quinta-feira, 4 de novembro de 2010

“Querem transformar o controle técnico da internet em controle político e cultural”


por Juliana Sada  no blog ESCREVINHADOR

Publicamos hoje a continuação da entrevista com o sociólogo Sergio Amadeu. Nesta segunda parte um dos maiores especialistas em internet no Brasil aponta quais são as grandes ameaças à privacidade e liberdade na rede.
A primeira parte da entrevista sobre o Plano Nacional de Banda Larga intitulada “Jogo complexo: a grande mídia não está sozinha” pode ser lida aqui

Quais são os obstáculos que estão postos e quais iniciativas de cerceamento da liberdade na internet?

Existem governos, como o da China, e grupos de pessoas ou políticos conservadores que querem transformar os protocolos, o controle que é dado tecnicamente na internet em controle político e cultural.
É difícil a gente falar isso: a rede amplia a liberdade de expressão, amplia a capacidade de interação entre as pessoas, ela é uma rede que permite a liberdade nesse sentido. Mas ela é uma rede também de controle. Ela é uma rede cibernética: de comunicação e controle.
Atualmente você pega um grupo como o Google que conseguiu atrair a atenção e interesse das pessoas, que passaram a entregar as suas informações voluntariamente, porque era legal usar o Gmail,o Youtube, o Orkut, as aplicações, o mecanismo de busca…É uma empresa que não obrigou ninguém a passar tanta informação para eles mas eles são um repositório de informações jamais alcançado  por alguém história da humanidade.
Nunca tivemos uma situação onde pudéssemos falar tanto e nunca fomos tão controlados. É uma aparente contradição mas não é. A própria rede para ser dispersa, tem que ser extremamente controlada. Mas na hora que eu transformo esse controle tecnológico, que é tipico da cibernética, em controle  cultural e começo a dizer que deve passar por determinados lugares, que tem que definir o comportamento político cultural das pessoas. Daí eu tenho algo extremamente grave. Então nós estamos com um grande problema hoje. E uma das grandes expressões desse problema de transformação do controle tecnológico em controle político se dá em torno da neutralidade da rede.
Você pode explicar o conceito de neutralidade da rede?
A internet ela pode ser entendida como uma rede lógica, uma rede de informações. Para usarmos a internet, utilizamos a infraestrutura de telecomunicações, ou seja, os controles do que a gente chama de camada física da rede. Essas operadoras de telecom querem controlar o fluxo de informações que passa por seus cabos.
A internet até hoje não funcionou assim porque uma camada era neutra em relação às outras. Daí o termo neutralidade da rede. Ou seja, até hoje não era permitida a discriminação dos pacotes, seja por origem, destino, conteúdo…
Agora essas operadoras dizem “não, nós estamos com um problema: as pessoas tão baixando vídeo e compete com um tráfego importante de dados. Os vídeos tem que pagar para andar na minha rede”. É como se fossem pedágios virtuais nesse sentido. E elas querem assim: se o blog do Sergio Amadeu não tiver acordo com uma operadora americana, não vão abrir o blog com a mesma velocidade do MSN, que tem um acordo.
Então nos vamos implantar estradas pedagiadas, vamos implantar as regras de mercado dentro do ciberespaço. O ciberespaço sempre permitiu ação do mercado mas ele não é o mercado, ele é o espaço comum, onde todos eram tratados de maneira equânime. E as operadoras com essa tentativa de restrição, estão interferindo diretamente no meu interesse, na minha liberdade de me comunicar.
Isso coloca em risco a criatividade da rede. Se eu criar uma nova aplicação, o que vai acontecer? Uma operadora pode dizer “não sei o que é isso, não vou deixar passar”. O Twitter poderia não existir, o Youtube…Pois todo mundo que quiser criar algo vai ter que ser sócio deles, senão não vai poder caminhar nas redes. Isso é uma aberração.
Defender a neutralidade na rede, é defender a liberdade de expressão, de criação, de invenção. E é uma das coisas mais importantes no mundo da internet hoje.
Que iniciativas existem nesse sentido?
Nos EUA, a Justiça deu ganho de causa à empresa Conquest que alegava poder privilegiar determinados pacotes de informação em detrimento a outros em sua rede. E a FCC, a Anatel deles,  está contra essa decisão e tem ações legais no parlamento americano para aprovar projetos que garantam a neutralidade na rede, contra a descriminação dos pacotes.
No Brasil colocamos no Marco Civil da Internet que um dos princípios da internet no Brasil é a neutralidade na rede. Isso colocaria, ao menos no nosso território, uma situação difícil para operadoras que começassem a interferir nos pacotes.  É um movimento no qual a gente tenta aprovar leis em todos os países importantes do mundo pra garantir a neutralidade da rede.
Porque isso não depende de cada país já que o acesso não tem fronteiras, certo?
Essa questão é bem interessante. O que a gente quer fazer em cada país é garantir que a internet continue livre e não fazer uma lei para dizer “meu país é diferente”. Então é um espírito de uma parte da opinião pública mundial que luta por isso. Olha que interessante: a internet é transnacional mas se os EUA aplicarem o processo de quebrar a neutralidade, eles vão impor essa lógica no mundo inteiro pois é la que estão os maiores provedores de conteúdo e as principais redes sociais.
Então, na verdade, temos que lutar com leis contra o poder de oligopólio desse controladores das redes físicas. A rede física é que controla os cabos, satélites, cabos submarinos…Esses caras são oligopólios no mundo, é mais fácil a gente convencer o governo americano a fazer algo do que a convencermos uma operadora dessa. Porque eu não posso eleger-los, eu não posso controlar-los. Eles não se guiam por preceitos democráticos, é a ditadura do capital. Então é muito grave,  daí estranhamente para defender a liberdade transnacional, a gente recorre às leis nacionais.  Dizendo “neste pedaço da terra, o fluxo é livre, naquele também, naquele também” e se esses países forem os mais importantes, a gente venceu a batalha.
E qual o interesse das operadoras em fazer isso? Tem a ver com o interesse da indústria fonográfica em barrar o download de músicas, por exemplo?
O interesse maior é eles ganharem mais dinheiro, é cobrar. E aí tem a indústria do copyright, que pensa “bom, se eles puderem controlar a rede, eu faço um acordo com eles pra não passar protocolo bitorrent pela rede deles e aí eu acabo com a pirataria”. É ilusão dos caras isso. Mas o principal interesse das operadores é aumentar seu controle, eles pegam o controle técnico que tem – os computadores sabem que pacotes estão passando – e aí eles ganham mais dinheiro.
E para ganhar mais dinheiro eles destroem a liberdade de expressão, de criação. Eles passam a ter um controle grande porque se eu inventar a Web 3D, vou ter fazer um acordo com ele porque senão eles podem barrar meu conteúdo. Vamos ter cercas digitais e eles só abrem a porteira mediante pagamento ou acordo. Isso é um controle gigantesco sobre a criatividade.
No mundo, as operadoras estão se concentrando – vão ser de 10 a 12 grandes operadoras, que tem mais poder que  Estados. E é um poder sobre a comunicação e então a gente tem que  superar essa nossa dependência desse tipo de companhia – não sei ainda qual seria a solução mas a situação atual é grave. Essas empresas são estratégicas do ponto de vista do direito a comunicação hoje e elas tem que ter o controle social.
Quem são as grandes empresas de telecom? Quem são esses grupos que controlam o mercado?
Tem algumas empresas grandes dos EUA, a AT&T, Conquest, Verizon…Alguns grupos europeus como a Telefônica, a Vodafone e algumas alemãs. Tem duas grande chinesas, muito grandes. Mas o que está acontecendo é que essas empresas estão se coligando, então o grande perigo é essa enorme concentração. É um setor estratégico, eles tem toda a infra-estrutura da rede. Por exemplo, como é que a China faz: eles não deixam que alguns IPs sejam lidos o fluxo de alta velocidade vem e ao entrar na China, tem um computador que filtra. É o chamado grande firewall chinês, a grande barreira.

É possível haver uma regulação a nível mundial? Alguma instância de decisão?

Não, acima dos Estados Nacionais tem acordos. Seria uma boa ideia a gente tentar fazer um acordo em defesa da liberdade na internet mas é muito difícil. No momento nós temos que ganhar a opinião pública em cada país. Porque aí as sociedades em cada local brigam. Na Espanha tem uma briga forte em defesa da neutralidade da rede. Na França infelizmente a gente perdeu para o Sarkozy, que criou lei absurdas. Mas a gente tem um movimento mundial.
Você pode explicar sobre a lei aprovada na França e que foi debatida no parlamento de vários países europeus?
A grande iniciativa hoje é chamada “three strikes”, são as três batidas. Eles identificam que você está baixando, por exemplo, um arquivo de música. Então ele violam a sua privacidade para ver que tipo de arquivo você está baixando. Se for um arquivo protegido pelo copyright, ou melhor dizendo cerceado pelo copyright, eles te mandam um aviso “você está violando a lei” – é a primeira batida. Se você continuar, eles te mandam um segundo aviso e na terceira vez eles cortam a sua conexão, em geral por um ano.
Qual o problema disso? Pense na minha casa que tem três pessoas usando a internet, só eu baixei a música. Na hora que me desconectam, são prejudicadas outras pessoas que não tem nada a ver com isso. Quer dizer, é uma lei inexequível. Tanto é que na França ela foi aprovada há mais de um ano mas não foi aplicada.
A grande questão em relação ao IP [Internet Protocol, número de identificação de um computador na rede] é a seguinte: para você navegar na internet você tem que ter um número de IP, então é muito fácil identificar o IP, a máquina e a região em que está. O grande problema é você individualizar o IP, ou seja, vincular um IP a uma identidade civil. Daí toda aquela navegação, tudo o que aquele IP fez pode ser rastreado por outros e não só autoridades. Basta que eu sabia que o IP x é do Sergio Amadeu. Eu acabo seguindo o rastro digital. Então é uma coisa bem complicada do ponto de vista da privacidade.

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