Luiz Carlos Azenha
Eu sei que muitos de vocês agora estão tentando entender o que está acontecendo nos bastidores da diplomacia. Farei algumas observações.
Israel quer reduzir o poder do Hamas em Gaza. Já fez isso militarmente. Agora quer fazê-lo politicamente. O Hamas, como vocês sabem, expulsou a Autoridade Palestina de Gaza. A Autoridade Palestina é comandada majoritariamente pelo Fatah.
Há mais facções entre os palestinos do que as famosas "tendências" do movimento estudantil, mas é assim mesmo em qualquer movimento político.
O Fatah representa o nacionalismo árabe tradicional, secular.
O Hamas é um movimento religioso sunita.
Israel considera o Hamas -- assim como o Hizbollah -- um braço regional do Irã. Mas já apoiou o movimento, quando precisava enfraquecer o Fatah.
Já reproduzi no site um texto do jornal israelense Haaretz em que as propostas de Israel eram colocadas na mesa: algum arranjo internacional para monitorar as fronteiras de Gaza e evitar a entrada de armas para o Hamas.
Um papel mais ativo para o Egito, que faz fronteira com Gaza.
O objetivo, lógico, é enfraquecer o Hamas. O que interessa, também, ao Egito. O Hamas tem ligações com a Irmandade Muçulmana, o movimento religioso que é implacavelmente reprimido pelo governo egípcio, com apoio dos Estados Unidos.
Não desprezem o papel que os neocons ainda jogam nos bastidores da política e da diplomacia dos Estados Unidos.
Os neocons, como eu já disse, são os "falcões" da política externa americana, alguns dos quais floresceram no interior do Partido Democrata. Migraram para o Partido Republicano e começaram a ter maior influência direta na Casa Branca no governo de Ronald Reagan. Foram sustentados, no interior do Partido Republicano, pela coalizão que reuniu a direita religiosa. Desde os anos 80 os neocons se articulam em jornais, revistas e institutos de Washington propagando suas teorias de que os Estados Unidos devem "promover a democracia" no mundo, se preciso à bala. O papel de Israel, nessa equação, é defender os Estados Unidos no Oriente Médio.
Os neocons mandaram na política externa dos Estados Unidos no governo Bush.
O texto do professor Avi Shlaim, publicado no jornal britânico Guardian, explica o papel dos neocons nos bastidores da disputa entre o Hamas e o Fatah. Um trecho:
No final dos anos 80, Israel tinha apoiado o nascente Hamas para enfraquecer a Fatah, o movimento nacionalista secular liderado por Yasser Arafat. Agora, Israel começou a encorajar os líderes corruptos do Fatah para derrubar seus rivais políticos religiosos e recapturar o poder. Os agressivos neoconservadores americanos participaram do plano sinistro para instigar uma guerra civil palestina. A interferência deles foi um fator-chave para o colapso do governo de unidade nacional e para o Hamas tomar o poder em junho de 2007, se antecipando a um golpe do Fatah.
A guerra iniciada por Israel em 27 de dezembro foi a culminação de uma série de confrontos com o governo do Hamas. Em amplo sentido, no entanto, é uma guerra entre Israel e o povo palestino, porque o povo havia eleito o partido [Hamas]. O objetivo declarado da guerra é enfraquecer o Hamas e intensificar a pressão até que os líderes concordem com um cessar-fogo nas condições de Israel. O objetivo não declarado é garantir que os palestinos em Gaza sejam vistos simplesmente como um problema humanitário e assim enfraquecer a luta por independência e um estado.
Agora fica mais fácil entender a proposta de John Bolton, o ex-embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, publicada há dias no jornal Washington Post.
Ele quer simplesmente "redesenhar" o mapa, atropelando os palestinos. Um trecho:
Vamos começar reconhecendo que criar a Autoridade Palestina a partir da velha OLP fracassou e que a solução de dois-estados baseado nela está morta. O Hamas matou essa idéia e mesmo a Terra Santa só serve para uma ressureição. Em vez disso, deveríamos buscar uma solução de "três estados", onde Gaza voltasse ao controle do Egito e a Cisjordânia, em alguma configuração, voltasse para a soberania da Jordânia. Entre outras anomalias, o conflito de hoje está entre três estados que estão nominalmente em paz. Fazer com que dois estados árabes retomem sua autoridade política é uma forma autêntica de estender a zona de paz e, mais importante, acrescentar a governos que estão dando paz e estabilidade a seus próprios países. "Observadores internacionais" ou coisas do gênero não chegam perto do necessário; precisamos estados de verdade com forças de segurança reais.
O texto é no melhor estilo neocon, inclusive com as "sacadas" supostamente irônicas de que "a Terra Santa só serve para uma ressureição". Humor negro à custa dos palestinos. Notem, inclusive, as artimanhas da linguagem, que também são típicas. Por exemplo, quando diz que os dois estados árabes deveriam "retomar" sua autoridade sobre Gaza e Cisjordânia. Como "retomar", se nunca tiveram autoridade em Gaza e na Cisjordânia?
Mas os neocons são assim mesmo: embusteiros, mentirosos, cínicos. Faz parte da fé religiosa deles de que são intelectualmente superiores e de que ninguém está prestando atenção. Se colar, colou. Foi assim que eles conseguiram empurrar o governo Bush para a "promoção da democracia" no Iraque, que matou um milhão de pessoas e provocou mais estabilidade ainda no Oriente Médio.
O que querem eles, agora? Que os Estados Unidos patrocinem um ataque de Israel às instalações nucleares do Irã.
No finalzinho do ano passado o mesmo John Bolton, o da solução dos três estados, publicou um artigo no The Wall Street Journal em que dizia:
Iran and North Korea achieved their objectives through diplomacy. Mr. Bush failed to achieve his. How can Mr. Obama do better? For starters, he could increase the pressure on China, which has real leverage over North Korea, to press Kim Jong Il's regime in ways that the six-party talks never approached. Options on Iran are more limited, but meaningful efforts at regime change and assisting Israel should it decide to strike Iran's nuclear facilities would be good first steps.
[O Irã e a Coréia do Norte atingiram seus objetivos através da diplomacia. Mr. Bush fracassou em atingir os seus. O Mr. Obama pode fazer melhor? Para início de conversa, ele poderia aumentar a pressão na China, que tem poder de influência na Coréia do Norte, para pressionar o regime de Kim Jong Il de forma que as negociações de seis países nunca fizeram. As opções no Irã são mais limitadas, mas tentativas significativas de mudar o regime e de assessorar Israel se Israel decidisse atacar as instalações nucleares do Irã seriam bons primeiros passos].
Ou seja, o cara é um maníaco do parque intelectual. Quer "trocar" o regime no Irã, com o Oriente Médio em chamas.
Resta saber qual será a influência dos neocons na política externa de Barack Obama. O presidente eleito dos Estados Unidos escolheu Hillary Clinton como secretária de Estado. Do ponto-de-vista dos neocons, uma boa escolha. Ela já prometeu "obliterar" o Irã para evitar que o país obtenha armas nucleares.
Israel joga com o medo que o Ocidente tem do Irã para obter o minimo. É aquela história: colocar o bode na sala para negociar a retirada. Tudo bem, não vamos bombardear o Irã, mas a comunidade internacional tem que "assumir Gaza". E o estado palestino? Ah, como escreveu John Bolton, seria muito fraco para enfrentar os "terroristas". Vamos dar Gaza para o Egito e a Cisjordânia para a Jordânia. E fica tudo "entre amigos".
O problema é que não faltam aos neocons dinheiro e espaço para propagar as suas idéias. Vejam só: o Bolton emplacou um artigo no Wall Street Journal e outro no Washington Post em três semanas!
Mas -- e o estado palestino? Não dá. Os argumentos o professor Shlaim explicou em seu artigo:
A máquina de propaganda de Israel persistentemente promoveu a noção de que os palestinos são terroristas, de que eles rejeitam coexistência com o estado judeu, de que o nacionalismo deles é pouco mais do que anti-semitismo, que o Hamas é apenas um punhado de fanáticos religiosos e que o islã é incompatível com democracia. Mas a verdade pura e simples é que o povo palestino é um povo normal, com aspirações normais. Não são melhores, mas também não são piores que qualquer grupo nacional. O que eles aspiram, acima de tudo, é um pedaço de terra que possam chamar de seu no qual possam viver com liberdade e dignidade.
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