.





O comportamento do Poder Público revela uma total desconsideração
para com os trabalhadores, motoristas, usuários do transporte coletivo e
o povo em geral.





Quando o PT ainda era Partido dos Trabalhadores - hoje não é mais
(mudou de lado) -, sempre “gritava” em defesa dos direitos dos
trabalhadores. Hoje, ele “grita” em defesa do lucro das grandes empresas
e a favor do agro-hidro negócio. Que traição vergonhosa!





Os políticos e os governantes - durante o exercício do mandato -
deveriam ser obrigados a usar o transporte coletivo. Tenho certeza que a
situação mudaria em pouco tempo. Atualmente, como não precisam do
transporte coletivo, eles não têm nenhuma pressa para resolver a questão
das paralizações e das depredações de terminais e de ônibus. O povo só
interessa enquanto é útil para o capital financeiro. Não o sendo mais,
pode ser descartado.





A desculpa do Poder Público para não atender as reivindicações dos
trabalhadores é sempre a mesma: a falta de verbas. Ora, para gastos
mirabolantes com a copa do mundo e outras obras faraônicas nunca faltam
verbas. É só uma questão de modelo de sociedade e de prioridade
política. As verbas existem.





O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) deveria exigir que as
autoridades competentes resolvam, o mais rápido possível, a situação
caótica do transporte coletivo. Já passou da hora!





O Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de
Goiás (Sindittransporte) e o Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores
no Transporte Coletivo Urbano de Goiânia e Região Metropolitana
(Sindicoletivo), mesmo tendo divergências quanto à maneira de conduzir o
processo, deveriam ficar unidos para garantir os direitos dos
trabalhadores.





É bom que os trabalhadores fiquem de alerta. Quando a diretoria de um
Sindicato negocia com o Poder Público ou com os empresários e faz
acordos sem realizar a assembleia da categoria, ouvindo seu parecer, é
sinal evidente que o Sindicato se tornou “pelego”. Não representa mais
os trabalhadores, mas outros interesses escusos. Assim sendo, a
assembleia dos trabalhadores deve desautorizar a diretoria do Sindicato e
tomar as devidas providências. Ela é soberana.





Mesmo com todas as dificuldades e contradições, os trabalhadores não
podem cair na armadilha dos detentores do poder econômico, que é dividir
os trabalhadores para enfraquecer a luta. No caso em questão, eles
querem colocar os trabalhadores usuários do transporte coletivo contra
os motoristas, que também são trabalhadores.





As reivindicações dos motoristas do transporte coletivo por melhores
salários e as lutas do povo por um transporte coletivo digno são justas e
merecem todo nosso apoio.





Termino com as sábias e contundentes palavras do nosso irmão, o papa
Francisco, que nos fazem refletir e são uma luz para nossa vida.





“Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a
uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata.
Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não
seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo,
quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje,
tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o
poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que aliás chega a ser
promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e
opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria
raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não
são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A alegria do Evangelho - EG,
53).





Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia
(USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), é professor aposentado de
Filosofia da UFG. E-mail:
mpsassatelli(0)uol.com.br

 


A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania

sábado, 24 de maio de 2014

O estranho Mujica no desconcertante Uruguai

O estranho Mujica no desconcertante Uruguai

140523-MujicaB
Um escritor espanhol acompanha insólita rotina do presidente e opina: ela só seria possível em seu país particular, que teima em desafiar lógicas do “bom-senso”
Por Juan José Millás | Tradução: Cibelih Hespanhol
[Primeira de duas partes da entrevista. Breve, em "Outras Palavras", a conversa completa com Mujica]
A tempestade se anunciava, em tal estado de exaltação, que mais se parecia às sensações que precedem as piores enxaquecas. Em pleno meio dia, toda a atmosfera tornava-se escura (como se Deus tivesse fechado os olhos), e se levantava por todos os cantos um ar estranho, de tonalidades psíquicas, produtor de uma euforia gratuita. Cada greta das paredes adquiria uma relevância misteriosa, como se em seu interior, ao invés de certamente viver uma barata, vivesse uma libélula.
Logo o céu desabava, com a mesma violência com a qual a polícia, à sua maneira, manda abaixo a porta de uma casa de narcotraficantes; e a água começava a cair em grandes jorros. Em quinze minutos, os edifícios já estavam ensopados como uma esponja recém-tirada da água e colocada sobre a borda de uma banheira. Crianças brincavam entre as poças de água, enquanto a realidade permanecia suspensa.
O clima montevideano sofria de transtornos de caráter. No quarto do hotel, onde a janela se abria para um pátio de luzes, era natural sentir-se como um desses personagens de Onetti que, nus sobre a cama, sem parar de fumar, escutam obsessivamente os ruídos vindos do exterior, enquanto tentam compor em sua cabeça uma imagem do mundo.
O mundo, a princípio, eram as ruas que se desdobravam até este estranhíssimo lugar, onde se encontram as águas do Rio Prata com as do Oceano Atlântico, duas monstruosidades naturais a copular sem nenhuma pausa. Às vezes o mar penetra no rio, às vezes é o rio quem se introduz no mar – depende dos ventos, das marés, das chuvas, dos efeitos das mudanças climáticas. Esta sobreposição afeta a fauna: peixes de mar que se precipitam, de súbito, na água doce, e peixes de rio que se encontram de pronto em toda a dimensão do mar salgado.
topo-posts-margem
- Morrem os peixes quando atravessam a fronteira? – perguntei a um pescador.
- Ou saem a tempo, ou se adaptam – disse ele.
- Mas morrem, por vezes? – insisti, em uma preocupação íntima.
- Acredito que ou saem ou se adaptam – insistiu ele também.
O País semanal havia nos enviado ao outro lado do mundo para que escrevêssemos uma reportagem, de modo que ao cair da tarde o fotógrafo Jordi Socías e eu saímos a caminhar, tomando uma das tantas ruas que davam até o estuário.
Já estávamos andando havia uma hora, quando vimos sair um sujeito com uma sacola de uma loja de delicatessen.
- Vendem bons vinhos aí? – perguntou Socías.
- Muitos bons – respondeu o homem – e um pão excelente. Mas já estão fechando.
Era um sujeito de classe alta, aberto a conversas, de modo que perguntamos a ele se estávamos muito longe do mercado.
- Não vá até lá – disse ele – a esta hora estará às moscas.
- E se tomarmos o caminho pela avenida?
- Nem pensar, está fechada também. Subam por esta rua, e a quatrocentos metros encontraram alguns bares, como os de Madrid ou Paris.
- Mas nós não queremos ver Madrid ou Paris. Queremos ver Montevidéu. – disse Socías.
O sujeito nos espiou como se estivéssemos loucos, e se afastou cuidadosamente de nós dois, que continuamos a caminhar na direção proibida. Realmente, estava mesmo às moscas.
- É que aqui você tem que vir pela manhã. – nos avisaram no mercado.
Há lugares de Montevidéu que só são Montevidéu em certos horários: quando é manhã, ou quando é a hora de comer. Logo se transformam em outra cidade, na qual todos os dias são sempre uma tarde de domingo, como acontece na vida de algumas pessoas: na de Felisberto Hernandéz, por exemplo, escritor uruguaio enormemente infeliz, que havíamos lido antes de viajar.
Montevidéu era um estado de espírito.
Retornei ao quarto de hotel já em estado líquido. Tirei a roupa – exceto as meias (porque tenho a superstição de que me mantêm os pés unidos às pernas), enchi a banheira de água fria, entrei nela, acendi um cigarro e abri um romance de Onetti justo no instante em que o personagem dizia: “eu sou um homem solitário, fumando em um lugar qualquer da cidade; a noite me rodeia, vai desdobrando-se como um rito, gradualmente, e nada tenho a ver com ela”.
Larguei o livro em um gesto de defesa. A temperatura do meu corpo já não era febril. Lembrei-me do sujeito que pretendia que, em Montevidéu, ao invés de vermos Montevidéu, víssemos Madrid ou Paris, e então me veio à cabeça uma pergunta: “Uruguai é um país europeu ou latino-americano?”. Era como se eu perguntasse se as águas, no estuário do Rio da Prata, eram mais fluviais que marítimas ou mais marítimas que fluviais.
O aconselhável seria erguer o dedo e levá-lo a boca, comprovando assim se pertencia ou não ao sal. Montevidéu conhecia com intimidade os romances aflitos de Onetti, tanto quanto a prosa indócil de Levrero.
* * *
O que acabo de contar, na verdade, aconteceu em outro momento, mas aqui foi lançado desta forma, não sei por quê. Digamos que seja pela mudança de horário. O que realmente aconteceu tão logo chegamos, com a maleta já disposta sobre a cama do quarto do hotel, foi o seguinte: tocou o telefone, e quem nos chamava era o secretário de comunicação do presidente do Uruguai.
- Às três e meia – disse ele – chegará um carro para pegá-los e levá-los até a chácara de Mujica.
Olhei o relógio: era meio dia.
- Mas havíamos combinado que o encontro seria amanhã – observei, com cautela.
- Amanhã não pode ser – concluiu o secretário.
Desliguei e avisei o fotógrafo. Socías e eu éramos dois senhores já velhos, que nos arrastamos por treze horas de avião, um fuso horário e um salto abismal do inverno espanhol até o verão uruguaio. Estávamos animados, sim, mas justamente por nos sentirmos tão bem é que começávamos a suspeitar do nosso equilíbrio mental.
Quando o carro chegou, chovia com uma inclemência extraordinária – como se quisessem machucar alguém com aquelas águas. E apesar de ainda restarem cinco ou seis horas de luz (de luz escura) porque em Montevidéu, em fevereiro, anoitece tarde, as ruas já se haviam apagado como os corredores de um escritório em um dia de feriado.
O automóvel seguiu navegando. Alcançamos uma zona rural. A chuva havia parado um pouco, e através dos vidros molhados, em meio às terras de cultivos, víamos aqui ou ali, distribuídos de forma irregular, galpões que talvez fossem casas, casas que talvez fossem galpões. E cachorros, muitos deles, que vinham correndo para saudar o carro.
Havia galinhas, também. Neste instante, apareceu no meio do caminho um cachorro morto que, tão logo nos aproximamos, mostrou-se estar vivo. Ainda assim, custou a sair da direção do carro, como se não acreditasse que este realmente existisse, ou tampouco se importasse. Foi quando o condutor parou o automóvel em uma encruzilhada.
- É aqui – disse.
Havíamos chegado em Rincón del Cerro. Descemos do carro e vimos, no meio do campo, uma guarita de vigilância, de estética semelhante à dos banheiros portáteis – o que conferia à paisagem certo ar surreal. E ali mesmo, à direita, um pouco oculta pela vegetação, nos apontaram a casa de José Mujica, o presidente da República Oriental do Uruguai. Diziam que a casa era muito modesta. Mentira. É pobre. Poderíamos dizer que é como um barracão confortável, com telhado de zinco, em cuja porta nos esperava este ancião que já se tornou uma espécie de moda em seu país. Trajava uma calça desgastada e uma camisa azul.
- Senhor presidente – disse, estendendo-lhe a mão.
- Fora, Manuela! – gritou ele a uma cachorra de três patas, que já havia se adiantado a nos dar as boas vindas.
José Mujica Cordano, o dono da cachorra aleijada, contava 80 anos – quinze dos quais passou preso, por pertencer ao Movimento de Liberação Nacional Tupamaros. Possui em seu currículo de guerrilheiro duas fugas e, em seu corpo, seis feridas de bala. Detido pela última vez em 1972, não voltaria a ver a luz do dia até 1985. Entrou, portanto, com 37 anos e saiu com 50. Durante este tempo, conheceu no cárcere da ditadura vergonhas das mais terríveis. Desnudo, com as mãos e os pés atados, aplicavam-lhe choques nas áreas genitais e na língua. O aguilhão elétrico era um dos instrumentos preferidos pelos militares, mas não era o único, nem o mais sofisticado. Outra prática também alcançou sua fama, consistindo-se em obrigar o preso a caminhar pela estrutura externa das janelas, do sexto piso, por exemplo, com uma carapuça tapando a cabeça, fazendo-o sentir apenas o vazio por baixo de seus pés. Havia também a “banheira”, o afogamento com panos embebecidos de água, as simples surras, e, enfim, a fome, o isolamento, os cachorros… Cada prisão tinha a sua especialidade.
Segundo relatado por Walter Pernas, em Comandante Facundo, o então presidente do Uruguai, que havia perdido os dentes devido às surras que recebia diariamente, chegou a comer papel higiênico e sabão – além das moscas que chegavam até sua cela (com frequência, um simples buraco), atraídas pelo forte cheio de fezes que exalava do preso. Havia chupado, com suas gengivas desnudas, em busca de um pouco de cálcio, os ossos que jogavam os carcereiros depois que os cachorros já os haviam devorado. Bebeu de sua própria urina, dormiu durante anos sobre um chão de cimento, exposto a frios intoleráveis e calores asfixiantes. Havia passado semanas ou meses sem ver a luz, anos sem conversar com ninguém que não fossem os ratos ou os insetos que conviviam com ele ou faziam-lhe visitas. Perdeu a noção do espaço e do tempo, delirou, emagreceu até ser capaz de contar cada um dos ossos de seu esqueleto. Defecava-se e mijava-se constantemente, pois, fruto das surras, das balas e da alimentação, sofria de problemas renais e digestivos.
Conta Walter Pernas que ele já não podia caminhar erguido, como um homem, e nos momentos de maior deterioração física e psíquica os militares levavam seus filhos até a prisão para que vissem a besta e a insultassem. Viajou, enfim, várias vezes até o limite da morte, de onde regressava alucinado, com os olhos desvairados e praticamente sem massa muscular sobre a qual se sustentar. Levavam-no de uma prisão a outra, de um buraco a outro, como um saco de mercadoria suja, jogando-o sem cerimônias sobre o caminhão militar e de lá o tirando a pontapés e socos.
Conhecedores de sua diarreia crônica e seus problemas urinários, os carcereiros não prestavam atenção às suas súplicas para usar o banheiro. Mas, através de sua própria constância, e da de sua mãe, conseguiu com o passar dos anos que o deixassem possuir um urinol do qual não se separava, e que se converteu, com o tempo, no símbolo de uma pequena vitória sobre seus sequestradores. Abandonou o cárcere abraçado a ele, já convertido em um vaso de flores. Apenas quatro dias após sua soltura, pronunciou um discurso político no qual era impossível encontrar qualquer vestígio de ressentimento. A natureza, disse então, pôs nossos olhos na frente do rosto, para que sempre possamos olhar adiante.
- Fora, Manuela! – voltou a gritar Pepe Mujica à cachorra de três patas.
Manuela foi embora e entramos na casa, que cheirava a umidade.
- O Uruguai está se tropicalizando – disse Mujica – não sei como ainda pode ter gente negando a mudança climática.
Sentamo-nos no “hall” da entrada, que também era a sala de onde se distribuíam os outros cômodos da casa (um dormitório, um banheiro e a cozinha: quarenta ou quarenta e cinco metros no total). E percebi com horror que ele esperava que eu o entrevistasse. Dirigi-me a ele, então.
À primeira de minhas perguntas me respondeu que os governantes já não mandavam nada.
- Quem manda, então? – perguntei.
- Os grandes poderes financeiros. Já não é o cachorro que abana a cauda, mas a cauda que balança o cachorro.
- E você diz isso aos chefes de Estado e aos presidentes com os quais se reúne?
- Sim.
- E o que eles dizem?
- Me dão razão, mas olham para o outro lado. Cultivam a ilusão de voltar a serem presidentes, não se atrevem a enfrentar o inimigo. Dissimulam, mas a verdade é que somos marionetes.
- E como pôde governar por quase cinco anos sendo consciente destas limitações?
- Este é um paisinho muito especial. Mais de 50% do movimento bancário está na mão do Estado. Os uruguaios nos ensinam que, quando temos um peso, devemos ir até o Banco da República, que é o banco do Estado. E não que nos trate bem, mas temos confiança nele. O sistema bancário privado é débil.
- Todos os setores estratégicos do Uruguai estão nacionalizados.
- Não ponha a culpa em mim. Quando eu nasci já estava tudo assim. É uma construção da história.
Enquanto conversávamos, e como a porta havia ficado aberta, devido ao calor, entra Manuela, entra um galgo coxo, entra outro cachorro de raça indefinida, e todos nos miram, uivam, pedem carícias, creio que entra também um gato e se enrosca entre minhas pernas, as moscas zumbem excitadas… Lá fora, junto ao barulho da chuva se escuta, de vez em quando, uma profusão de cantos de galos. Observo Mujica, e me parece que vai e vem dentro de si mesmo, como se tivesse uma gangorra dentro da sua cabeça. Quando regressa, se junta ao mundo com uma pitada de cortesia e outra de malícia. Pergunto a mim mesmo que interesse podemos despertar nele, este par de espanhóis dentro de sua casa. Pergunto-me também se suas respostas são tão mecânicas como minhas perguntas. Ele diz que o Uruguai é um país menos rico, que adormeceu a partir da década de 60, depois de ser campeão do mundo no Maracanã.
- Cinquenta anos de nostalgia – acrescenta.
Diz que se burocratizaram, que encheram de gente as propriedades do Estado, que tinham um teatro (o Solís) com um empregado para subir o telão e outro para baixá-lo. Diz que ainda tem um problema com a burocracia estatal. Reconhece que os sindicatos dos funcionários, muito poderosos, lhe torceram um pouco o braço. Diz que tem paciência, que é preciso seguir lutando e semeando, e que já pensou muito, pois no cárcere tinha bastante tempo para pensar, e aprendeu que tudo muda, mas sempre devagar.
Diz que quando jovem andava sempre “muito apressado”, que passou entre 25 e 30 anos de sua vida, a metade preso, a metade mais ou menos livre, ou “prisioneiro de meus próprios esquemas”. Diz que há 20 ou 30 anos atrás era possível discutir se havia guerras justas ou não, e que justas eram aquelas que significavam um processo de liberação nacional ou tentativa de liberação de nações que se sentiam submetidas, mas que hoje, do jeito que estão as coisas, todas as guerras são para que os mais fracos sofram ainda mais. Diz que é preciso tratar de mudar as coisas através da paz, que é preciso levar a cabo políticas de Estado e estas são as em que, a partir de posições distintas, buscam-se pontos de acordo. Diz que têm aparecido problemas que nenhum país pode resolver por si mesmo, que ou governamos a globalização ou a globalização governará a todos nós.
Diz que a democracia e o socialismo são compatíveis, mas com a condição de que um não engula o outro. Diz que o que mais importa destacar de seu mandato é a luta contra a pobreza e a indigência, e o crescente clima de estabilidade política e confiança que vem atraindo os investimentos estrangeiros. Pergunta se queremos um uísque, diz que não teremos outro remédio senão voltar à economia produtiva, e que neste terreno o Uruguai está muito bem situado, pois tem uma excelente produção de lácteos, de carne, de cereais. Diz que produzem trigo, soja, que exportam arroz, que são bons vendedores de carne de vaca, que exportam peixes pois comem muito pouco, que possuem um mar precioso mas têm vivido de costas para ele já que são descendentes de galegos. Diz que fala muito com os chineses, que são seu principal cliente, que compram toda sua soja e estão aumentando sua presença, que nas campanhas eleitorais as bandeiras são todas chinesas. Diz que o problema da Europa é ter-se descuidado da economia produtiva, subordinando-a a engrenagem financeira, e daí a imagem da cauda que move o cachorro, quando o importante é o cachorro…
Vem-me à cabeça que o secretário de comunicação nos disse que teríamos uma hora ou uma hora e meia, e que Jordi Socías também precisa de um tempo para tirar as fotos. Então sou invadido por um gesto de impotência, apago o cigarro, e digo a Mujica, ao presidente do Uruguai, ao Pepe, como o chamam:
- Olha, eu não sei fazer entrevistas, não sei fazer isso que estou fazendo.
Mujica se retira um momento até a gangorra que tem dentro de si (e fecham-se um pouco os seus olhos), volta (abrindo-os), e me observa através das fendas pelas quais observa o mundo, como se ainda continuasse dentro de uma célula, como se o corpo todo fosse uma célula e os olhos aquele olho mágico das portas.
- O que eu sei – continuei – é contar o que me acontece. Se o senhor me permitir vir tomar café da manhã em sua casa, te acompanhar até o trabalho, ver como se move, como age, enfim, então eu contaria tudo isso…
Como a situação, aparentemente, tornou-se um pouco difícil (afinal nem Mujica nem seu secretário de comunicação poderiam entender que enviaram a eles, do outro lado do mundo, um sujeito que não sabe fazer entrevistas), interveio Socías:
- O que Mirás quer dizer é que tudo o que ele saber fazer é contar histórias.
- Vamos tomar um trago – conclui Mujica.
E vamos até a cozinha, onde nos serve um uísque. Jordi começa a fazer as fotos. Não parece, de forma alguma, que estamos com um presidente ou algo parecido. Então me lembro de que este homem doa 87% de seu salário a um projeto de moradias para pobres, e pergunto a ele se ainda lhe resta dinheiro suficiente para viver. Ele me diz que sim, e que ele e sua senhora, depois de se juntarem ao partido, ainda possuem 45000 pesos – uns dois mil euros.
Nota da tradutora: uns seis mil reais
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Juan José Millás

Juan José Millás é escritor espanhol, autor de dezenas de livros e publicado em 23 idiomas. Sua obra é marcada pela introspecção psicológia e pelas transições que estabelece entre o quotidiano e o fantástico. Criou um gênero, o articonto, em que uma história banal transforma-se, por fantasia, em narrativa para enxergar criticamente a realidade

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Adital - Aplicativo de combate à violência contra a mulher é vencedor de prêmio do Google

Aplicativo de combate à violência contra a mulher é vencedor de prêmio do Google



Adital



Projeto Brasileiro "Promotoras Legais Populares 2.0 (PLP 2.0)”, que
pretende apoiar as mulheres no combate à violência doméstica, foi um dos quatro
vencedores do "Desafio Impacto Social”, uma iniciativa promovida pela empresa
Google que premia projetos de ONGs que usam a tecnologia para solucionar
problemas na esfera social. O resultado foi divulgado no último dia 08 de maio durante
um evento no escritório da empresa Google, em São Paulo.



Desenvolvido pela ONG Geledés em parceria com a ONG Themis, o "Projeto
PLP 2.0” pretende apoiar as mulheres no combate à violência doméstica através
de um aplicativo instalado em smartphone. De acordo com o aplicativo, há um
mecanismo com o botão "Pânico” que ao ser acionado avisa instantaneamente
as redes de atendimento de proteção da mulher sobre a situação de perigo, além
de gravar áudio e vídeo pelo celular para gerar provas da situação vivida pela
vítima.



O Projeto foi vencedor na categoria de voto popular. Os demais
vencedores foram selecionados pelo júri. Os demais vencedores foram: o projeto
"Rede Minha Cidade” da ONG Meu Rio; o projeto "SMS Bebê”, desenvolvido pelo
Instituto Zero a Seis; e o projeto ”Pesca Mais Sustentável", da organização Conservação
Internacional.



De acordo com a Geledés, o Brasil possui um dos maiores índices de
violência contra a mulher do mundo. Nos últimos 10 anos, cerca de 43,5 mil
mulheres foram assassinadas no país, uma média de 4,5 mil casos por ano. Segundo
dados divulgados pela organização, a cada uma hora e meia, uma mulher é assassinada
no Brasil.



O Desafio de Impacto Social Google reuniu 10 finalistas. Os quatro
vencedores receberam cada um o Prêmio Global Impact Award no valor de R$ 1
milhão, bem como apoio tecnológico do Google para ajudar a tirarem os seus
projetos do papel. Além dos quatro vencedores, a empresa premiou outros seis
finalistas com uma quantia de R$ 500 mil pela qualidade dos projetos
apresentados durante o Desafio. Para mais informações sobre cada projeto
finalista do Desafio acesse: https://desafiosocial.withgoogle.com/brazil2014



Informações sobre o projeto Promotoras legais Populares acesse o site:


http://www.geledes.org.br/voce-votou-e-nos-ganhamos-obrigada-impacto-social-google-brasil/



Informações sobre a Ong Themis através do link http://www.themis.org.br/

domingo, 18 de maio de 2014

Ana Flávia Marx: Cinco anos sem Mario Benedetti - Portal Vermelho

Ana Flávia Marx: Cinco anos sem Mario Benedetti



As datas viram
marcos quando nos faz lembrar de algo ou alguém importante e que nos
faz falta. É esse o caso deste 17 de maio: cinco anos sem o ‘escritor
cordial’, o uruguaio Mario Benedetti.



Por Ana Flávia Marx*, em seu blog**






 Mario Benedetti
 Mario Benedetti


Benedetti nasceu em 1920 em Paso de los Toros. Aos dois anos mudou
com os pais para Tacuarembó, onde começou a estudar alemão na Deutsche e
que, mais tarde, fez com que Mario fosse o primeiro tradutor do Kafka
no Uruguai. Na sua juventude publicou ainda sete livros sem vender ao
menos um exemplar.



Mario foi um jornalista de outro tempo, mas podia adaptar-se muito bem
na situação atual dos jornalistas, pelo menos os brasileiros. Foi
vendedor, funcionário público, contador, locutor, tradutor, taquígrafo
por muitos anos, mas sempre foi também jornalista e escritor. Nunca
deixou de escrever e as suas outras profissões serviram de cenário para
os seus romances.



A academia também chamava a sua atenção. Dirigiu o Centro de
Investigações Literárias, da Casa das Américas e o Departamento de
Literatura Hisponoamericana da Faculdade de Humanidades de Montevideo,
deixando o cargo somente em 1973, devido a ditadura militar.



A repressão o expulsou de seu país natal, mas o fez um cidadão latino
americano e socialista. Por causa da repressão, foi para Argentina,
Perú, Cuba e Espanha. Voltou para o seu país somente em 1985, quando a
democracia já se reestabelecia.



Da vida escura, escondida, dura e cruel da repressão, resolveu defender a
alegria como trincheira, bandeira, princípio, destino, certeza e
direito. (Ver o poema Em defesa da alegria)



Benedetti foi um escritor pleno. Teceu poesias, contos, novelas,
ensaios, críticas literárias, peças de humor - com o pseudônimo de
Damodes - e até canções, presentes no disco Canciones del Más Acá, de
1988.



As suas personagens revelaam as mil facetas e a complexidade da alma
humana, desnudando a dialética que movimenta a vida, em que é capaz de
mudar até mesmo as circunstâncias mais estabelecidas.



A sua experiência política também serviu como enredo para os seus livros
que, às vezes sutil, outras nem tanto, se preocupou com a ideologia,
com os valores e com a moral. É essa cena de “Primavera num espelho
partido”, em que, em plena ditadura, a personagem aguarda o seu
companheiro sair da prisão, mas se apaixona por um amigo dele, que fazia
parte da resistência à ditadura junto com seu marido.



A Trégua: amor, nacionalismo e consciência de classe



As mudanças e surpresas que a vida impõem estão em suas obras como o
ritmo nas músicas. O escritor de A Trégua, obra que conta o romance
entre Avellaneda e o Martín Santomé, funcionário público, viúvo e com 50
anos, que se apaixona pela jovem de 24 anos que muda a sua vida e lhe
mostra o amor como um dos elementos emblemáticos da vida.



“ O amor breve ou longo, espontâneo ou minuciosamente construído, é de
qualquer modo um apogeu nas relações humanas”, descreveu na apresentação
de um dos seus 80 livros.



Com A Trégua, uma das obras mais importantes da literatura
latino-americana, revelou a simplicidade, leveza e liberdade existente
no amor:



“O plano traçado é a absoluta liberdade. Conhecer-nos e ver o que
acontece, deixar que o tempo corra e reavaliar. Não há travas. Não há
compromissos. Ela é esplêndida”, escreve Martín em seu diário enquanto
esperava a resposta de Avellaneda.



É também nessa grande obra que dois conceitos evidenciam as ideias de
nacionalismo e de classe do autor. Santomé está sentado num banco e vê
um "operário municipal" cortando grama. Observa o trabalho, compara com o
seu, pensa em ser garçom de café e conclui: "Esse que passa ( o de
sobretudo comprido, orelha de abano, passo capenga e raivoso), esse é
meu semelhante. Ainda ignora que eu existo, mas um dia me verá de
frente, de perfil ou de costas, e terá a sensação de que entre nós
existe algo secreto, recôndito laço que nos une, que nos dá força para
nos entendermos. [...]. Mas não importa; seja como for, é meu
semelhante".



Dentro desse mesmo momento de reflexão, demonstra grande pertencimento
ao seu país, a sua nação e conclui: "Creio que nesse momento afirmou-se
em mim uma convicção: eu sou deste lugar, desta cidade. [...]Cada um é
de um só lugar na terra e ali deve pagar sua cota. Eu sou daqui. Aqui
pago a minha cota".



Foi também obra de Benedetti traduzir tática e estratégia, dois
conceitos que originaram dos planos exatos e da guerra, para a
subjetividade da paixão:



“[…]Minha tática é

falar-te

e escutar-te

construir com palavras

uma ponte indestrutível

Minha tática é

ficar em tua lembrança

não sei como nem sei

com que pretexto

porém ficar em ti […]”



O poema Tática e Estratégia faz parte da reunião de outras diversas
poesias em “O amor, as mulheres e a vida”, que se contrapõe ao título do
livro de Arthur Schopenhauer , “O amor, as mulheres e a morte” e
expressa a opinião de Mario de que as mulheres estão mais próximas da
vida do que da morte e que só o amor é capaz de enfrentar a vida finita.



É justamente nessa antologia que Benedetti concentra os dois temas -
amor e morte- no poema Última noção de Laura, que explica o final de A
Trégua, ou melhor, dar a saída do escritor ao romance intenso e
verdadeiro de Avellaneda e Santomé. Desta vez, é a jovem que fala de seu
amor:



“[…] você é claro não sabe

já que nunca lhe disse

nem mesmo

naquelas noites em que você me descobre

com as suas mãos incrédulas e livres

você não sabe como dou valor

à sua simples coragem de querer-me”



As obras de Mario Benedetti são universais, são ficções que são
articuladas com embates e desenlaces reais, o que faz com que muitos se
identifiquem com suas histórias e as tornem como suas. Um dos seus
últimos poemas, resumi a experiência de vida:



[…] temos uma desordem na alma

mas vale a pena sustentá-la

com as mãos / os olhos / a memória

tentemos pelo menos nos enganar

como se o bom amor

fosse a vida […] (Resumo)



*É jornalista, blogueira e dirigente do PCdoB na capital paulista.

**Blog Retrato sem Retoque

Blogueiros aprovam campanha para pedir o Darf da Globo | TIJOLAÇO | “A política, sem polêmica, é a arma das elites.”


Blogueiros aprovam campanha para pedir o Darf da Globo

18 de maio de 2014 | 11:53 Autor: Miguel do Rosário
globo-darf-2


Centenas de blogueiros reunidos em São Paulo aprovaram a realização de campanha para exigir que a Rede Globo mostre o Darf.


Lembrando: Darf é sigla de Documento de Arrecadação de Receitas Federais.


A campanha se relaciona à descoberta que a Globo foi flagrada
sonegando impostos nas Ilhas Virgens Britânicas, e condenada pela
Receita Federal a pagar quase R$ 1 bilhão.


Até hoje, a Globo não mostrou nenhum documento provando que pagou o que devia.


Foi criado uma logo (acima) e um site exclusivo para a campanha.


http://mostraodarfglobo.wordpress.com/


Neste site serão publicadas instruções para quem quiser participar da campanha.


Também foi criado um email, para receber informações sobre este tema.


mostraodarfglobo@gmail.com

ODiario.info » O fosso económico permanente entre negros e brancos nos Estados Unidos

O fosso econômico permanente entre negros e brancos nos Estados Unidos

Joan Faus 

Passou
quase século e meio sobre a carta em que Marx saudava em Lincoln “o
determinado filho da classe trabalhadora a quem coube guiar o seu país
numa incomparável luta pela libertação de uma raça agrilhoada”.

Agora que têm em funções o primeiro presidente negro da sua história
torna-se ainda mais chocante a longa persistência da discriminação
racial na sociedade norte-americana. A própria ONU denuncia que essa
discriminação é permanente em todas as esferas da sociedade: por cada
dólar de uma família branca uma família negra tem cinco cêntimos. A
disparidade na pobreza e no desemprego mal variaram em 40 anos.






Nada
é às vezes mais revelador do que a crueza dos números para compreender
pormenorizadamente uma problemática e deparar com uma desigualdade
enquistada. Em 1970 a taxa de pobreza nos Estados Unidos entre os
cidadãos negros era de 33,6%. Em 2012 era de 35%. Entre os brancos
também surgiu um ligeiro aumento nesses 42 anos, de 10% para 13%, mas o
pior é que o fosso entre as duas raças se manteve intacto. Entretanto,
os latinos tiveram um aumento ainda mais severo, de 24,3% para 33%. Este
padrão racial repete-se no desemprego: desde 1972, quando arrancou a
estatística diferenciada, a taxa entre os negros foi sempre 60% mais
alta que a dos brancos. Em Março a taxa global foi de 6,7; a dos brancos
foi de 5,8% e a dos negros de 12,4%.



Martin, um negro de cerca de sessenta anos, afirmou desconhecer os
pormenores destes números — que levaram a ONU a denunciar em Março que
«na prática» a discriminação permanece constante em todas as esferas da
sociedade norte-americana, e continua visível. «A discriminação piorou
muito», reclama num misto de impotência e revolta. Sentado placidamente
num banco, durante horas, conta que está sem trabalho, que faz milagres
para sobreviver com o apoio do governo, que viveu a vida toda num
apartamento entre as ruas 7 e U, no noroeste do centro de Washington DC.
Um bairro que vem há anos a viver uma transformação drástica: os
estabelecimentos humildes, edifícios e residentes afro-americanos vão
sendo gradualmente substituídos por gente local e imóveis modernos
habitados por brancos jovens da classe média. A mudança é bonita mas o
racismo subsiste e afasta as pessoas pelo escândalo das rendas. Isto
antigamente era a Broadway negra dos Estados Unidos, queixa-se de olhar
perdido.



Mas o que mais aborrece Martin é que a mudança não o beneficia, nem faz
com que cresça a economia dos Estados Unidos e de Washington e acaba
gerando uma dupla perseguição policial, fundamentada segundo ele num
racismo intrínseco. «Se estou a beber uma cerveja na rua a polícia
prende-me mas se for um branco dos que vivem por aqui não lhe dizem
nada”, denuncia. Recusa falar da sua vida, mas deixa escapar que esteve
preso por drogas e que depois, apesar de ter um curso e direito a uma
profissão técnica, o ferrete do cárcere impede-o de encontrar um
trabalho de qualidade. «Fora da prisão o Governo não te ajuda, atira-te
de novo para as ruas. E que fazemos? É fácil voltar a fazer o mesmo, e
vamos outra vez para a cadeia”.



Nessa altura um amigo negro de Martin, Paul, da mesma idade, que andava
pela rua e que também esteve preso, entra na conversa. «A educação é o
mais importante, declara. Há que ajudar os jovens. No bairro muitos vão
dizer-te “para quê trabalhar por 500 dólares se a vender droga consegues
800″. É esse o problema, mas que vamos fazer? Num círculo vicioso
originado na conjuntura socioeconómica e na educação, que a polícia e a
justiça podem agravar, não há saída. E o tempo não o melhora: a
mobilidade social mantém-se parada 50 anos depois da aprovação da Lei
dos Direitos Civis.



A desigualdade crescente de rendimento nos Estados Unidos e o
impedimento da subida social afectam o conjunto da população, mas
atingem sempre mais profundamente as minorias raciais. Antes da crise de
2007, o rendimento médio de uma família branca era de 135.000 dólares
(muito inflada pelos mais ricos), enquanto o de uma família de cor era
de 12.000, segundo um estudo de Derrick Hamilton, professor de Economia
na New School de Nova Iorque. Isso significava que por cada dólar de
riqueza de uma família branca, uma negra tinha nove cêntimos. Mas depois
da crise a distancia aumentou: cinco cêntimos por cada dólar. E
surgiram diferenças ainda maiores: 85% das famílias negras e latinas têm
um rendimento total inferior à média de todos os brancos.



A população está muito consciente da brutalidade destas disparidades.
Segundo um inquérito de 2913, 57% dos brancos acham que existe alguma
discriminação para com os negros, enquanto entre os negros a proporção
sobe para 88%. Mas afinal qual a explicação para estas tristes
diferenças económicas? «Enquanto não houve apenas redução do fosso de
riqueza nos últimos cinquenta anos, houve uma melhoria laboral até
meados dos anos 70 graças a várias leis, programas de afirmação positiva
e melhorias no acesso à educação», indica Hamilton por telefone. «Mas a
partir daí o fosso manteve-se por falta de ênfase contra a
discriminação. Paralelamente, influíram outros factores que, em geral,
aumentaram a desigualdade de rendimento do país, como o enfraquecimento
dos sindicatos, o auge da competitividade global, a disparidade salarial
ou os lucros elevados de capital, que beneficiaram os mais ricos».



E além disso, afirma o professor, surgiu um tipo de preconceito racial
permanente em algumas esferas. Por exemplo menciona um estudo que
demonstrou que num processo de selecção num trabalho uma pessoa de cor
que envia um currículo melhor tem menos opções de ser contratada do que
uma branca com pior expediente. Por isso, é necessário tomar mais
medidas, para que o Governo contrate mais trabalhadores e melhores
condições para forçar o sector provado a melhorar as suas, que se crie
um fundo de auxilio para crianças pobres a que se possa aceder como
adultos «para nivelar o terreno do jogo» com os mais ricos, e que o
sistema fiscal seja mais progressivo para que as famílias com baixos
rendimentos não permaneçam «encarceradas na pobreza».



Desde que subiu à presidência dos Estados Unidos em
2009 Barack Obama evitou falar de discriminação racial. Salvo nalgumas
iniciativas insistiu em que o verdadeiro debate se deve centralizar na
criação de postos de trabalho e irritou alguns sectores afro-americanos
ao falar de «responsabilidade pessoal» e de não aceitar a vitimização.
Nos últimos meses, a luta contra a desigualdade transformou-se no
epicentro do discurso de Obama, que em Fevereiro anunciou um aumento de
salário mínimo federal de 7,25 dólares por hora para 10,10.



Embora agora retomem protagonismo, as reclamações económicas dos negros
não são novas. Basta recordar a marcha para Washington em Agosto de
1963, que culminou com o famoso discurso de Martin Luther King, que
reclamava mais trabalho e melhores salários. Pedia-se na época que o
salário mínimo passasse de 1,15 dólares por hora para 2. De acordo com a
evolução da inflação esses 1,15 dólares corresponderiam hoje a 8,80. No
ano seguinte a vergonhosa segregação racial terminou oficialmente, mas
meio século depois ainda permanece: a crueza dos números torna inegáveis
os efeitos económicos da discriminação.


Washington 20 ABR 2014 - 03:41 CET

Fonte: El País 


terça-feira, 13 de maio de 2014

13 de maio: viva 20 de novembro! | Revista Fórum Semanal


13 de maio: viva 20 de novembro!





13 de maio: viva 20 de novembro!
 



Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
começou-se a lembrar de um lutador exemplar contra o escravismo no
Brasil, Luiz Gama, que até recentemente era lembrado por poucos. Ele não
foi escravo por doze anos, foram “apenas” oito. Mas sua história é
exemplar

Por Mouzar Benedito

O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”
13 de maio é data boa para se lembrar de outra, 20 de novembro.

A primeira representa a história oficial, a libertação
dos escravos como se fosse uma simples canetada da Princesa Isabel, sem
mais nem menos.
A história oficial do Brasil é cheia dessas coisas. A independência aconteceu com um mero grito, e assim por diante.
Os lutadores preferem, no caso da libertação dos
escravos, ter como data símbolo dessa luta antiescravista, o dia do
assassinato de Zumbi, 20 de novembro. É justo.
Ignora-se as lutas que aconteceram para chegar a uma
determinada conquista. O Brasil ficou independente em 7 de setembro de
1822, e pronto. Felizmente, essas coisas estão sendo revistas. Na Bahia,
não é à toa que 2 de julho aparece com frequência e é comemorado como
dia da “Independência da Bahia”. É que nessa data, em 1823, quase um ano
depois da data oficial da independência, os portugueses que resistiam à
independência brasileira naquele estado, foram definitivamente
derrotados.
No Piauí, a derrota dos portugueses foi concluída em 13
de março de 1823, na Batalha do Jenipapo. O Pará “aderiu” ao Brasil
definitivamente em 15 de agosto de 1823. No Maranhão também, a
independência foi conquista nesse ano.
Mas voltando ao 13 de maio, a data comemorada durante
muito tempo como a da “Libertação dos Escravos” já não é bem aceita.
Para começar foi uma libertação não tão libertária assim. Até nos
Estados Unidos, país que não nos serve de exemplo para muitas coisas, a
libertação dos escravos foi mais correta: cada escravo libertado ganhava
uma mula e um pedaço de terra para tocar a vida. Aqui, foram
simplesmente jogados nas ruas.
Mesmo assim, muitos que lutavam pelo fim da escravidão, como José do Patrocínio, louvaram a Princesa Isabel por isso.
Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
que conta a história de um negro livre sequestrado e vendido como
escravo no sul dos Estados Unidos, começou-se a lembrar de um lutador
exemplar contra o escravismo no Brasil, Luiz Gama, que até recentemente
era lembrado por poucos. Ele não foi escravo por doze anos, foram
“apenas” oito. Mas sua história é exemplar.
Sua mãe, Luíza Mahin, era uma negra livre, retinta,
bonita, lutadora. Pouco se sabe dela, mas participou de todas as
revoltas negras das primeiras décadas do século XIX na Bahia. De origem
nagô, sabia ler e escrever em árabe, e era quituteira, vendia seus
quitutes por toda Salvador. Assim, servia de elo entre revoltosos. Teve
um envolvimento com um homem de família fidalga portuguesa e daí nasceu
Luiz Gama. Quando ocorreu a Sabinada, revolta liderada pelo médico
Francisco Sabino Vieira, em 1837, proclamando a “República Bahiense”,
ela teve papel importante. Com a derrota, muitos militantes foram presos
e mortos. Para não ser pega, deixou o pequeno Luiz, então com 7 anos de
idade, com o pai dele e fugiu para o Rio de Janeiro.
Vendido pelo pai
Até os 10 anos de idade, ele foi bem tratado pelo pai,
que aí se revelou um pulha: para pagar dívidas contraídas em jogos,
vendeu o filho como escravo, para um negociante paulista. Além de ser um
ato extremamente canalha, era totalmente ilegal: não era permitido
escravizar pessoas nascidas de pais livres, e além disso era proibido
levar escravos da Bahia para outros estados, por causa do espírito
revoltoso dos negros baianos. Temiam que eles “contaminassem” escravos
de outros estados.
Pois bem, primeiro em Campinas, depois em São Paulo, foi
escravo até completar 18 anos. Tinha aprendido a ler com um estudante
de Direito que foi morar na casa do seu “senhor” e ensinou os filhos do
próprio escravocrata. Aí, reivindicou a liberdade, mas o “senhor” não
concedeu. Conseguiu a liberdade, não se sabe como, já que em 1891, o
então ministro da Fazenda Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação
sobre a escravidão no Brasil, alegando que ela havia sido uma mancha na
história do Brasil. E foi mesmo. Mas o motivo era que ele queria evitar
que antigos donos de escravos reivindicassem indenização com base
nesses papéis que valiam como títulos de propriedade. Por isso, perdemos
registros históricos importantes.
Para não ser perseguido pelo ex-senhor, ele sentou praça
na polícia, mas seu espírito libertário não condizia com a profissão,
acabou expulso. Arrumou trabalho como amanuense (copista de documentos
oficiais – na época não havia outra forma de fazer cópias de
documentos), no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça, que tinha
uma vasta biblioteca jurídica. Luiz Gama leu tudo, passou a entender de
leis mais do que quase todos advogados, e se tornou rábula, quer dizer,
advogado não formado, o que na época era permitido.
E dedicou todo o seu conhecimento à libertação de
escravos, pela via jurídica. Conseguiu desta forma libertar mais de
quinhentas pessoas. E atuava também como jornalista e poeta, tornou-se
um republicano radical, mas descobriu que os republicanos não eram tão
republicanos assim: não aceitavam incluir em suas propostas o fim do
escravismo.
Era sempre ameaçado de morte, mas não vacilava. Ia para
certos locais defender escravos sabendo que podia ser morto, mas ia. Num
júri no interior paulista, defendendo um escravo que matou o senhor que
o maltratava, disse a sentença que provocou um grande rebuliço: “O
escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em
legítima defesa”.
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Radicalizando a luta
 Já perto do fim da vida, começou a reconhecer que sua
luta libertando escravos individualmente, enquanto o fim da escravatura
não vinha, precisava ser radicalizada. Com uma diabetes que se agravava e
limitava seus movimentos, em 1879 passou a achar que seriam necessárias
insurreições como as lideradas por Antônio Bento, outro injustiçado,
esquecido pela história oficial.
Antônio Bento de Souza e Castro era um negro de família
rica, filho de um farmacêutico português. Estudou direito, tornou-se
juiz em Atibaia e abandonou tudo para se dedicar à luta pela libertação
de escravos. Defendia métodos mais radicais do que os de Luiz Gama e
passou a ser chamado de “O fantasma da abolição”. Então, já doente, Luiz
Gama fundou o Centro Abolicionista, com a participação ativa de Antônio
Bento, e em 1882 lançou o jornal Ça Ira!, que tinha forte
participação do escritor Raul Pompeia, autor de um artigo que defendia
claramente o direito do escravo matar seu “senhor”.
Depois veio o Partido Abolicionista e o movimento
Caifazes, liderado por Antônio Bento. Seus militantes iam a fazendas e
estimulavam os escravos a fugirem, com apoio deles. Em alguns casos,
raptavam escravos que tinham medo de fugir e, com apoio de ferroviários
simpatizantes da causa, os levavam (assim como os que fugiam
espontaneamente) para o quilombo do Jabaquara, em Santos, arrumavam
documentação falsa para eles e os mandavam para outras regiões, como
negros livres.
O nome do movimento teve inspiração bíblica. Caifás, no
Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não
compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo
não pereça?”, antes de entregar Jesus a Pilatos.
Luiz Gama morreu em agosto de 1882, sem ver o fim do
escravismo. Seu enterro foi histórico, o maior ato público visto na
capital paulista até aquela época, com participação de negros libertos,
escravos, intelectuais, escritores, artistas, o povo todo. Até seus
inimigos.
Foi-se o “precursor do abolicionismo”, ficou o “fantasma
da abolição”, Antônio Bento, que continuou sua luta até ser
assassinado. Ah, se eu fosse historiador… Não vi nada até hoje, a não
ser referências vagas, sobre Antônio Bento e os Caifazes. Está aí uma
sugestão.
Foto de capa: retrato de Luiz Gama por Raul Pompéia (Domínio Público)

13 de maio: viva 20 de novembro! | Revista Fórum Semanal


13 de maio: viva 20 de novembro!





13 de maio: viva 20 de novembro!
 



Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
começou-se a lembrar de um lutador exemplar contra o escravismo no
Brasil, Luiz Gama, que até recentemente era lembrado por poucos. Ele não
foi escravo por doze anos, foram “apenas” oito. Mas sua história é
exemplar

Por Mouzar Benedito

O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”
13 de maio é data boa para se lembrar de outra, 20 de novembro.

A primeira representa a história oficial, a libertação
dos escravos como se fosse uma simples canetada da Princesa Isabel, sem
mais nem menos.
A história oficial do Brasil é cheia dessas coisas. A independência aconteceu com um mero grito, e assim por diante.
Os lutadores preferem, no caso da libertação dos
escravos, ter como data símbolo dessa luta antiescravista, o dia do
assassinato de Zumbi, 20 de novembro. É justo.
Ignora-se as lutas que aconteceram para chegar a uma
determinada conquista. O Brasil ficou independente em 7 de setembro de
1822, e pronto. Felizmente, essas coisas estão sendo revistas. Na Bahia,
não é à toa que 2 de julho aparece com frequência e é comemorado como
dia da “Independência da Bahia”. É que nessa data, em 1823, quase um ano
depois da data oficial da independência, os portugueses que resistiam à
independência brasileira naquele estado, foram definitivamente
derrotados.
No Piauí, a derrota dos portugueses foi concluída em 13
de março de 1823, na Batalha do Jenipapo. O Pará “aderiu” ao Brasil
definitivamente em 15 de agosto de 1823. No Maranhão também, a
independência foi conquista nesse ano.
Mas voltando ao 13 de maio, a data comemorada durante
muito tempo como a da “Libertação dos Escravos” já não é bem aceita.
Para começar foi uma libertação não tão libertária assim. Até nos
Estados Unidos, país que não nos serve de exemplo para muitas coisas, a
libertação dos escravos foi mais correta: cada escravo libertado ganhava
uma mula e um pedaço de terra para tocar a vida. Aqui, foram
simplesmente jogados nas ruas.
Mesmo assim, muitos que lutavam pelo fim da escravidão, como José do Patrocínio, louvaram a Princesa Isabel por isso.
Este ano, com o filme Doze anos de escravidão,
que conta a história de um negro livre sequestrado e vendido como
escravo no sul dos Estados Unidos, começou-se a lembrar de um lutador
exemplar contra o escravismo no Brasil, Luiz Gama, que até recentemente
era lembrado por poucos. Ele não foi escravo por doze anos, foram
“apenas” oito. Mas sua história é exemplar.
Sua mãe, Luíza Mahin, era uma negra livre, retinta,
bonita, lutadora. Pouco se sabe dela, mas participou de todas as
revoltas negras das primeiras décadas do século XIX na Bahia. De origem
nagô, sabia ler e escrever em árabe, e era quituteira, vendia seus
quitutes por toda Salvador. Assim, servia de elo entre revoltosos. Teve
um envolvimento com um homem de família fidalga portuguesa e daí nasceu
Luiz Gama. Quando ocorreu a Sabinada, revolta liderada pelo médico
Francisco Sabino Vieira, em 1837, proclamando a “República Bahiense”,
ela teve papel importante. Com a derrota, muitos militantes foram presos
e mortos. Para não ser pega, deixou o pequeno Luiz, então com 7 anos de
idade, com o pai dele e fugiu para o Rio de Janeiro.
Vendido pelo pai
Até os 10 anos de idade, ele foi bem tratado pelo pai,
que aí se revelou um pulha: para pagar dívidas contraídas em jogos,
vendeu o filho como escravo, para um negociante paulista. Além de ser um
ato extremamente canalha, era totalmente ilegal: não era permitido
escravizar pessoas nascidas de pais livres, e além disso era proibido
levar escravos da Bahia para outros estados, por causa do espírito
revoltoso dos negros baianos. Temiam que eles “contaminassem” escravos
de outros estados.
Pois bem, primeiro em Campinas, depois em São Paulo, foi
escravo até completar 18 anos. Tinha aprendido a ler com um estudante
de Direito que foi morar na casa do seu “senhor” e ensinou os filhos do
próprio escravocrata. Aí, reivindicou a liberdade, mas o “senhor” não
concedeu. Conseguiu a liberdade, não se sabe como, já que em 1891, o
então ministro da Fazenda Rui Barbosa mandou queimar toda a documentação
sobre a escravidão no Brasil, alegando que ela havia sido uma mancha na
história do Brasil. E foi mesmo. Mas o motivo era que ele queria evitar
que antigos donos de escravos reivindicassem indenização com base
nesses papéis que valiam como títulos de propriedade. Por isso, perdemos
registros históricos importantes.
Para não ser perseguido pelo ex-senhor, ele sentou praça
na polícia, mas seu espírito libertário não condizia com a profissão,
acabou expulso. Arrumou trabalho como amanuense (copista de documentos
oficiais – na época não havia outra forma de fazer cópias de
documentos), no gabinete do conselheiro Furtado de Mendonça, que tinha
uma vasta biblioteca jurídica. Luiz Gama leu tudo, passou a entender de
leis mais do que quase todos advogados, e se tornou rábula, quer dizer,
advogado não formado, o que na época era permitido.
E dedicou todo o seu conhecimento à libertação de
escravos, pela via jurídica. Conseguiu desta forma libertar mais de
quinhentas pessoas. E atuava também como jornalista e poeta, tornou-se
um republicano radical, mas descobriu que os republicanos não eram tão
republicanos assim: não aceitavam incluir em suas propostas o fim do
escravismo.
Era sempre ameaçado de morte, mas não vacilava. Ia para
certos locais defender escravos sabendo que podia ser morto, mas ia. Num
júri no interior paulista, defendendo um escravo que matou o senhor que
o maltratava, disse a sentença que provocou um grande rebuliço: “O
escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em
legítima defesa”.
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Antônio Bento, líder do movimento Caifazes: esquecido pela história oficial (Domínio público)
Radicalizando a luta
 Já perto do fim da vida, começou a reconhecer que sua
luta libertando escravos individualmente, enquanto o fim da escravatura
não vinha, precisava ser radicalizada. Com uma diabetes que se agravava e
limitava seus movimentos, em 1879 passou a achar que seriam necessárias
insurreições como as lideradas por Antônio Bento, outro injustiçado,
esquecido pela história oficial.
Antônio Bento de Souza e Castro era um negro de família
rica, filho de um farmacêutico português. Estudou direito, tornou-se
juiz em Atibaia e abandonou tudo para se dedicar à luta pela libertação
de escravos. Defendia métodos mais radicais do que os de Luiz Gama e
passou a ser chamado de “O fantasma da abolição”. Então, já doente, Luiz
Gama fundou o Centro Abolicionista, com a participação ativa de Antônio
Bento, e em 1882 lançou o jornal Ça Ira!, que tinha forte
participação do escritor Raul Pompeia, autor de um artigo que defendia
claramente o direito do escravo matar seu “senhor”.
Depois veio o Partido Abolicionista e o movimento
Caifazes, liderado por Antônio Bento. Seus militantes iam a fazendas e
estimulavam os escravos a fugirem, com apoio deles. Em alguns casos,
raptavam escravos que tinham medo de fugir e, com apoio de ferroviários
simpatizantes da causa, os levavam (assim como os que fugiam
espontaneamente) para o quilombo do Jabaquara, em Santos, arrumavam
documentação falsa para eles e os mandavam para outras regiões, como
negros livres.
O nome do movimento teve inspiração bíblica. Caifás, no
Evangelho segundo São João, teria dito: “Vós não sabeis, não
compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo
não pereça?”, antes de entregar Jesus a Pilatos.
Luiz Gama morreu em agosto de 1882, sem ver o fim do
escravismo. Seu enterro foi histórico, o maior ato público visto na
capital paulista até aquela época, com participação de negros libertos,
escravos, intelectuais, escritores, artistas, o povo todo. Até seus
inimigos.
Foi-se o “precursor do abolicionismo”, ficou o “fantasma
da abolição”, Antônio Bento, que continuou sua luta até ser
assassinado. Ah, se eu fosse historiador… Não vi nada até hoje, a não
ser referências vagas, sobre Antônio Bento e os Caifazes. Está aí uma
sugestão.
Foto de capa: retrato de Luiz Gama por Raul Pompéia (Domínio Público)

"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy" — CartaCapital






"Se a bandeirinha é bonitinha, que vá posar na Playboy"

A agressão verbal contra a auxiliar Fernanda Uliana
prova que o futebol é o penúltimo reduto da misoginia. O último é o
jornalismo boleiro. Por Matheus Pichonelli

bandeirinha.jpg
"Reportagem" do jornal Extra sobre a bandeirinha Fernanda Uliana
 
O futebol é o penúltimo reduto
da misoginia. O último é o jornalismo boleiro. Misoginia, para quem não
sabe, é a palavra designada pelos gregos para classificar o “horror e a
aversão” a tudo o que é ligado ao feminino e às mulheres.
Essa aversão ganhou ares de alarme após a vitória do Atlético Mineiro
sobre o Cruzeiro no domingo 11. Desde então, nenhum assunto foi mais
comentado no mundo futebolístico do que a existência da bandeirinha
Fernanda Colombo Uliana. Nem mesmo os erros cometidos por ela durante a
partida e referendados por um homem, o árbitro Heber Roberto Lopes,
entre eles um pênalti não marcado e um impedimento inexistente para a
equipe azul celeste. O assunto era outro: a sua simples presença da
bandeirinha em um local sagrado para os homens.


Basta uma simples busca no Google (“bandeirinha gata é clicada em
pose indiscreta”, “conheça a linda e polêmica bandeirinha”) e as
deferências dos ogros do esporte sobre o corpo estranho em um grutão
construído por homens, entre homens e para os homens. “Se ela é
bonitinha, que vá posar na Playboy. No futebol tem que ser boa de
serviço”, chegou a dizer o diretor de futebol do Cruzeiro, Alexandre
Mattos, após o clássico mineiro.


Em sua demonstração pública de misoginia, Mattos se esqueceu de
lembrar que os erros da bandeirinha foram referendados pelo chefe da
arbitragem. Um homem, portanto. Mas, ao fim do jogo, nem Mattos nem
ninguém mandou que Heber Roberto Lopes fosse posar na Playboy. Ou que
fosse consertar motor de carro. Ou plantar


laranja. Faz sentido: quando o árbitro erra, ele é poupado até no
xingamento. A ofensa é direcionada à aleivosia da sua mãe ou à
fidelidade da sua esposa. Nunca a ele (a não ser, claro, que seja
negro).


Pela repercussão, os erros da bandeirinha não colocaram a arbitragem
em xeque, mas sim a capacidade feminina de se instalar em um campo de
domínio masculino. Uma coisa é mulher jogar futebol. Quando isso
acontece, ninguém se comove: os estádios não lotam, a imprensa esportiva
dá de ombros, os patrocinadores fazem pouco caso. Mas uma mulher
arbitrando no quintal masculino é mais que uma concessão: é uma ofensa.
Porque tudo no mundo futebolístico é masculino. Nesse domínio, a regra é
clara: a única seleção capacitada a representar o País é composta por
11 jogadores homens, um treinador homem, auxiliares técnicos homens e
dirigentes homens. Se tiverem sorte, as mulheres poderão atuar como
nutricionistas ou psicólogas.


Na minha vida profissional, tive pelo menos dez mulheres como
superiores diretas. Se para qualquer uma eu respondesse, a cada decisão
contrariada, que ela deveria posar na Playboy, ganharia uma bifa na
cara, uma carta de demissão e um processo na Justiça. No futebol a
relação inexiste porque o esporte quase nunca é pensado para outro
público se não o tiozão sentado no sofá, ou na arquibancada, com uma
lata de cerveja na mão. Porque é construído e transmitido por tiozões.
Basta notar os comentários ao fim dos jogos. Basta reparar nas piadas
dos comentaristas ao lado das apresentadoras-alvo-de-piadas. Basta ver o
esforço das câmeras para pinçar um decote no meio da torcida (se houver
um celular entre o decote, melhor). E basta ver ao fim do jogo as
galerias de “belas da torcida”. Ou a galeria de poses insinuantes à
beira do campo da nova “musa” do esporte.


Em conversas e rodas informais, costumo dizer que o futebol é um
microcosmos da vida comum, e não apenas por assimilar em campo as
práticas que consideramos moralmente valiosas, como a generosidade do
passe, a doação pelo companheiro contundido, o fôlego extra por um
objetivo, a fidelidade dos propósitos e a frieza na hora de tomar uma
decisão (o pênalti, nesse sentido, é a situação-limite que todos os
cineastas buscam levar à tela). Mas é também um microcosmo do nosso
primitivismo. O desembaraço do achincalhe sobre a bandeirinha Fernanda
Uliana é o mesmo que permite agredir mulheres nas ruas e culpar a sua
saia. Segundo essa concepção, Uliana e as mulheres não entram em campo
para trabalhar, mas para aparecer. E as agressões são apenas as reações
naturalizadas de uma mesma ousadia – e não de uma incapacidade ancestral
de conter o verbo ou a agressão.


Ao fundo da fala do dirigente do Cruzeiro é possível visualizar uma
velha cortina: “quem mandou provocar”, “se estivesse em casa não teria
acontecido nada disso”. “Se errou, é porque é mulher”. “Se acertou, é
apesar de ser mulher”. A galeria de poses sensuais de Fernanda em seu
ambiente de trabalho (só para lembrar: os juízes também usam shorts e
deixam parte das coxas à mostra) é o combustível aditivado para a
construção desse discurso.


E é com base nesse discurso que, em nome honra (hombridade?) da sua
torcida e de seu país, o futebol trancafia durante dias os marmanjos
para se preparar para as partidas decisivas. Na concentração é proibido
chegar perto de mulher. E é proibido receber ou promover visitas
íntimas. Maldita maçã envenenada esta de Eva. Não só expulsou os donos
das costelas do paraíso como quer envenenar o último bastião de sua
pureza, essa grande confraria masculina chamada futebol.