quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Bolívia: nova Constituição e ameaças da direita

Ninguém ainda se anima a antecipar se a nova Constituição, que vai a plebiscito, ficará só como uma somatória de boas intenções ou será o texto que vai deixar para trás séculos de discriminação e pobreza das maiorias indígenas.

LA PAZ – Quando parecia que estava mais longe da vida que da morte, a Assembléia Constituinte boliviana renasceu das próprias cinzas e aprovou em tempo recorde uma nova Carta Magna, promovida pelo presidente Evo Morales. As críticas da direita por conta do caráter imprevisto da reunião de Oruro (a três horas de La Paz ) não alteraram os constituintes de esquerda, que optaram por essa cidade árida e fria dos Andes bolivianos para escapar dos conflitos em Sucre, sede original da convenção. Em uma sessão que acabou sendo uma maratona que durou por toda a noite de sábado para domingo, aprovaram “em detalhe” os mais de 400 artigos do novo texto constitucional. "É uma grande alegria para mim e para todo o movimento indígena, operário, campesino e popular", reagiu Evo Morales, que desistiu de incluir no novo texto a possibilidade de reeleição indefinida do presidente.

Vários constituintes ficaram surpresos ao constatar que essa proposta, rejeitada pela oposição – e com um arriscado cunho chavista – havia sido trocada pela mais comedida possibilidade de reeleição por apenas mais uma vez. Tudo vai começar a ser contabilizado a partir da entrada em vigor da nova Carta, ou seja que, se as urnas o acompanham, o mandatário boliviano pode aspirar a ficar no Palácio Quemado até 2018. Antes de viajar até Buenos Aires para a pose da presidenta Cristina Fernández de Kirchner, Morales disse que o texto aprovado em Oruro vai garantir “uma revolução social com estabilidade” e voltou a criticar os “setores oligárquicos que querem frear a mudança”.

Um antropólogo desprevenido poderia ter dificuldades em perceber a diferença entre o último encontro da Constituinte e uma reunião sindical. Aos chapéus, chinelos, ponchos e saias indígenas que abundavam no conclave somou-se uma “guarda popular” que, igual que a Polícia sindical nos congressos camponeses, trancou as portas para impedir que os constituintes "fracos" abandonassem o local antes de cumprir com sua tarefa. Ao meio-dia de domingo (9), os constituintes cantaram o hino nacional com o punho em alto – como instruiu recentemente Morales –, abraçaram-se, choraram e deram por concluída sua missão. Agora o novo texto precisará ser ratificado pelos bolivianos em um referendo e, em caso que vença o Sim, devem ser convocadas eleições gerais antecipadas para renovar todos os cargos.

Apesar de existir o quorum legal, as denúncias da direita apontam para uma modificação do regulamento que permitiu aprovar a nova lei de leis com dois terços dos presentes e não do total dos membros da assembléia e passar diretamente para referendo. “Não obedeçam a nova Constituição”, convocou na segunda-feira o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Branko Marinkovic, anunciando o não reconhecimento do novo texto, rejeitado por cinco dos nove governadores. Disse que “Santa Cruz vai se reger pelo seu próprio estatuto autonômico” que poderia ser aprovado ainda nesta semana. O governador de Santa Cruz, Rubén Costas, rejeitou “rotundamente um manifesto político feito por constituintes servis e vassalos submissos que querem nos fazer acreditar que é uma Constituição”. Disse que “Santa Cruz está em perigo” e convocou a que “em cada canto, em cada bairro, em cada povoado, se organize a resistência civil e a luta pela autonomia de forma militante”.

Famoso pelos seus arroubos, o prefeito de Santa Cruz de la Sierra, Percy Fernández, disparou: “Vai ser preciso se pintar e botar plumas para existir neste país”. "Não se tem que chamar de Constituição essa bola de papel dos alteños*, disse um dos que responderam a uma pesquisa no centro de Santa Cruz. Alteños são os habitantes da cidade de El Alto, próxima a La Paz.

A nova Carta tem um forte tom nacionalista, mas não fala em socialismo. Entre outras coisas, obriga a propriedade privada a “cumprir uma função social”, considera traição à pátria a “outorga da propriedade de recursos naturais em favor de potências, empresas ou pessoas estrangeiras” e reconhece vários tipos de propriedade, incluindo a comunitária. Ao mesmo tempo, separa a Igreja do Estado, garante as autonomias regionais e indígenas e proíbe a instalação de bases militares estrangeiras. Também estabelece a eleição por voto popular dos juízes da Corte Suprema e reconhece a justiça comunitária indígena. Não obstante, o oficialismo recuou na sua proposta de voto aos 16 anos e na eliminação do Senado. O tema do latifúndio vai para um referendo paralelo para determinar o limite de hectares que vai poder possuir cada proprietário.

No último sábado (8), em meio a festejos e críticas, ninguém se animava a antecipar se a nova Constituição vai ficar só como uma somatória de boas intenções de vida curta ou se ela será o texto que vai deixar para trás séculos de discriminação e pobreza das maiorias indígenas.

Naila Freitas / Verso Tradutores

Nenhum comentário: