Escrito por Mário Maestri no Correio da Cidadania | |
Dentro do respeito às crenças individuais dos homens e das mulheres de
bem, a militância ateísta é dever social inarredável para todos os que
se mobilizam pela redenção da humanidade da alienação social, material e
espiritual que a submerge crescentemente neste início de milênio,
ameaçando a sua própria existência. Por mais subjetiva, introspectiva e
sublimada que se apresente, a crença religiosa jamais nasce, se realiza e
se esgota no indivíduo. Ela é fenômeno parido no mundo social, que
influencia essencialmente a ação individual e coletiva.
Em forma mais ou menos radical, mais ou menos plena, mais ou menos
consciente, a crença religiosa dissocia-se da objetividade material e
social. Ela desqualifica o doloroso esforço histórico que permitiu ao
ser humano superar sua origem animal e, percebendo a si e à natureza,
começar a conhecer as leis imanentes ao mundo, na difícil, necessária e
inconclusa luta pela harmonização da existência social.
A crença religiosa nega as crescentes conquistas da racionalidade, da
objetividade, da materialidade, da historicidade, encobrindo-as com as
espessas sombras da irracionalidade, da subjetividade, do
espiritualismo. Desequilibra a difícil luta do ser humano para erguer-se
sobre as pernas e moldar o mundo com as mãos, forçando-o a ajoelhar-se
novamente, apequenado, temeroso, embasbacado diante do "desconhecido",
sob o peso de alienação socialmente alimentada.
A crença religiosa droga o ser social com suas ilusões infantis de
redenção conquistada através da obediência incondicional a estranho
super-pai, que em muitas das mais importantes tradições espiritualistas,
apesar de onisciente, onipotente e onipresente, e, assim, capaz de tudo
dar aos filhos, lançou-os – no singular e no plural – em desnecessárias
desassistência, miséria e tristeza.
É porque é!
A essência anti-científica da religião, que não argumenta, pois se nutre
da crença incondicional no arbitrário, materializa-se na oposição
visceral, mais ou menos realizada, ao maior tesouro humano, a capacidade
de diálogo e de compreensão tendencial do universo. Que o digam Galileu
e Giordano Bruno! Daí sua histórica intolerância, desconfiança e
ojeriza para com o pensamento científico. E, verdadeiro tiro no pé, seu
constante e paradoxal esforço para afirmar que a ciência seja uma crença
a mais.
O pensamento religioso nega e aborta o ativismo e o otimismo
racionalistas e materialistas, nascidos da possibilidade de compreensão,
domínio e transformação do mundo social e material. Impõe visão
pessimista, quietista, introspectiva e infantil do universo,
essencialmente petrificado e eternizado pela materialização de
transcendência, à qual o homem deve apenas submeter-se e render-se, para
merecer a liberação.
Para tais visões, o ativismo e otimismo social são incongruências, ao
não haver imperfeição social superável, já que esta última nasce da
própria natureza humana, habitada pelo mal e pelo pecado, devido ao
desrespeito a interdições primordiais do pai eterno – olha aí ele de
novo –, origem do pecado. Pecado que exige incessante expiação e
penitência, lançando o ser religioso em triste e mórbido mundo de culpa,
de submissão, de punição.
Ativismo e otimismo sociais impensáveis para uma forma de compreender a
sociedade em que não há história. Ou o que compreendemos como história
se mostra ininteligível, pois regida essencialmente por determinações
transcendentais paridas e concluídas à margem das práticas humanas.
Realidade à qual, segundo tal visão, podemos ascender, muito
limitadamente, apenas através da revelação.
Quando deus mata o homem
Na sua petrificação a-social e a-histórica, a religião cria um mundo
chato, triste, deprimente, infantil, mórbido. Um universo que valoriza a
paciência, a submissão, o imobilismo, o quietismo, a humildade, a
transcendência, a espiritualidade etc., valores e comportamentos
historicamente explorados pelos opressores, no esforço de manter o mundo
imóvel, através de alienação e submissão dos oprimidos, nesta vida, é
claro, pois na outra se sentarão à direita de deus-pai.
O ateísmo militante é necessário ao retrocesso da alienação, enormemente
crescente em tempos de vitória da contra-revolução neoliberal. Ele
impõe-se na luta por um mundo mais rico, mais pleno, mais livre, mais
fraterno, em que o homem seja o amigo, não o lobo do homem. É
imprescindível ao esforço de superação da miséria, da tristeza e da dor,
materiais e espirituais, nos limites férreos da natureza humana
historicamente determinada.
O ateísmo militante é democrático, pois tem como essencial meio de
pregação a conscientização, individual e coletiva, da necessidade de
assentar as práticas sociais nos valores da humanidade, da
racionalidade, da liberdade, da solidariedade, da igualdade. Pregação
racionalista e materialista que compreende que a superação da alienação
espiritual será materializada plenamente apenas através da superação da
alienação social e material.
O que exige intransigente luta política, cultural e ideológica pela
defesa dos maltratados valores do laicismo, única base possível para
convivência social mínima por sobre crenças religiosas, étnicas,
ideológicas etc. singulares. Laicismo agredido pela despudorada
exploração mercantil, política e social, direta ou indireta, por parte
das religiões novas e antigas, da crescente fragilidade popular
contemporânea. O monopólio público da educação e da grande mídia
televisiva e radiofônica, sob controle democrático, e a ilegalização do
escorcho religioso popular direto são pontos programáticos dessa
mobilização.
O Céu e o Inferno
O ateísmo militante é pregação de adultos, conscientes do limite e dos
perigos de empreitada subversiva, dessacralizante e mobilizadora, pois
voltada para a necessidade do homem de retomar as rédeas de sua vida
material e espiritual, no aqui e no agora. É jornada sem esperanças de
premiações e de graças na outra vida, e sobretudo nessa, ao contrário do
habitual nas religiões oferecidas como vias expressas para o sucesso
individual, no rentável balcão da exploração da alienação.
O racionalismo militante é caminho difícil que premia os que nele
perseveram com a experiência, mesmo fugidia, com o que há de melhor nos
seres humanos, a racionalidade, a solidariedade, a fraternidade.
Sentimentos e práticas vividos em forma direta, sem tabelas, pois a
única ponte que liga os homens são as lançadas pelos próprios homens,
entre homens construídos pela história à imagem e semelhança dos homens.
A vida racional é aventura recompensada, sobretudo, pelo inebriante
desvelamento do encoberto pela ignorância e irracionalidade e pelo
equilíbrio obtido na procura da harmonia social, por mais difícil e
limitada que seja. Trata-se de caminho que permite, sem sonhar nem crer,
seguir decifrando, alegre e desvairadamente, esse mundo crescentemente
encantado e terrível. Viagem por esta vida terrena, valiosa, breve e
única, sempre apoiada na lembrança de que, diante das penas e tristezas,
não se há de rir ou chorar, mas sobretudo entender, para poder
transformar.
Uma experiência de vida que, mesmo bordejando não raro o inferno, ou
sendo elevada fugidamente aos reinos dos céus, sabe-se que tudo se passa
e se conclui nesse mundo, concreto, terrivelmente triste e belo, sobre o
qual somos plena, total, sem desculpas e irremediavelmente
responsáveis.
Mário Maestri é rio-grandense, historiador, ateu, marxista, comunista sem partido. E-mail:
maestri@via-rs.net
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
O Ateísmo como militância social
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