segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Usinas Hidrelétricas aceleram ‘territorialização corporativa’ da Amazônia

Escrito por Luis Fernando Novoa Garzon no Correio da Cidadania  
 
A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de monitoramento.
 
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros, independentemente da execução plena e prévia dos programas compensatórios e mitigatórios.
 
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se, a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade anfitriã dos dois mega-projetos.
 
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
 
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas (Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas, Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e, subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
 
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e transfronteiriço.
 
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a verificação de como a precarização e flexibilização de sua regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva. Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio. Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são passíveis de compra e venda.
 
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
 
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
 
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas, necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
 
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa, aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
 
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia), identificamos as seguintes distorções e incongruências:
 
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
 
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
 
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
 
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e compensações decorrentes.
 
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e operação das usinas.
 
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que "todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma propriedade pelo menos equivalente" (2).
 
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação" da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação urbana e rural.
 
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais, no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
 
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e fiscalizadores.
 
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que, vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
 
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
 
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
 
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência e colaboração do poder público.
 
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013, respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
 
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez, seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
 
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas, representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira. Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto Complexo Madeira como um todo.
 
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
 
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia", no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se multiplica com seus fluxos?
 
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ). Contato: l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
 
Notas:
 
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11

Nenhum comentário: