Os cidadãos querem respostas e não as estão a
obter, excepto de vozes que contam histórias com alguma coerência
interna para quem entre no mundo deles, de irracionalidade e mentira.
Por Noam Chomsky
Manifestação do Tea Party. Foto de Fibonnaci Blue, FlickR
As eleições intercalares nos EUA registaram um nível de raiva, medo e
desilusão no país como não me lembro em toda a minha vida. Desde que
estão no poder, os democratas carregam o peso da revolta contra a nossa
actual situação socioeconómica e política.
Numa sondagem da Rasmussen, no mês passado, mais de metade dos americanos da corrente dominante disseram que encaram positivamente o movimento Tea Party, um reflexo do espírito de desencanto.
Os ressentimentos são legítimos. Há mais de 30 anos que os rendimentos
reais da maioria da população estagnaram ou baixaram, enquanto que as
horas de trabalho e a insegurança aumentaram, juntamente com a dívida.
Foi acumulada riqueza, mas em muito poucos bolsos, conduzindo a uma
desigualdade sem precedentes.
Estas consequências surgiram principalmente da financeirização da
economia a partir dos anos 1970 e do correspondente esvaziamento da
produção nacional. A impulsionar o processo está a obsessão pela
desregulamentação apadrinhada por Wall Street e apoiada por economistas fascinados pelos mitos do mercado eficiente.
As pessoas assistem ao regozijo dos banqueiros, que foram em grande
parte responsáveis pela crise financeira e que foram salvos da
bancarrota pela comunidade, com os lucros recorde e os enormes bónus.
Entretanto, o desemprego oficial permanece em cerca de 10 por cento. A
indústria transformadora está nos níveis da Depressão: um em cada seis
estão desempregados, os bons empregos têm poucas hipóteses de voltarem.
Os cidadãos querem justamente respostas e não as estão a obter, excepto
de vozes que contam histórias com alguma coerência interna para quem
suspenda o cepticismo e entre no mundo deles, de irracionalidade e
mentira.
Contudo, ridicularizar o Tea Party é um erro grave. É muito mais
útil perceber o que está por trás da atracção popular pelo movimento e
perguntarmo-nos por que é que são precisamente as pessoas enraivecidas
que estão a ser mobilizadas pela extrema-direita e não pelo tipo de
activismo construtivo que cresceu durante a Depressão, como o CIO
(Congresso das Organizações Industriais).
Agora, os simpatizantes do Tea Party estão a ouvir dizer que
todas as instituições, o governo, as empresas e os sectores
profissionais, estão podres e que nada funciona.
No meio do desemprego e das execuções de hipotecas, os democratas não
se podem queixar das políticas que conduziram ao desastre. O presidente
Ronald Reagan e os seus sucessores republicanos podem ter sido os
maiores responsáveis, mas essas políticas começaram com o presidente
Jimmy Carter e prosperaram sob a presidência de Bill Clinton. Durante a
eleição presidencial, a base de apoio eleitoral de Barack Obama eram as
instituições financeiras, que adquiriram notável supremacia sobre a
economia na geração anterior.
O incorrigível radical do século XVIII Adam Smith, falando da
Inglaterra, observou que os principais arquitectos do poder eram os
donos da sociedade; na sua época, os comerciantes e os fabricantes, que
se certificaram de que a política do governo atenderia escrupulosamente
aos seus interesses, por mais "doloroso" que fosse o impacto sobre o
povo de Inglaterra, e pior, sobre as vítimas da "injustiça selvagem dos
europeus" no exterior.
Uma versão moderna e mais sofisticada da máxima de Smith é a "teoria do
investimento na política" do economista político Thomas Ferguson, que
encara as eleições como ocasiões em que grupos de investidores se juntam
para controlar o estado, seleccionando os arquitectos das políticas que
irão servir os seus interesses.
A teoria de Ferguson acaba por ser um indicador muito eficaz da
política durante longos períodos. Dificilmente isto surpreende. As
concentrações de poder económico procurarão naturalmente alargar a sua
influência a todo o processo político. Acontece que a dinâmica é extrema
nos EUA.
Pode ainda dizer-se que os grandes especuladores das empresas têm uma
defesa válida contra as acusações de "ganância" e desrespeito pelo
bem-estar da sociedade. A sua missão é maximizar o lucro e a quota de
mercado; na verdade, é a sua obrigação legítima. Se não cumprirem essa
função, serão substituídos por alguém que o faça. Eles ignoram também o
risco sistémico: a probabilidade das suas operações prejudicarem a
economia em geral. Essas "externalidades" não os preocupam, não por
serem más pessoas, mas por razões institucionais.
Quando a bolha estoura, os que arriscaram podem fugir para o abrigo do
Estado protector. Os resgates financeiros, uma espécie de apólice de
seguro governamental, estão entre os muitos incentivos perversos que
aumentam as ineficiências do mercado.
"Há um reconhecimento crescente de que o nosso sistema financeiro está a
aproximar-se do dia do Juízo Final", escreveram os economistas Peter
Boone e Simon Johnson, no Financial Times, em Janeiro. "Sempre
que ele falha, contamos com o dinheiro e as políticas fiscais
negligentes para o resgatar. Esta resposta aconselha o sector
financeiro: aposta em grande para seres pago regiamente, não te
preocupes com os custos, que serão pagos pelos contribuintes" através de
resgates e outros mecanismos, e o sistema financeiro "é, assim,
ressuscitado para voltar a jogar e voltar a falhar".
A metáfora do Juízo Final também se aplica fora do mundo financeiro. O
Instituto Americano do Petróleo, apoiado pela Câmara de Comércio e
outros lobbies empresariais, tem intensificado os seus esforços
para persuadir o público a descartar as preocupações sobre o aquecimento
global antropogénico, com considerável sucesso, como as sondagens
indicam. Entre os candidatos republicanos ao Congresso nas eleições de
2010, praticamente todos rejeitam o aquecimento global.
Os executivos por trás da propaganda sabem que o aquecimento global é
real e que as nossas perspectivas são sombrias. Mas o destino da espécie
é uma externalidade que os executivos têm de ignorar, na medida em que
prevalecem os sistemas de mercado. E o público não conseguirá caminhar
para a salvação, quando se desenrola o pior cenário.
Tenho idade suficiente para me lembrar daqueles dias deprimentes e
ameaçadores do declínio da Alemanha, da decência para a barbárie nazi,
para usar as palavras de Fritz Stern, o ilustre estudioso da história
alemã. Num artigo de 2005, Stern refere que tinha o futuro dos Estados
Unidos em mente quando reviu "um processo histórico em que o
ressentimento contra um mundo secular desencantado encontra alívio no
escape extático da irracionalidade."
O mundo é demasiado complexo para que a história se repita, mas há,
todavia, lições a reter à medida que notamos as consequências de mais um
ciclo eleitoral. Não faltam tarefas aos que tentam apresentar uma
alternativa à raiva e indignação mal orientadas, ajudando a organizar os
inúmeros descontentamentos e a mostrar o caminho para um futuro melhor.
Tradução de Paula Coelho para o Esquerda.net
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