segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O narcotráfico e o aumento da violência social no México


201210_mexico O Diário - [Andrés Ávila Armella, dirigente comunista mexicano] 

O tema que serve de título foi amplamente referido em diferentes meios de counicação: diários, revistas, programas de rádio e televisão, além de tema de debate entre servidores do Estado; no entanto, é pouco o que até agora nós o que estamos organizados na esquerda pudemos opinar.
 Talvez porque não consideremos que seja este o problema principal dos explorados do país, talvez porque este é um problema do qual nos consideramos alheios, ou até, por o assunto estar permanentemente no discurso oficial.
Mas neste momento é inegável que existe no nosso país uma situação na qual o narcotráfico e o aumento da violência social a ele ligada alcançaram um nível tal que é difícil continuar a eludir a discussão; mais, é importante que utilizemos as nossas próprias ferramentas analíticas para o explicar, e no meu caso farei uso da melhor ferramenta analítica que tenho, o marxismo.
Por outro lado, há que aclarar que escrevo este escrito como se fosse um ensaio porque considero que a informação jornalística sobre os cárceres da droga, as suas rivalidades, operações e composição não é confiável. Na maioria dos casos trata-se de relatórios e filtrações de carácter policial, rumores e frases dos próprios envolvidos que resultam, ao fim de contas, como confusos, contraditórios e enganadores.
O meu propósito será sublinhar alguns aspectos estruturais e essenciais para a compreensão do problema, prescindindo por agora da análise concreta do tão falado negócio.

Narcotráfico, um negócio essencialmente capitalista

Teremos de assumir que se as drogas, a sua produção, distribuição e consumo, contam com algumas peculiaridades diferentes de muitas outras mercadorias, é muito importante assumir que na generalidade a droga é uma mercadoria como qualquer outra, e que as leis que regem a acumulação de capital como resultado da sua produção são, na generalidade, as mesmas que regem o resto da economia capitalista.
A mercadoria droga, seja ela qual for, tem um valor de uso porque há milhões de pessoas que consideram que lhes serve para alguma coisa, para satisfazer o que eles consideram uma necessidade, e tem valor de troca porque para a sua produção se requer trabalho humano; quando falamos do negócio do narcotráfico referimo-nos à produção, distribuição e consumo das drogas ilegais, que se realiza sob formas capitalistas, pelo que fica excluído desta análise qualquer tipo de produção caseira ou destinada a consumo próprio, o que vamos tratar é a droga como mercadoria.
Assim, teremos que identificar que os elementos necessários para a aparição deste fenómeno são por um lado os proprietários de meios de produção necessários para a produção desta mercadoria, e por outro, os proletários que trabalham para os ditos proprietários a troco de um salário.
Como sabemos, praticamente todas as drogas que hoje são um negócio tão rentável, só são possíveis de obter a partir de um processo de trabalho, não se encontram em forma pura na natureza, é necessário reunir uma certa quantidade de matérias-primas, instrumentos de trabalho e maquinaria (mais, ou menos, rudimentar), para a sua produção. São trabalhadores assalariados os que através de diversos procedimentos combinam algumas substâncias e as embalam acrescentando um novo valor às mesmas. Naturalmente, os ditos trabalhadores não recebem o pagamento correspondente ao valor do seu trabalho, mas somente um salário pela venda da sua força de trabalho, pois de outra forma não haveria mais-valia nem este negócio poderia proporcionar o montante de lucros que propícia. Além dos operários da droga, cada empresário capitalista da droga emprega outras pessoas que realizarão um qualquer trabalho destinado às suas mercadorias: empregados de limpeza, distribuidores, empregados de transporte e, os mais notórios, empregados armados cuja finalidade é proteger a mercadoria, o dinheiro e fazer o que o patrão lhes mande e considere necessário para executar, amedrontar ou defender-se de alguém para realização da sua mercadoria. Além disso, são necessários empregados de confiança, cujo principal trabalho é intelectual, destinados à administração, contabilidade, engenharia, etc..
Com nas restantes empresas capitalistas os salários não são iguais para todos os empregados, o seu preço é determinado por um lado pelo valor da força de trabalho, e por outro pelas condições sociais de contratação da mesma, por exemplo a oferta e a procura laborais de determinado tipo de trabalho.
Partamos então do pressuposto lógico que um capitalista da droga é em princípio proprietário de uma quantidade de dinheiro D, com que comprará meios de produção Mp e Força de Trabalho, ft, para obter mais-valia Pv, uma mercadoria com valor incrementado M' e, finalmente, dinheiro incrementado, D'. Nem mais nem menos que a fórmula geral da acumulação capitalistas:
D - M Pv - M' - D'
Ora bem, o que é que leva um homem a investir o seu dinheiro em meios de produção e força de trabalho destinados a produzir droga? O mesmo que leva um qualquer capitalista a investir no que quer que seja, a sede de acumulação e de riqueza, e a possibilidade concreta de as obter neste negócio, pois de outra forma não o faria. Por outro lado podemos perguntar, o que é que leva uma pessoa a vender a sua força de trabalho a um capitalista da droga? O mesmo que o obriga a vendê-la a um qualquer capitalista, a necessidade de obter os meios de vida indispensáveis. Visto de maneira conjunta podemos dizer que num espaço de tempo e espaço, coincide o proprietário dos meios de produção da droga um homem juridicamente livre cujas capacidades de trabalho podem ser postas à disposição daquele. Esta coincidência flui por todo o país dado o alto índice de desemprego e do chamado trabalho informal; acontece que uma grande quantidade de pessoas não encontra onde vender a sua força de trabalho ou só consegue vendê-la por pequenos períodos de tempo, ou melhor, as condições em que a vende são insuficientes para a satisfação das suas necessidades.
O que foi dito anteriormente não significa que as condições de trabalho nas narco-empresas sejam boas, antes pelo contrário, implicam muitos riscos, obviamente não existe a possibilidade de contratação colectiva e, por isso, os trabalhadores não gozam de qualquer direito laboral nem sindical, talvez em alguns casos o salário seja melhor, mas este é inevitavelmente instável. Esta situação diz-nos da lamentável situação em que se encontra o proletariado mexicano, pelo que pode pensar-se que ser trabalhador de uma narco-empresa é comparativamente melhor que no resto da economia.
Na óptica do capitalista da droga o assunto é mais ou menos igual, se se investe num negócio é porque é rentável para esses capitalistas, seja a droga o seu principal investimento ou um secundário, o facto é que encontra no tráfico de droga uma oportunidade para a acumulação de capital, à qual não está disposto a renunciar por qualquer critério moral relacionado com as consequências do consumo da sua mercadoria; ao fim de contas, os capitalistas das empresas legais também não se detêm por critérios morais, mesmo que o seu negócio sejam as armas, as drogas legais, contaminantes ou qualquer outro produto com algum efeito nocivo para as pessoas, o meio ambiente ou a sociedade.
Os trabalhadores das narco-empresas podem ter adquirido alguns conhecimentos e habilitações necessários para o seu trabalho nas mesmas, mas no limite eles são formados tal como o restante proletariado em diferentes graus de conhecimentos gerais e diferentes tipos de especialização; naturalmente que uma narco-empresa emprega pessoas com experiência de empresas farmacêuticas e laboratórios, engenheiros, agrónomos, químicos, contabilistas, advogados, transportadores, etc.. E, particularmente no caso dos sicários e guardas, emprega pessoas formadas no manuseamento de armas tanto na polícia como no exército; assim como outros vendem a sua capacidade de trabalhar ao patrão, estes últimos vendem a sua capacidade de matar e instrução, muitas vezes financiada por todos os mexicanos, dado que somos nós quem financia o seu treino e experiência nas instituições policiais e militares. De que outra forma poderia trabalhar alguém que apenas está capacitado para disparar uma arma se esta é a sua capacidade de trabalhomais rentável?
Outro elemento que é indispensável ressaltar é que não há motivos razoáveis para pensar que os empresários da droga não são além disso empresários legais, nem muito menos para pensar que não há empresários originalmente legais que não estão a investir capital no negócio da droga. Embora com muita frequência os meios de comunicação recorrem a descrições fabuladas de narcotraficantes, caracterizando-os sempre como muito diferentes dos empresários legais, o facto é que apesar de existirem neste negócio personagens pitorescas e peculiares tal não significa minimamente que seja essa a generalidade. Os media também falam da infiltração do narco nas empresas legais, mas nunca escrevem nada sobre a infiltração das empresas legais no narco. Em geral, os grandes capitalistas costumam ter um grande investimento principal num qualquer ramo industrial ou comercial, mas ao mesmo tempo mantêm investimentos noutros ramos, ou melhor, fazem associações de capitalistas entre capitais oriundos de diferentes sectores.
Isto acontece sobretudo porque ao gerarem-se lucros na sua forma de dinheiro, nem sempre podem ser reinvestidos como capital no mesmo negócio, sobretudo quando as condições de mercado o limitam, pelo se torna necessário para o capitalista procurar outros negócios onde investir o seu capital. Portanto, não será de estranhar que um empresário legal que obtém lucros num qualquer negócio e cujo mercado se encontra já no limite, trate de evitar o decréscimo da sua quota de lucro colocando capital num ramo mais dinâmico da economia e no qual obtém lucros importantes. Quem ainda pense que os capitalistas têm uma moral escrupulosa dirá que, apesar de tudo, não seriam capazes de investir no negócio da droga, mas para os que amparados no marxismo pensam que não é a moral mas a sede de lucros o que motiva o capitalista a investir, parece-nos bem lógico que assim suceda.
É igualmente sabido que para elevar os lucros de uma empresa, neste caso de uma narco-empresa, é conveniente controlar a maior quantidade de cadeias produtivas relacionadas com ela e aí se expandir. É claro que para o negócio na droga não se utilizam apenas mercadorias ilegais, mas em geral utilizam-se muitas mercadorias legais, quer como meios de produção, matérias-primas, e factores de produção de diferente índole, pelo que necessariamente as narco-empresas estão ligadas e associadas com a economia legal e muitos níveis.
Convirá aos parceiros das narco-empresas que estas desapareçam? De modo algum, mas convém-lhes controlá-las.

O narco e a política

Lenine explicava que as relações políticas são, essencialmente, uma expressão condensada das relações económicas. Esta premissa ajudar-nos-á a compreender porque é que a vida política do país, e particularmente a política burguesa, aparece cada vez mais frequentemente nas mãos dos senhores da droga.
O poder político só por si não se mantém num Estado capitalista, ele é manobrado e determinado principalmente pela classe dominante, a burguesia.
Como pode observar-se, o poder da burguesia não se explica por definição legal, não que a constituição política do país o diga, mas é inevitável que sendo a burguesia quem detém o controlo da economia, é ela mesma quem esta em condições de controlar a política. A forma como a burguesia faz política é frequentemente de forma velada, e só nalguns casos o faz de forma clara, isto é, vale-se da burocracia política para se fazer representar nos órgãos do governo e nas diferentes instâncias do Estado. Poderíamos elaborar uma lista interminável de mecanismos de como isto se faz, que vão desde a formação ideológica até à chantagem e ao suborno. O caso mais típico é nos processos eleitorais, onde os partidos e candidatos necessitam de dinheiro para as suas campanhas e, logicamente, obtém maior financiamento quem consiga ser patrocinado pelo mais rico, enquanto, por sua vez, os empresários não oferecem o seu dinheiro, mas investem-no, pelo que por trás de cadafinanciamento privado existem necessariamente acordos de protecção e de facilidades que vão da política à economia e vice-versa. Por que é que então temos de estranhar que os empresários da droga se comportem como o resto da sua classe?
Assim, a ingerência dos capitalistas da droga na política é o resultado da sua posição económica, do controlo que têm sobre uma série de cadeias produtivas; desta forma, através das suas relações e posição política conseguem estabilizar a sua posição.
Assim podemos ver que a ingerência dos narco-empresários na política burguesa é mais forte onde são eles quem tem maior controlo sobre os processos produtivos e comerciais de uma região determinada, e menor onde o seu negócio não seja significativo para economia local, embora em todo o caso a política continue a ser controlada pelos capitalistas de sempre.
Por isso, a submissão dos políticos aos narco não é na essência um fenómeno diferente do da subordinação dos políticos à burguesia, é antes o mesmo fenómeno; é uma condicionante da política burguesa e de como se faz política dentro de um Estado burguês. A prática impõe-se a qualquer princípio político ou ético, e um político ganhador é o que sabe servir os seus amos, os capitalistas; não se trata de uma eleição nem de uma inclinação moral mas de uma coisa prática, se queres ganhar uma eleição e governar com apoio deves muito simplesmente manter-te aliado dos que são donos das condições materiais para o fazer, e numa região são os banqueiros, noutra os empresários de calçado, noutra os empresários da mineração e noutra os narco-empresários, e não existe aqui nenhuma diferença. Visto de outra forma: como poderia um presidente de câmara de um país capitalista como o México, inimizar-se com o dono da principal fábrica, loja e hotéis do município só porque é dono de um outro negócio que explica a existência destes?
Naturalmente estaria metido num beco sem saída. Na generalidade o narco-empresário nem sequer necessita de chegar à violência explícita para ter o presidente do município nas suas mãos, pois a sua posição económica explica o porquê da sua capacidade de exercer a violência.
Com isto não estou a desculpar nenhum eleito pelos seus actos de corrupção, mas a estabelecer que a corrupção é inerente à política burguesa porque disfarça permanentemente os interesses privados, fazendo-os passar por públicos, ou dito de outra maneira, não há diferença substancial entre quem governa em nome de um país para favorecer os interesses dos banqueiros norte-americanos ou das grandes transnacionais e quem governa em nome do povo para favorecer os narco-empresários. Na realidade, todos estes políticos são talhados da mesma peça, e quem está disposto a vender-se aos interesses do capital estrangeiro ou dos banqueiros, logicamente estará disposto a vender-se aos interesses do narco-capital e vice-versa. Poderá perguntar-se, e se houver alguém que não estiver disposto? Simples e simplesmente não está inserido na política burguesa, seja por cepticismo, por consciência de classe, ou porque foi violentamente afastado dela.
O papel da violênciaPoder económico e violência são dois factores que ao longo da história têm caminhado a par, não é privativo do narcotráfico nem tampouco é privativo da sociedade burguesa, ainda que certamente adquira características particulares a que faremos referência.
A burguesia valeu-se da violência em grande e pequena escala para estender e preservar o seu domínio, e fá-lo geralmente através do Estado burguês, através do seu aparelho repressivo assegura-se de que ninguém se interpõe no seu caminho de acumulação e quem o tentar é violentado por diversas formas. Desde o seu início, o capitalismo avançou violentamente sobre civilizações inteiras, açambarcando territórios, rotas comerciais, recursos naturais, despojando comunidades agrárias, encontrando as condições necessárias para que os donos dos meios de produção tivessem à sua disposição homens com capacidade de venda da sua força de trabalho. A barbárie, a morte e a destruição que o capitalismo deixou na sua passagem não é nada inferior à praticada pelos cartéis da droga, diria mesmo que esta é o reflexo daquela.
A peculiaridade da violência exercida pelas narco-empresas é que esta realiza-se fora do da formalidade estabelecida pela normatividade burguesa, pois, ao não ser reconhecida a sua existência jurídica, as narco-empresas não podem regular as relações entre elas nem com os outros através dos tribunais e outras instâncias de «execução da justiça», pelo que praticam a violência por conta própria, através dos mecanismos que têm ao seu alcance. Assim, a execução, ainda que não seja o único mecanismo por eles utilizado, é por excelência o modo como os narco-empresários dirimem os conflitos entre eles e dentro da sua própria empresa.
Este é um elemento que tem estado presente desde o início do negócio, tal como acontece no contrabando em geral mesmo antes de se movimentar os actuais montantes de dinheiro e de capital à sua volta, presente desde que o narcotráfico se apresentava apenas em pequenos bandos de contrabandistas que, por exemplo, passavam marijuana para os Estados Unidos nos guarda-lamas dos carros, como diz a lenda.
Mas esta violência a que nos referimos é também uma violência de classe, é a violência burguesa, pois o seu uso está reservado às pessoas explicitamente autorizadas pelos narco-empresários; não corresponde a uma decisão individual dos seus empregados decidir quando deve ser empregue, mas são os próprios donos quem a instrumenta e dirige, tendo na maioria das vezes por vítimas os próprios empregados, e o seu móbil é facilitar o processo de acumulação de capital. É certo que podemos encontrar casos em que influem factores pessoais e de outra natureza, mas a generalidade da violência praticada pelos cartéis da droga tem como finalidade apoiar objectivos capitalistas, isto é, desfazerem-se dos que criam obstáculos ao processo de acumulação.
De igual modo, temos de dizer que o aumento da capacidade de exercício da violência dos narco-empresários se deve principalmente ao aumento do seu poder económico e à extensão da sua influência económica. É difícil saber se são agora mais violentos do que o eram antes, o que é certo é que o aumento da sua capacidade económica aumentou a sua capacidade de exercício da violência, ou dito de outra maneira, a sua capacidade e exercício da violência aumenta ao mesmo tempo e ao mesmo ritmo do seu capital.
Para os que nunca foram burgueses custa compreender por que razão os narco-empresários, se já têm tanto dinheiro e poder, se agarram ferreamente e desta maneira a arrebatar aos outros narco-empresários o seu negócio. Não poderiam conformar-se com o que têm e andarem em paz uns com os outros?
Mas a paz e a guerra fazem parte de um todo, e quanto menos espaços livres de narcotráfico por conquistar houver, mais crescerá a rivalidade e a violência entre os blocos ou grupos rivais, porque a consciência capitalista caracteriza-se precisamente por procurar sempre mais. Além disso, a tendência geral do capital é para a sua concentração e centralização e o negócio da droga não é excepção à regra. De igual modo, a tendência monopolista do capital conduz ao confronto violento entre os blocos de capitalistas. Se isto aconteceu à escala mundial, não tem nada de estranho que também suceda neste caso.
Mas é possível a paz entre os bandos de narcotraficantes? É-o tanto quanto é possível a paz entre os blocos capitalistas a nível mundial, só transitoriamente, e quando um bloco eminentemente dominante consegue agrupar à sua volta os demais e estes reconhecem a supremacia daquele; tal como as potencias capitalistas reconheceram a primazia dos Estados Unidos, de tal forma que a violência se encontra em estado latente e as expressões mais sanguinárias são contra grupos ou Estados mais pequenos, com menos poder e cuja capacidade militar é completamente díspar. Assim, pode chegar uma situação em que uma qualquer aliança de narco-empresários hegemonizem os restantes e só utilizem a violência de forma mais isolada contra pequenos grupos que se recusem a aceitá-los, ou até que se forme um novo bloco capaz de disputar a hegemonia.
Até aqui está claro que a violência foi um instrumento historicamente utilizado pela burguesia para reprimir todos os que se interpuseram entre eles e o seu objectivo máximo; a acumulação de capital é exercida por cada capitalista com os meios e os métodos que tem ao seu alcance; os narco-empresários desenvolveram os seus próprios métodos de exercício da violência. Mas, o que é que se passa com as expressões aparentemente irracionais de violência a que temos assistido nos últimos anos?
Também aqui podemos tropeçar com a armadilha colocada pelos aparelhos ideológicos do Estado, que nos têm dito que as referidas expressões irracionais de violência provêm do que chamam «o crime organizado». Será verdade? Do meu ponto de vista a dúvida é legítima, pois se é certo que há expressões violentas que parecem estar relacionadas com ajustes de contas, disputas de mercados, etc., existem outros acontecimentos que não se enquadram nesta suposição.
Um exemplo muito importante foi o que aconteceu durante a celebração do grito de independência, em 15 de Setembro de 2008, na cidade de Morelia Michoacán, quando rebentaram duas granadas no meio da população que assistia à comemoração. O governo atribuiu imediatamente as culpas do facto às organizações de narcotraficantes, e ordenou o aumento da presença do militar no Estado, fazendo barreiras indiscriminadamente, e fazendo o patrulhamento de estradas, aldeias e cidades por uma imensidão de militares.
Não se tendo resolvido nada, levantam-se algumas questões. Que ganhará uma narco-empresa em fazer explodir duas granadas numa praça pública onde não há qualquer objectivo lógico para acrescentar o seu capital? Quem é que beneficiou com este acontecimento?
O incidente foi precedido de dois anos de constante incentivo do governo de Calderón ao exército, que foi tirado dos quartéis para o desempenho de funções próprias da polícia. Desde que chegou ao poder, Filipe Calderón procurou no exército o seu principal apoio, e encarregou-se de o trazer para as ruas, aumentou o seu orçamento e elevou-o à única instituição honesta e com capacidade para garantir a segurança dos mexicanos. Se compreendermos que o exército é o pilar dos aparelhos repressivos do Estado, e que a sua principal função tem sido a de zelar pelos interesses da burguesia, não estranharemos que um presidente tão impopular, que ganhou a presidência em eleições fraudulentas e acelerou no seu governo a tomada de medidas antipopulares, tenha procurado o apoio seguro do exército.
Assim, as expressões irracionais de violência não vieram apenas do «crime organizado», mas também vieram do próprio exército e dos corpos de polícia que se dedicaram à violação sistemática das garantias individuais e que chegaram, inclusive, a balear famílias inteiras por supostamente não terem respeitado uma ordem de «alto» numa qualquer barreira.
Mas voltemos ao que aconteceu em Morelia. Foi lógico? Na perspectiva de quem? Seja dito que em alguns momentos a violência é exercida pela burguesia com o objectivo de daí tirar benefícios individuais, mas às vezes ela exerce a violência como classe organizada para o seu favorecimento geral. De uma forma ou doutra, directamente a violência não gera valor nem mais-valia, mas pode servir para favorecer o surgimento de condições de acumulação de capital.
Assim, quando a burguesia como classe organizada utiliza a violência, esta aparece sob a forma de violência pública, e quando o faz por sua conta aparece como violência privada. Na primeira sai beneficiada a classe capitalista em geral, e a segunda só quem a exerceu. Em geral, a violência pública é um assunto de Estado como também o é a administração e regulação da violência privada. O que aconteceu em Morelia foi um acto de violência pública porque beneficiou o Estado, e portanto a classe dominante em geral, pelo que é difícil pensar que se tratou de um exercício privado da violência.
No entanto, não nos encontramos em condições de fazer uma peritagem ou uma investigação que possa descobrir o que realmente aconteceu naquele dia, mas podemos saber quem saiu beneficiado com ele: o Estado, o governo de Calderón, o exército e o bloco hegemónico da classe dominante.
Referi o caso das granadas em Morelia pelo seu significativo resultado, mas ao mesmo tempo podemos falar do desenvolvimento e protagonismo dos grupos de sicários, supostamente ao serviço das narco-empresas. Aqui, o curioso é que muitas das suas operações também não parecem corresponder com o exercício da violência privada, isto é parecem não ter como objectivo conquistar um mercado, acertar contas, desfazer-se de um rival, etc. – refiro-me à execução de pessoas que nada têm a ver com o negócio, intimidações, extorsões, assassínios de artistas, etc. Para quê tanta violência? Será verdade que estes grupos de sicários são guardas privados de alguma narco-empresa?
O que os media dizem não é suficiente para acreditar nisso.
A história recente da América Latina mostra-nos uma possibilidade. Nalgumas ocasiões as narco-empresas criam guardas privadas para exercer a violência, que para eles é dispendiosa mas de alguma forma é lucrativa; mas por vezes, também acontece as narco-empresas terem necessidade de financiar grupos de sicários e, neste caso, os sicários não são um instrumento do narcotráfico mas um objectivo. Isto é, o Estado precisa de um certo tipo de violência para favorecimento da classe dominante, mas como não pode financiá-los nem lhes pode dar abertamente cobertura, permite que esse grupo, treinado e patrocinado por eles, se auto-financie através de todas as facilidades que lhe dá para o negócio da droga. Isto aconteceu, por exemplo com os «contra» na Nicarágua e acontece com os grupos paramilitares na Colômbia, como as tristemente célebres Autodefesas Unidas da Colômbia. O objectivo destes grupos não é propriamente traficar droga, mas o narconegócio permite-lhes
exercer a violência política, que é principalmente dirigida ao combate das organizações e posições opostas aos desígnios do capital; no caso dos contras, o combate era contra o governo sandinista e no caso do paramilitarismo colombiano para conter a insurreição com a repressão indiscriminada e irracional não só contra as bases de apoio tanto das FARC-EP como do ELN, mas também das organizações sociais, líderes sindicais e opositores em geral.
No México estes grupos de sicários não se fizeram notar como grupos anti-insurreccionais, embora se saiba que alguns estão treinados para isso, mas também não estamos livres, de sicários que se reivindiquem como parte de uma organização de sicários ou de «narcotraficantes», e tenham ameaçado ou de alguma maneira violentado lutadores sociais. Um caso conhecido foi, por exemplo, o assassínio do comandante «Ramiro» do ERPI que, antes de ser executado, advertiu que estavam a ser fustigados por este tipo de grupos na região de «Tierra Caliente» do Estado de Guerrero.
Se por ora não podemos assegurar que estes grupos de sicários têm como principal função a contra-insurreição, podemos no entanto dizer que é muito provável que estejam em última instância destinados a isso, e também podemos assegurar que o seu comportamento teve como principal beneficiário o governo Calderón e instituições repressivas como o exército.

Conclusões

• O narcotráfico tem em comum com o resto da economia capitalista as suas características essenciais: a procura insaciável de lucro possibilitada pela mais-valia; carentes de ética, não têm qualquer problema com os efeitos nocivos relacionados com o consumo da sua mercadoria e estão dispostos ao que quer que seja para preservar e reproduzir a sua capacidade de acumulação de capital.
• O narcotráfico tem como particularidade a ilegalidade da sua actividade, portanto, as instituições do Estado, pelo menos formalmente, declaram-se sem competência para regular a relação entre os narco-empresários e os seus empregados, bem como a relação entre as narco-empresas, pelo que a dita regulação se faz sobretudo de forma privada. Por isso a violência privada exercida pelas narco-empresas tem um papel particularmentesignificativo.
• Diferenciar a economia do narcotráfico da economia legal torna-se cada vez mais difícil pela quantidade de capital que se movimenta no narcotráfico e a sua relação com a economia legal.
•Os narco-empresários estão cada vez mais integrados na burguesia como classe, isto é, cada vez é mais frequente que o seu comportamento e as suas acções sejam dirigidos ao favorecimento da classe capitalista em geral e não só a uma parte dela em particular.
• Pelas razões que foram ditas cresceu a capacidade das narco-empresas de fazer política, com incidência na política burguesa, estando a sua capacidade de acumular capital relacionada com a de fazer política.
• A violência privada exercida pelas narco-empresas favoreceu um clima de aumento da violência social, pública e privada na sociedade mexicana, o que veio complicar muito os problemas da sociedade mexicana em geral, afectando principalmente os mais pobres e beneficiando unicamente os senhores do capital.
• Este clima de violência abre e favorece a oportunidade de o Estado burguês mexicano se dotar dos instrumentos violentos de repressão da organização popular.
• Não há qualquer razão para pensar que o referido fenómeno abrande, antes pelo contrário, cada vez mais assume traços mais preocupantes. Para que se desse a sua diminuição seria necessário que desaparecessem as condições que levaram ao seu aparecimento e reprodução, pelo que teriam que desaparecer as condições que permitem a produção, distribuição e consumo da droga. E longe de estar interessado nisso, o Estado mexicano apenas trata de se aproveitar deste tema para fortalecer as suas posições no bloco hegemónico da burguesia mexicana.

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