segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Por que as guerras não são relatadas honestamente?

- O público precisa saber a verdade acerca das guerras. Então porque há jornalistas que cooperam com governos para ludibriar-nos?

por John Pilger
 
No manual do US Army sobre contra-insurgência, o general David Petraeus descreve o Afeganistão como uma "guerra de percepção ... conduzida continuamente com a utilização dos novos media". O que realmente importa não é tanto as batalhas do dia-a-dia contra o Taliban e sim o modo como o caso é vendido na América onde "os media influenciam directamente a atitude de audiências chave". Ao ler isto, recordei-me do general venezuelano que dirigiu um golpe contra o governo democrático em 2002. "Tínhamos uma arma secreta", jactou-se. "Tínhamos os media, especialmente a TV. Temos de ter os media".

Nunca tanta energia oficial foi gasta para assegurar a conivência de jornalistas com os feitores de guerras de rapina as quais, dizem os generais amigos dos media, agora são "perpétuas". Ao reflectir os mais prolixos senhores da guerra, tais como o waterboarding [*] Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA, o qual previu "50 anos de guerra", eles planeiam um estado de conflito permanente inteiramente dependente da manutenção à distância de um inimigo cujo nome não ousam dizer: o público.

Em Chicksands, Bedfordshire, o estabelecimento da guerra psicológica (Psyops) do Ministério da Defesa , treinadores de media dedicam-se à tarefa, imersos num mundo de jargões como "dominância de informação", "ameaças assimétricas" e "ciber-ameaças". Eles partilham instalações com aqueles que ensinam os métodos que levaram a uma investigação pública quanto à tortura militar britânica no Iraque. A desinformação e a barbárie da guerra colonial tem muito em comum.

É claro que apenas o jargão é novo. Na sequência de abertura do meu filme, A guerra que você não vê (The War You Don't See), , há uma referência a uma conversação privada pré-WikiLeaks, de Dezembro de 1917, entre David Lloyd George, primeiro-ministro britânico durante grande parte da primeira guerra mundial, e C.P. Scott, editor do Manchester Guardian. "Se o povo realmente soubesse a verdade", dizia o primeiro-ministro, "a guerra cessaria amanhã. Mas naturalmente não sabem, e não podem saber".

Na sequência desta "guerra para acabar com todas as guerras", Edward Bernays , um confidente do presidente Woodrow Wilson , cunhou a expressão "relações públicas" como um eufemismo para propaganda "à qual ganhou má reputação durante a guerra". No seu livro, Propaganda (1928), Bernays descreveu as RP como "um governo invisível" o qual é o verdadeiro poder dominante no nosso país" graças à "inteligente manipulação das massas". Isto era alcançado por "realidades falsas" e a sua adopção pelos media (Um dos primeiros êxitos de Bernay foi persuadir as mulheres a fumarem em público. Ao associar o fumo à libertação das mulheres, ele conseguiu manchete que louvavam os cigarros como "tochas da liberdade".)

Comecei a entender isto quando era um jovem repórter durante a guerra americana no Vietname. Durante a minha primeira missão vi os resultados do bombardeamento de duas aldeias e da utilização do Napalm B , o qual continua a queimar debaixo da pela; muitas das vítimas eram crianças; árvores eram engrinaldadas com pedaços de corpos. O lamento de que "estas tragédias inevitáveis acontecem em guerras" não explicava porque virtualmente toda a população do Vietname do Sul estava em grave risco diante das forças do seu declarado "aliado", os Estados Unidos. Expressões de RP como "pacificação" e "dano colateral" tornaram-se moeda corrente. Quase nenhum repórter utilizava a palavra "invasão". "Emaranhamento" e depois "atoleiro" tornaram-se correntes num novo vocabulário que reconhecia a matança de civis meramente como erros trágicos e raramente questionavam as boas intenções dos invasores.

Nas paredes dos escritórios em Saigão das principais organizações americanas de notícias eram muitas vezes afixadas fotografias horrendas que nunca eram publicadas e raramente eram enviadas porque, diziam, "sensacionalizariam" a guerra ao inquietar leitores e visionadores e portanto não eram "objectivas". O massacre de My Lai em 1968 não foi relatado a partir do Vietname, embora um certo número de repórteres soubesse dele (e de outros atrocidades afins), mas por um freelancer nos EUA, Seymour Hersh . A capa da revista Newsweek denominou-o uma "tragédia americana", implicando que os invasores foram as vítimas: um tema de purgação entusiasticamente adoptado por Holliwood em filmes como O caçador (The Deer Hunter) e Platoon. . A guerra era imperfeita e trágica, mas a causa era essencialmente nobre. Além disso, foi "perdida" graças à irresponsabilidade de uma media hostil e não censurada.

Embora o oposto da verdade, tais falsas realidades tornaram-se as "lições" aprendidas pelos feitores das guerras actuais e por muita gente dos media. A seguir ao Vietname, jornalistas "incorporados" ("embedding") tornaram-se centrais para a política da guerra em ambos os lados do Atlântico. Com honrosas excepções, isto teve êxito, especialmente nos EUA. Em Março de 2002, uns 700 repórteres incorporados e equipes de filmagem acompanharam as forças invasoras americanas no Iraque. Observem os seus relatos excitados e é a libertação da Europa mais uma vez. O povo iraquiano está distante, efémeros actores secundários; John Wayne ressuscitou.

. O apogeu foi a entrada vitoriosa em Bagdad e as imagens da TV de multidões a saudar a queda de uma estátua de Saddam Hussein. Por trás desta fachada, uma equipe americana de operações psicológicos (Psyops) manipulava com êxito o que um ignorado relatório do US Army descreve como um "circo dos media [com] quase tantos repórteres quanto iraquianos". Rageh Omaar , que estava ali pela BBC, informou no noticiário principal da noite: "O povo saiu saudando [os americanos], mostrando sinais em V. Isto é uma imagem que acontece por toda a capital iraquiana". De facto, na maior parte do Iraque, em grande parte não relatada, estava em marcha a conquista sangrenta e a destruição de toda uma sociedade.

Em The War You Don't See, Omaar fala com franqueza admirável. "Realmente não fiz o meu trabalho adequadamente", afirma ele. "Levanto a minha mão e afirmo que não pressionei os botões mais incómodos com força suficiente". Ele descreve como a propaganda militar britânico manipulou com êxito a cobertura da queda de Bassorá, a qual a BBC New 24 informou ter caído "17 vezes". Esta cobertura, afirma ele, foi "uma câmara de ressonância gigante".

A simples magnitude do sofrimento iraquiano na carnificina tem pouco espaço nos noticiários. De pé em frente à Downing Street nº 10, na noite da invasão, Andrew Marr , então editor político da BBC, declarou: "[Tony Blair] disse que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar, e em ambas as afirmações ele demonstrou estar conclusivamente correcto..." Pedi uma entrevista a Marr, mas não recebi resposta. Estudos da cobertura televisiva feitos pela Universidade de Gales, Cardiff e Media Tenor , descobriram que a cobertura da BBC reflectia esmagadoramente a linha do governo e que informações do sofrimento de civis foram relegadas. A Media Tenor coloca a BBC e a CBS dos EUA entre os principais de meios de comunicação ocidentais que permitiram a invasão. "Estou perfeitamente aberto à acusação de que fomos ludibriados", disse Jeremy Paxman, ao falar no ano passado a um grupo de estudantes acerca das não-existentes armas de destruição em massa . "Nós o fomos claramente". Como um profissional altamente pago da comunicação, ele deixou de dizer porque foi ludibriado.

Dan Rather, que foi a âncora dos noticiários da CBS durante 24 anos, foi menos reticente. "Havia um medo em toda sala de redacção da América", contou-me, "um medo de perder o emprego ... o medo de lhe afixarem alguma etiqueta, impatriótica ou outra". Rather afirma que a guerra nos transformou em "estenógrafos" e que se jornalistas houvessem questionado os enganos que levaram à guerra do Iraque, ao invés de amplificá-los, a invasão não teria acontecido. Esta é uma visão não partilhada por um certo número de jornalistas sénior que entrevistei nos EUA.

Na Grã-Bretanha, David Rose, cujos artigos no Observer desempenharam um papel importantes ao ligar falsamente Saddam Hussein à al-Qaida e ao 11/Set, deu-me uma entrevista corajosa na qual afirmou: "Não posso dar desculpas ... O que aconteceu [no Iraque] foi um crime, um crime em escala muito grande ..."

"Será que isso torna os jornalistas cúmplices?", perguntei-lhe.

"Sim ... talvez inconscientes, mas sim".

Qual o valor de jornalistas que falam assim? A resposta é dada pelo grande repórter James Cameron , cuja corajosa e reveladora reportagem filmada, feita com Malcom Aird, do bombardeamento de civis no Vietname do Norte foi proibida pela BBC. "Se nós, cuja missão é descobrir o que os bastardos estão a tramar, não informarmos o que descobrimos, se não falarmos alto", disse-me ele, "quem é que vai travar toda essa guerra sangrenta acontecendo outra vez?"

Cameron não podia ter imaginado um fenómeno moderno tal como o WikiLeaks mas certamente teria aprovado. Na actual avalanche de documentos oficiais, especialmente aqueles que descrevem as maquinações secretas que levaram à guerra – tal como a mania americana sobre o Iraque – o fracasso do jornalismo raramente é notado. E talvez razão porque Julian Assange parece excitar tal hostilidade entre jornalistas que servem uma variedade de "lobbies", aqueles a quem o porta-voz de imprensa de George Bush certa vez chamou de "possibilitadores cúmplices", é que a WikiLeaks e o contar da verdade envergonha-os. Por que o público teve de esperar pelo WikiLeaks para descobrir como a grande potência realmente opera? Como revela um documento de 2000 páginas escapado do Ministério da Defesa, os jornalistas mais eficazes são aqueles encarados nas sedes do poder não como embebidos ou membros do clube, mas como um "ameaça". Isto é a ameaça da democracia real, cuja "moeda", disse Thomas Jefferson, é o "livre fluxo de informação".

No meu filme, perguntei a Assange como WikiLeaks trataria das draconianas leis secretas pelas quais é famosa a Grã-Bretanha. "Bem", disse ele, "quando olhamos para os documentos rotulados na Lei de Segredos Oficiais, vemos uma declaração de que é um delito reter informação e é um delito destruir a informação, de modo que a única resultante possível que temos de publicar a informação". Estes tempos são extraordinários.

[1] Waterboarding: Simulação de afogamento, método de tortura aprovado pelo vice-presidente Dick Cheney.

O original encontra-se em www.guardian.co.uk e em www.johnpilger.com

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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