Jacques Tavora Alfonsin (*)
No dia 21 deste mês de agosto completou-se um ano do assassinato
praticado contra o agricultor Elton Brum da Silva, como conseqüência de
uma ordem judicial determinada em ação movida contra agricultores
sem-terra, como ele, no município de São Gabriel. A agilidade que o
Poder Judiciário mostrou para defender o direito de propriedade, no
processo que assassinou Elton, é geometricamente desproporcional aos
males que esse direito causa, mesmo quando descumpre a sua função
social.
Para se ter uma idéia desse fato, é suficiente uma busca de internet no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, comarca de São Gabriel, para se constatar que nem data de audiência para coleta de possíveis provas foi designada, no processo 20900023900, que apura a responsabilidade criminal do policial militar que matou o Elton.
Para se ter uma idéia desse fato, é suficiente uma busca de internet no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, comarca de São Gabriel, para se constatar que nem data de audiência para coleta de possíveis provas foi designada, no processo 20900023900, que apura a responsabilidade criminal do policial militar que matou o Elton.
Enquanto a ordem letal teve execução imediata, o processo crime segue
a passo de gente que caminha a pé e cansada de promessas legais
traídas, bem como ele caminhava… Elton engrossa a lista macabra de
gaúchos mortos em defesa de sua dignidade e cidadania, direito de acesso
à terra, reforma agrária, ora pelos efeitos das ordens judiciais, ora
pela repressão violenta dos seus protestos coletivos. Ah, não vai faltar
quem diga: “Tudo certo, mas onde se lembra aí o soldado da BM, Valdeci
de Abreu Lopes, que morreu na esquina democrática de Porto Alegre, num
outro agosto, esse de 1990, durante um protesto dos sem-terra”? – Com a
dor que se lamenta a morte do Elton e de tantos outros que não vivem
mais, tem de se chorar a desse brigadiano, mas sem se esquecer, sob pena
de cumplicidade com a versão tendenciosa que a mídia produziu na época,
duas diferenças notáveis, pelo menos.
A primeira, a de que o assassino do Elton, além de somente ter sido
identificado pela sua corporação mais de mês depois do assassinato, está
gozando de plena liberdade, não havendo chance de se saber nem quando
será julgado, enquanto os sem-terra denunciados criminalmente pela morte
de Valdeci foram presos em seguida e aguardaram, nessa condição de
confinamento, mais de ano antes do júri que os condenou. a segunda, de
que o tiro que matou o Elton foi dado pelas costas, sem possibilidade
alguma de defesa da vítima, enquanto o instrumento que matou o
brigadiano deu-se em reação imediata ao tiro que ferira no abdome uma
agricultora sem-terra que participava do protesto.
A “explicação” que se dá para tudo isso, já que justificativa não
existe, é da mais variada espécie e artifício, como costuma acontecer
com aquelas doutrinas jurídicas rubricistas que sustentam formulismos
enredados na tramitação dos processos judiciais. Há prazos diversos para
acusações, há prazos para defesas, para recursos, para sentenças. Só
não há prazo para se perseguir, prender e, se as circunstâncias exigirem
(?), matar gente pobre, lutando por seus direitos. Elton não é a
primeira e, pelo rumo que a história vem demonstrando, não será a última
vítima dessas injustiças perpetradas “em nome da lei e do direito”. São
tantos os conflitos gerados pela concentração da propriedade privada
sobre terra, em nosso Estado e no país, o inexplicável atraso na
execução da reforma agrária, provado pelo número das ações judiciais de
desapropriação de terra paradas nos tribunais, que isso provocou até
mudança em um dos dispositivos do Código de Processo civil.
Foi no intuito de não deixar juízas e juízes quase sozinhas/os, para
decidir sobre matéria que sempre envolve multidão, interesse social,
conflito grave entre direitos, risco de acontecer coisas como a que
eliminou a vida do Elton, que o art. 82 daquele Código, em seu inc. III,
passou a exigir que o Ministério Público sempre fosse ouvido nos casos
que “envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais
causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou
qualidade da parte.” Era de se esperar que essa mudança na lei
processual determinaria mais cuidado, uma cautela maior no deferimento
de liminares, especialmente daquelas que são executadas sem chance de
defesa dos réus, como ocorre quase sempre quando esses são sem-terra ou
sem-teto. Aqui no Estado, não é o que tem acontecido, na maior parte das
vezes. Dependendo do agente ministerial que atua nesses casos, o
“público” da sua denominação, bem ao contrário, tem reforçado o que há
de pior no “privado” das demandas que chegam em juízo.
Com um agravante, como ocorreu durante o ano passado. Agora, os
latifundiários gaúchos nem precisam se mexer. É o próprio Ministério
Público que sai em sua defesa, como aconteceu em Canoas, Carazinho,
Pedro Osorio e São Gabriel. Em algumas execuções das ações judiciais que
dois dos seus representantes propuseram nessas comarcas, foi tal a
violência empregada contra acampadas/os, que só não morreu nenhum/a
sem-terra, por sorte. Como essas ordens judiciais não têm o poder de
ressuscitar, a ínfima chance que se abre de, pelo menos, alguém poder
mitigar o mal feito é a de, mais tarde, um/a outro/a juiz/a, com um
pouco mais de sensibilidade humana e social, “indenizar” (?) as/os
herdeiras/os da vítima, que dela dependiam para viver.
É o que está acontecendo agora com a família do Elton. Em julho
passado, atendendo pedido da advogada Cláudia M. Avila, que atua em
defesa dessa família, numa ação judicial proposta contra o Estado do Rio
Grande do Sul, pleiteando reparação de danos morais e materiais que a
morte causou, o juiz Gilberto Schafer, do 2º Juizado da 3ª Vara da
Fazenda Pública de Porto Alegre, já deferiu uma liminar em favor da
mesma família, em tudo diferente daquela que causou a morte do Elton. Em
seu despacho já se antecipa o direito dos/as familiares receberem do
Estado 70% do salário mínimo nacional, sob a seguinte justificativa: “O
Estado do Rio Grande do Sul tem responsabilidade de ordem objetiva pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros [...],
devendo assim responder pelos atos omissivos e comissivos, dolosos ou
culposos, que resultem em prejuízo a outrem, sendo plenamente aplicada a
teoria do risco administrativo”.
A viúva, a filha pequena e o pai de Elton, evidentemente, não
estariam sofrendo agora dessa necessidade, se a decisão judicial
anterior não tivesse provocado a sua morte. Pouco lhes consola o fato de
que o seu sangue foi derramado em defesa da vida de milhões de outros
brasileiros que, como ele, são vítimas de uma injustiça social que, ao
lado de produzir riqueza para alguns, gera pobreza e miséria para a
maioria de quantas/os precisam do acesso a terra legalmente previsto em
seu favor.
Por isso mesmo, todos os movimentos sociais que atuam em favor de
trabalhadoras/es pobres, como o MST, por exemplo, não deixam morrer a
esperança. A de que esse tipo de tratamento que elas/es sofrem há de ser
vencido, por ser desumano, cruel, ilegal, profundamente injusto. Um
dia, justamente por força de sua luta político-jurídica, esse tratamento
não continuará se refletindo em cada processo judicial apenas para
registrar mais um número e mais um nome.
Já enfrentaram no passado, e continuarão enfrentando a violência que
assassinou o seu companheiro Elton, como a própria causa da infidelidade
que grande parte da sociedade civil e do Poder Publico dedicam à
interpretação e à aplicação da lei como se ela não existisse,
exatamente, para proteger e defender os direitos humanos fundamentais de
quantas/os, embora desses sejam os verdadeiros titulares, por ora não
passem de vítimas da sua violação. Pelo menos esse poder de ressuscitar,
que as sentenças não têm, o povo pobre sem-terra e sem-teto tem provado
ter.
(*) Procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado
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