A Telebrás está de volta. Desde o
dia 3 de agosto, ela retornou às operações. Seus antigos funcionários
foram reconvocados e têm pela frente o desafio de reerguer a empresa,
demonstrar a excelência do serviço público e, mais especificamente,
implementar o Plano Nacional de Banda Larga.
Quando se informou que a Telebrás seria reativada, houve uma grita de algumas empresas de telefonia e um ataque feroz da mídia tradicional. Ressuscitar a estatal foi tratado como verdadeira heresia. Na crítica mais amena, um disparate.
A volta da Telebrás não apenas provocou a ira do liberalismo como representou uma derrota amarga, pois incidiu no setor que até hoje é apresentado como modelo do processo de privatização e das benesses dele decorrentes. O tratamento dado ao tema mais uma vez foi acometido de uma patologia crônica, apontada por diversos estudiosos da mídia: a falta de contextualização ou mesmo a descontextualização de um assunto.
Uma falta de contextualização primária esteve na ausência de um diagnóstico sobre o setor, que sabidamente oferece serviços caros e de péssima qualidade. Suas empresas são campeãs de reclamações de usuários e de ações junto aos órgãos de defesa do consumidor.
Outra falta de contextualização, ainda mais importante, está em que poucos se deram ao trabalho de trazer à tona a história da Telebrás e de seu processo de privatização. Lacuna curiosa, pois, afinal, a quem interessaria relembrar tal passado? Resposta: interessaria à maioria das pessoas, aos que têm e aos que não têm acesso aos serviços de telecomunicação.
Até hoje, a melhor forma de contar essa história e travar a batalha da memória contra o esquecimento é revisitar o livro de Aloysio Biondi, “O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado”. O livro teve sua primeira edição em 1999. Sua 11ª edição se encontra disponível, gentil e gratuitamente, no site da Editora Fundação Perseu Abramo: http://www2.fpa.org.br/uploads/Bras...
Biondi, como se sabe, foi um monstro sagrado do jornalismo brasileiro, grande mestre do jornalismo econômico. Faleceu há 10 anos (em julho de 2000).
“O Brasil privatizado” abria seu capítulo “As estatais: sacos sem fundo?” justamente falando da Telebrás. Biondi relembrava que, entre 1996 e 1997, a empresa teve um salto de 250% em seu lucro, desmentindo categoricamente a mensagem fabricada de que as estatais só davam prejuízo. No livro que tornou-se um clássico para a compreensão sobre o que fizeram com o Brasil nos anos 90, Biondi contextualizava que tanto os prejuízos quanto os lucros das estatais tinham sido fabricados para atender a interesses muito bem identificados.
Dizia ele: “Os prejuízos que o achatamento de tarifas e preços trouxe para as estatais teve efeitos que o consumidor conhece bem: nesses períodos, elas ficaram sem dinheiro para investir e ampliar serviços. Explicam-se, assim, as filas de espera para os telefones, ou as constantes ameaças de “apagões” no sistema de eletricidade. Ou, dito de outra forma: não é verdade que os serviços das estatais tenham se deteriorado por “incompetência”. Como também é mentira que “o Estado perdeu sua capacidade de investir”, como diz a campanha dos privatizantes. O que houve foi uma política econômica absurda, que sacrificou as estatais.” (pág. 30).
Lembrava ainda de uma decisão incrível: em 1989, um decreto do presidente da República proibia o BNDE (hoje BNDES) de realizar empréstimos a empresas estatais.
Biondi era um “antifukuyama”. Só para lembrar, Fukuyama foi um dos garotos propaganda do neoliberalismo, muito badalado durante o Governo Reagan, autor de uma tese espalhafatosa sobre o “fim da história” e da vitória do capitalismo sobre tudo e sobre todos. Hoje, se alguém fizer um Google sobre os “francis” existentes na face da Terra, Fukuyama sequer aparece nas sugestões do motor de busca. Fica atrás de Francis Bacon, Francis Ford Copola, Francisco Cuoco e Francisco Alves. Indício de que quem corre o risco de desaparecer é o próprio Fukuyama.
Enfim, Biondi desmentia a tese do fim da história, mostrando que a moda era tentar “cancelar” a história. Contextualizava a esdrúxula decisão que proibia o BNDES de financiar empresas estatais lembrando ter sido ele criado “exatamente com o objetivo de fornecer recursos para a execução de projetos de infra-estrutura, que exigem desembolso de bilhões e bilhões – e precisam de alguns anos para sua execução” (pág. 30).
A memória do texto de Biondi é mais uma vez útil a um momento em que o BNDES também se tornou alvo de ataques violentos e virulentos à gestão de Luciano Coutinho, veja só, por fazer exatamente aquilo para o qual o banco existe: levantar investimentos e fazer financiamentos.
Biondi também usou o exemplo da Telebrás para relembrar uma diferença básica do setor público em relação ao privado: além de prestar serviços, as estatais deveriam ser utilizadas com o objetivo de justiça social. Tais empresas não têm como objetivo fundamental o lucro, nem têm como sina acumular prejuízos. Seu objetivo fundamental é garantir o atendimento à população em serviços essenciais. O fato de que muitas vezes acumularam prejuízos, além das malversações que acompanharam algumas de suas gestões, decorria das condições de desigualdade do país. A pobreza criava um obstáculo sério ao modelo de negócio de muitas estatais. Milhões de brasileiros excluídos do mercado interno de massas por um modelo de desenvolvimento excludente não tinham como contratar serviços em níveis que garantissem a rentabilidade de certas empresas estatais.
Por isso, na atual situação do país, de expansão acelerada do mercado interno de massas, de ascensão de um contingente expressivo de pessoas à classe média e da tendência de crescimento da economia, do emprego e da renda dos brasileiros, o discurso contra as estatais está obsoleto. É como o relógio quebrado que homenageia a nostalgia e a ostentação, mas é incapaz de fornecer uma informação correta.
As estatais, diante do novo quadro econômico, já podem se dar ao luxo de serem extremamente lucrativas. Mas estão longe de constituir uma ameaça ao setor privado. Elas podem atuar em atividades nas quais empresas privadas têm demonstrado dificuldades crônicas em dar conta do recado ou, como no caso da Petrobrás, podem funcionar como grandes alavancas do crescimento econômico, responsáveis por irrigar inúmeras cadeias produtivas que sequer existiam, ou que tinham sido desativadas.
Passados dez anos desde que perdemos Aloysio Biondi, tem-se a exata dimensão da importância daquilo que ele nos mostrou e de sua contribuição para reverter a cegueira que tomava conta do País.
Me arrisco a dizer que, se vivo estivesse, o autor daquele texto célebre e indignado estaria tomado por um sorriso satisfeito com a volta dos elefantes. Até porque, “três elefantes incomodam, incomodam…. incomodam muito mais”.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.
Quando se informou que a Telebrás seria reativada, houve uma grita de algumas empresas de telefonia e um ataque feroz da mídia tradicional. Ressuscitar a estatal foi tratado como verdadeira heresia. Na crítica mais amena, um disparate.
A volta da Telebrás não apenas provocou a ira do liberalismo como representou uma derrota amarga, pois incidiu no setor que até hoje é apresentado como modelo do processo de privatização e das benesses dele decorrentes. O tratamento dado ao tema mais uma vez foi acometido de uma patologia crônica, apontada por diversos estudiosos da mídia: a falta de contextualização ou mesmo a descontextualização de um assunto.
Uma falta de contextualização primária esteve na ausência de um diagnóstico sobre o setor, que sabidamente oferece serviços caros e de péssima qualidade. Suas empresas são campeãs de reclamações de usuários e de ações junto aos órgãos de defesa do consumidor.
Outra falta de contextualização, ainda mais importante, está em que poucos se deram ao trabalho de trazer à tona a história da Telebrás e de seu processo de privatização. Lacuna curiosa, pois, afinal, a quem interessaria relembrar tal passado? Resposta: interessaria à maioria das pessoas, aos que têm e aos que não têm acesso aos serviços de telecomunicação.
Até hoje, a melhor forma de contar essa história e travar a batalha da memória contra o esquecimento é revisitar o livro de Aloysio Biondi, “O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado”. O livro teve sua primeira edição em 1999. Sua 11ª edição se encontra disponível, gentil e gratuitamente, no site da Editora Fundação Perseu Abramo: http://www2.fpa.org.br/uploads/Bras...
Biondi, como se sabe, foi um monstro sagrado do jornalismo brasileiro, grande mestre do jornalismo econômico. Faleceu há 10 anos (em julho de 2000).
“O Brasil privatizado” abria seu capítulo “As estatais: sacos sem fundo?” justamente falando da Telebrás. Biondi relembrava que, entre 1996 e 1997, a empresa teve um salto de 250% em seu lucro, desmentindo categoricamente a mensagem fabricada de que as estatais só davam prejuízo. No livro que tornou-se um clássico para a compreensão sobre o que fizeram com o Brasil nos anos 90, Biondi contextualizava que tanto os prejuízos quanto os lucros das estatais tinham sido fabricados para atender a interesses muito bem identificados.
Dizia ele: “Os prejuízos que o achatamento de tarifas e preços trouxe para as estatais teve efeitos que o consumidor conhece bem: nesses períodos, elas ficaram sem dinheiro para investir e ampliar serviços. Explicam-se, assim, as filas de espera para os telefones, ou as constantes ameaças de “apagões” no sistema de eletricidade. Ou, dito de outra forma: não é verdade que os serviços das estatais tenham se deteriorado por “incompetência”. Como também é mentira que “o Estado perdeu sua capacidade de investir”, como diz a campanha dos privatizantes. O que houve foi uma política econômica absurda, que sacrificou as estatais.” (pág. 30).
Lembrava ainda de uma decisão incrível: em 1989, um decreto do presidente da República proibia o BNDE (hoje BNDES) de realizar empréstimos a empresas estatais.
Biondi era um “antifukuyama”. Só para lembrar, Fukuyama foi um dos garotos propaganda do neoliberalismo, muito badalado durante o Governo Reagan, autor de uma tese espalhafatosa sobre o “fim da história” e da vitória do capitalismo sobre tudo e sobre todos. Hoje, se alguém fizer um Google sobre os “francis” existentes na face da Terra, Fukuyama sequer aparece nas sugestões do motor de busca. Fica atrás de Francis Bacon, Francis Ford Copola, Francisco Cuoco e Francisco Alves. Indício de que quem corre o risco de desaparecer é o próprio Fukuyama.
Enfim, Biondi desmentia a tese do fim da história, mostrando que a moda era tentar “cancelar” a história. Contextualizava a esdrúxula decisão que proibia o BNDES de financiar empresas estatais lembrando ter sido ele criado “exatamente com o objetivo de fornecer recursos para a execução de projetos de infra-estrutura, que exigem desembolso de bilhões e bilhões – e precisam de alguns anos para sua execução” (pág. 30).
A memória do texto de Biondi é mais uma vez útil a um momento em que o BNDES também se tornou alvo de ataques violentos e virulentos à gestão de Luciano Coutinho, veja só, por fazer exatamente aquilo para o qual o banco existe: levantar investimentos e fazer financiamentos.
Biondi também usou o exemplo da Telebrás para relembrar uma diferença básica do setor público em relação ao privado: além de prestar serviços, as estatais deveriam ser utilizadas com o objetivo de justiça social. Tais empresas não têm como objetivo fundamental o lucro, nem têm como sina acumular prejuízos. Seu objetivo fundamental é garantir o atendimento à população em serviços essenciais. O fato de que muitas vezes acumularam prejuízos, além das malversações que acompanharam algumas de suas gestões, decorria das condições de desigualdade do país. A pobreza criava um obstáculo sério ao modelo de negócio de muitas estatais. Milhões de brasileiros excluídos do mercado interno de massas por um modelo de desenvolvimento excludente não tinham como contratar serviços em níveis que garantissem a rentabilidade de certas empresas estatais.
Por isso, na atual situação do país, de expansão acelerada do mercado interno de massas, de ascensão de um contingente expressivo de pessoas à classe média e da tendência de crescimento da economia, do emprego e da renda dos brasileiros, o discurso contra as estatais está obsoleto. É como o relógio quebrado que homenageia a nostalgia e a ostentação, mas é incapaz de fornecer uma informação correta.
As estatais, diante do novo quadro econômico, já podem se dar ao luxo de serem extremamente lucrativas. Mas estão longe de constituir uma ameaça ao setor privado. Elas podem atuar em atividades nas quais empresas privadas têm demonstrado dificuldades crônicas em dar conta do recado ou, como no caso da Petrobrás, podem funcionar como grandes alavancas do crescimento econômico, responsáveis por irrigar inúmeras cadeias produtivas que sequer existiam, ou que tinham sido desativadas.
Passados dez anos desde que perdemos Aloysio Biondi, tem-se a exata dimensão da importância daquilo que ele nos mostrou e de sua contribuição para reverter a cegueira que tomava conta do País.
Me arrisco a dizer que, se vivo estivesse, o autor daquele texto célebre e indignado estaria tomado por um sorriso satisfeito com a volta dos elefantes. Até porque, “três elefantes incomodam, incomodam…. incomodam muito mais”.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.
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