OL destaca o alto sentido de reparação histórica do Projeto de Lei aprovado às 22 horas desta terça-feira, 13 de maio, por unanimidade na Câmara dos Deputados. Através dele “é concedida anistia post mortem a João Cândido Felisberto, líder da chamada revolta da Chibata, e aos demais participantes do movimento”, com o objetivo de restaurar o que lhes foi assegurado pelo decreto nº 2280, de 25 de novembro de 1910. A anistia produzirá todos os seus efeitos, inclusive em relação às promoções a que teriam direito os anistiados se tivessem permanecido em serviço ativo, bem como em relação ao benefício da pensão por morte.
créditos: Professor Edney
O senador Paulo Paim garante que até a próxima semana o Projeto será referendado pelo Senado, de onde é originário, como iniciativa da senadora Marina Silva.
Como o próprio nome indica, a principal reivindicação dos revoltosos, que tomaram a direção dos principais encouraçadas de guerra do Brasil à época, era a abolição dos castigos físicos na Armada Nacional. Um motim contra a tortura!
Sobre a violência desses castigos, o então deputado federal, oficial da Marinha José Carlos de Carvalho, incumbido pelo governo de negociar com os revoltosos, comentou ao apresentarem-lhe um marinheiro surrado dois dias antes: “Examinei essa praça e trouxe-a comigo para terra, a fim de ser recolhida ao Hospital da Marinha. As costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”. (trecho de A Revolta da Chibata, de Edmar Morel)
Os rebeldes ameaçavam bombardear a cidade do Rio de Janeiro e os navios que não se amotinassem, caso não houvesse uma resposta positiva do governo. E o governo, por sua vez, ameaçava bombardear os revoltosos caso não se rendessem. O Congresso Nacional aprovou Projeto de Lei de anistia em 25 de novembro (a revolta ocorreu em 22 de novembro), da lavra do então senador Rui Barbosa.
Entretanto, não obstante a anistia aprovada pelo Congresso Nacional, que garantiu o fim da situação de grave tensão e o término da revolta, os seus participantes foram excluídos da Marinha, muitos presos em condições desumanas e mesmo mortos, sob o pretexto do levante do Batalhão Naval, ocorrido no começo de dezembro de 1910. O paradoxal é que muitos dos revoltosos da Rebelião da Chibata, inclusive João Cândido, foram leais ao governo por ocasião do levante, tendo sido absolvidos pelo Conselho de Guerra da Marinha, em novembro de 1912, embora desligados da Armada.
João Cândido, homem de poucas letras e exímio navegador (elogiado pelas manobras que comandou no Encouraçado Minas Gerias – principal navio da Armada), com a saúde abalada pelas condições carcerárias que enfrentou, passou a vender peixes e fazer pequenos biscates até sua morte em 1969, aos oitenta e nove anos, no ostracismo.
O senador Rui Barbosa, ao justificar o Projeto de Lei de anistia que apresentou, disse: “Eles tinham jogado ao mar toda a aguardente existente a bordo, para não se embriagarem; tinham feito guardar, com sentinelas, as caixas onde se achavam depositados os valores; tinham mandado guardar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que se não fossem violados; tinham guardado, na organização do movimento, um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros; tinham sido fiéis à sua idéia; tinham sido leais uns com os outros, desinteressados na luta. (...) A isto foram levados pelas conseqüências irresistíveis da situação na qual estavam colocados. As reclamações capitais existentes na base desse movimento correspondem a necessidade irrecusáveis”.
Aprovada formalmente pelo Congresso Nacional, em 26 de novembro de
Em função do ocorrido, muitos dos que sobreviveram sucumbiram à miséria. Veja-se o depoimento emblemático do líder João Cândido, colhido em 1968: “depois que saí da cadeia, ainda tentei trabalhar no mar, mas fui sempre muito perseguido, até na Marinha Mercante. (...). Depois da Revolta da Chibata caí na penúria. Quando houve a epidemia espanhola, em 1919, estava a serviço dos navios ingleses que estavam aqui, no momento da limpeza, desinfecção, enterrando ingleses. Depois ingressei na pesca, por falta de outra oportunidade. Trabalhei 40 anos no mercado de pesca. Em 1959, ali no entreposto da Praça XV, completei 40 anos no serviço e abandonei esse trabalho. Não tinha resultado, creio que ia morrer de fome”.
Quase um século depois, o Congresso Nacional resgata o nome e a memória desses homens de bem, que lutaram legitimamente contra a tortura e pelo fim do regime de semi-escravidão a que eram submetidos. E recompõe, na medida do possível, a história de suas vidas como se tivessem permanecido a serviço da Marinha brasileira. Isto era, afinal, o que deveria ter efetivamente acontecido, se a lei de anistia aprovada à época não ficasse letra morta. Ainda que com 98 anos de atraso, vale cantar os versos de Aldir Blanc e João Bosco: “Glória a todas as lutas inglórias. Salve o Almirante Negro!”
Chico Alencar é professor de história e deputado federal pelo PSOL-RJ
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