quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

O holocausto do povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul

Asfixiados em 30 mil hectares de terra, cerca de 40 mil Guarani-Kaiowá – maior população de um povo indígena no país – enfrentam crescentes taxas de homicídio e o aliciamento das usinas de cana-deaçúcar, que encontram no desespero desse povo a mão-de-obra ideal para seu megaprojeto e em suas terras uma perspectiva de lucro cada vez mais alto

Asfixiados em 30 mil hectares de terra, cerca de 40 mil Guarani-Kaiowá – maior população de um povo indígena no país – enfrentam crescentes taxas de homicídio e o aliciamento das usinas de cana-deaçúcar, que encontram no desespero desse povo a mão-de-obra ideal para seu megaprojeto e em suas terras uma perspectiva de lucro cada vez mais alto
Uma tragédia programada


Cristiano Navarro
de Dourados (MS)

HÁ PELO menos duas décadas, a tragédia do povo Guarani- Kaiowá no Estado do Mato Grosso do Sul tem sido anunciada. As projeções de uma grande população em explosão demográfica vivendo em pequenas porções de terra apontavam o caminho de um quase silencioso genocídio em curso.
Confinado e submetido a um sistema escravocrata que se impõe reprimindo violentamente qualquer tipo de organização, o povo Guarani-Kaiowá se vê condenado a uma sina de morte por assassinatos, suicídios e fome.
Nos últimos anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem divulgado o alarmante crescimento do número de assassinatos. Em 2003, foram registrados 13 homicídios. Em 2004, 19 foram assassinados. Em 2005, ocorreram 28 registros de homicídios de índios. Em 2006, 20 índios assassinados. E em 2007, até agora o número chegou a 37 assassinatos.
Milícias contratadas por fazendeiros também são responsáveis por executar indígenas, como ocorreu em 2005, quando um segurança da empresa Gaspem matou o Guarani- Kaiowá, Dorvalino Rocha. Segundo os dados recolhidos pelo Cimi, de 2004 a 2007, foram 12 casos de execução sumária de indígenas.

Pouca terra
No levantamento do Ministério Público Federal, a soma de todas as terras ocupadas atualmente pelos Guarani- Kaiowá está em torno de 30,4 mil hectares para mais de 47 mil pessoas – a maior população de um povo indígena no país.
A falta de terra e de uma política agrícola para produção de alimentos têm gerado um quadro de fome que coloca em risco principalmente as crianças menores de 5 anos. Uma prova da fragilidade alimentar dessas comunidades aconteceu em janeiro e fevereiro deste ano, quando depois de dois meses de suspensão da entrega de cestas básicas sete crianças morreram de subnutrição.
Com perspectivas sombrias para o futuro, os jovens entre 12 e 18 anos são as principais vítimas da macabra epidemia de suicídio que atinge esse povo. A média entre os Guarani- Kaiowá é de 100 mortos para cada 100 mil, enquanto a média nacional é de 4,5 mortos para cada 100 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde.
Segundo a Funasa, a expectativa de vida entre os Guarani- Kaiowá é 45 anos de idade, já a expectativa de vida entre os brasileiros, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de 72 anos.

Política genocida
Dos 37 assassinatos ocorridos este ano dois foram encomendados por fazendeiros. Os outros 35 foram provocados por motivos banais. Destes, todos foram efetivados sob estado de embriaguez ou sob efeito de drogas. As armas utilizadas para os crimes foram sempre facões ou foices.
“A distribuição de cachaça, droga e facão é a principal política do governo e do Estado para acabar com o problema Guarani-Kaiowá. Vão acabar com o problema acabando com o povo, fazendo a gente se matar”, alerta Anastácio Peralta, articulador do Movimento dos Professores e Lideranças em Defesa dos Direitos Guarani-Kaiowá.
A violência entre os Guarani- Kaiowá segue a lógica da sociedade que o aprisiona. Sem condições de uma vida equilibrada para todos à sobrevivência é cada um por si.
É consenso entre os antropólogos e historiadores que a desestruturação do modo de vida tradicional acontece com a falta de terra. “Quando não há espaço para a vida comunitária acontece a fragmentação de uma comunidade, de uma família. Essa fragmentação é a individualização de cada membro dessa comunidade”, explica o antropólogo Levi Marques, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
“Para a gente é impossível 15 mil pessoas viverem em comunidade em 3,5 mil hectares” complementa a professora Guarani-Kaiowá, Teodora de Souza, referindo-se ao caos em que vive a aldeia de Dourados, onde aconteceram mais da metade dos assassinatos deste ano.

Usinas de cana
Nesse cenário, a oferta de trabalho nas usinas de canade-açúcar encontra no desespero da situação Guarani-Kaiowá a mão-de-obra ideal para o seu megaprojeto. Por R$ 500 ao mês, homens adultos e adolescente deixam suas famílias e, muitas vezes, a escola para trabalhar entre 12 e 14 horas ao dia no corte de cana.
Na maioria dos casos, as usinas não oferecem nenhuma condição. Neste ano, 950 trabalhadores indígenas foram encontrados em situação de trabalho degradante servindo nas usinas. No dia 13, foram encontrados 800 trabalhadores indígenas sem água em uma usina em Brasilândia.
Operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, composto por Auditores Fiscais do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal resultou na interdição da unidade da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool/Agrisul no município localizado a aproximadamente 400 quilômetros de Campo Grande.
Para o antropólogo da UFGD, o trabalho no corte de cana-de-açúcar e sua dependência é inversamente proporcional as condições e ao espaço que uma população dispõe para trabalhar na terra. Antônio Brand, historiador da Universidade Católica Dom Bosco, acredita que o projeto da cana-de-açúcar, além de atender os interesses econômicos internacionais, é pensado pelas elites como uma forma de contornar o conflito pela terra, levando a mão-deobra do homem adulto para fora das aldeias.
“Mas isto é empurrar com a barriga um problema histórico, porque amanhã ou depois essa alternativa não será mais viável”, contesta o historiador Brand, chamando a atenção para um cenário ainda mais caótico “o que vão fazer esses homens com a mecanização das lavouras”, questiona temendo que esta mão-de-obra não seja absorvida em outro tipo de trabalho.
Outro fator que gera a impossibilidade de uma vida equilibrada está na degradação ambiental. Segundo levantamento do Ibama, da mata original nessa região, que é semelhante à Mata Atlântica, restou apenas 2%. Foi sobre esse ecossistema que, não existe mais, que o povo Guarani- Kaiowá sustentou o modo de vida tradicional desde sua chagada na região – por volta dos séculos 1 e 2 depois do nascimento de Cristo (dC). “Sem nossas caças, o rio e nossos remédios da mata, a gente fi ca fraco físico e espiritualmente, para alguns perde-se até a vontade lutar”, ressente Amilton Lopes, tradicional liderança Guarani-Kaiowá.

Justiça ou desepero
Recentemente, lideranças indígenas, o Ministério Público Federal em conjunto com a Fundação Nacional do Índio e o Ministério da Justiça assinaram um termo de acerto de conduta no qual se declara a intenção do Estado de acelerar os processos de reconhecimentos de 32 terras indígenas do povo Guarani-Kaiowá, com a promessa de envio de grupos de estudos antropológicos assim que possível.
No entanto, seguindo todos os trâmites determinados pela Constituição e contando com a boa vontade política do governo, com a qual os povos indígenas historicamente não tem contado, não há em um horizonte próximo qualquer possibilidade de solução estrutural para o drama. “O reconhecimento dessas terras aliviariam o problema, mas temos que ter em conta que esses processos devem demorar no mínimo cinco anos”, pondera Levi Marques.
Enquanto o processo de reconhecimento permanece parado e o genocídio Guarani- Kaiowá segue seu curso, a elite latifundiária local e investidores internacionais lucram de forma bastante otimista com a produção de cana-de-açúcar para o álcool. O IBGE afirma que para 2008 o ritmo de crescimento da área de plantio de cana-de-açúcar será de 30% (199,7mil hectares em 2007 para 260 mil hectares).
O IBGE aponta ainda que não são só os Guarani têm perdido com o aumento da produção de cana para combustível, a diminuição da produção de gêneros alimentícios tem levado a alta dos preços do feijão, mandioca e milho.

Pode demorar mais...
Um exemplo do que se pode esperar está na terra Ñanderu Marangatu homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 23 de março de 2005, com 9.316 hectares. Depois de 20 anos de luta da comunidade, em julho de 2005, o então presidente do STF Nelson Jobim decidiu liminarmente suspender os efeitos da homologação. Os fazendeiros, por meio de um mandado de segurança, pediram que o STF suspendesse os efeitos da homologação até que fosse concluído um processo de interrupção da demarcação que corre na Justiça Federal em Ponta Porá.
Em 15 de dezembro de 2005, mais de 200 policiais federais, usando helicópteros e muitas armas, tiraram cerca de 700 indígenas que viviam em 500 hectares. Os indígenas montaram acampamento na estrada ao lado da terra e lá ficaram por seis meses. Desde o despejo, os Guarani têm pedido ao STF que julgue o mérito do mandado de segurança e mantenha o direito do povo à terra homologada. O relator do caso é o ministro Cezar Peluzzo.
Em meio a este conflito, seguranças da empresa Gaspem contratados pelo fazendeiro mataram, no dia 24 de dezembro de 2005, o líder Guarani Dorvalino Rocha. A comunidade de Nhanderu Marangatu tem denunciadas frenqüentes agressões e ameças por parte dos fazendeiros. Em conseqüência das denúncias, no dia 8 de novembro, dois fuzis calibre 7,62 mm – um deles com o brasão do Exército Brasileiro – foram apreendidos pela Polícia Federal na fazenda Fronteira.
Os fuzis são armas privativas das Forças Armadas. A PF também apreendeu dois revólveres e uma espingarda calibre 22 e uma escopeta calibre 12. Uma pessoa, o capataz da fazenda Fronteira, foi preso. A fazenda pertence ao exprefeito de Antônio João, Dácio Queiroz (PMDB).

BrasilDefato

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