Por Redação - do Correio do Brasil
O
governo italiano, embora empenhado na extradição do escritor e
ex-ativista político Cesare Battisti, usa outro peso, e outra medida, no
caso do uruguaio Jorge Troccoli. Ele foi capitão dos Fuzileiros Navais
do Uruguai e contribuiu para o desaparecimento de oposicionistas da
ditadura uruguaia. Troccoli foi um dos agentes da Operação Condor, que atuou na repressão a militantes de esquerda nos países do Cone Sul durante as ditaduras militares nos anos 70 e 80.
Em
setembro do ano passado, o ministro da justiça da Itália, Angelino
Alfano, negou-se à extraditar Troccoli para o Uruguai, alegando que ele é
cidadão italiano, tomando como base jurídica um tratado assinado entre
os dois países em 1879. O mesmo governo que se nega a extraditar o
torturador, condenado pela Justiça uruguaia, é o mesmo que se considera
ofendido pela não extradição de Battisti, apesar da decisão seguir as
normas do Direito e da legislação brasileira, que por sua vez se baseia
em uma série de convenções internacionais.
Editor do sítio na internet Gramsci e o Brasil, Luiz Sérgio Henriques relata, em artigo publicado no blog Conteúdo Livre,
que “não faltaram pressões diplomáticas do governo uruguaio, recursos
às instâncias do Judiciário italiano, etc., mas o governo de Berlusconi
parece irredutível na sua decisão sobre Troccoli, ‘o Battisti
uruguaio’, no dizer do jornal L’Unità“.
“O contexto
italiano dos anos 1970, no qual se desenrolaram os episódios que levaram
à condenação de Cesare Battisti, tem sido descrito com uma certa
superficialidade nesta nova e acirrada batalha entre defensores e
críticos da recente medida do ministro Tarso Genro, que deu refúgio
político àquele militante do PAC — os Proletari armati per il comunismo.
Supõe-se muitas vezes que a Itália de então fosse uma ditadura e que se
justificava, contra tal ditadura, a resistência armada, ou ainda que se
viviam tempos revolucionários, a serem consumados com o recurso à
“crítica das armas”, pretensa antessala do comunismo. Supõe-se ainda
que, hoje, tal como dito pelo ministro Tarso Genro, a Itália viva algo
semelhante a um estado de exceção, incapaz de zelar pela integridade
física de um prisioneiro ou, então, disposto a fazer desencadear contra
ele injustificável perseguição política” afirma.
“São suposições
que merecem, pelo menos, alguns reparos. A Itália dos anos 1970, mesmo
tendo recorrido a leis de emergência na luta contra o terror (tanto o
chamado ‘negro’, de direita ou extrema direita, quanto o chamado
“vermelho”, de esquerda ou extrema esquerda), jamais cancelou a vigência
da ordem democrática e constitucional. Na verdade, havia uma
“democracia de partidos” em pleno funcionamento, e mais do que isso: os
anos 70 do século passado representaram, por assim dizer, o auge e o
rápido declínio da possibilidade de entrada no governo de um partido tão
significativo quanto o antigo PCI. E isto por uma série complexa de
motivos.
“Por décadas, como se sabe, este partido desempenhou
importante papel na reconstrução da Itália, depois do desastre do
fascismo e da guerra: o PCI, mas também o PSI e o movimento sindical
representaram forças poderosas no processo de modernização e
democratização de um país devastado pelo fascismo e pela guerra: fizeram
com que o Estado italiano começasse finalmente a superar taras
históricas, incluindo as classes subalternas na sua estrutura,
legitimando-as como atores de fato e de direito da cena política. E
mesmo a Democracia Cristã, sob o impacto deste desafio, não se comportou
como partido tradicional da direita, ao reunir massas católicas,
conservadoras ou moderadas, e legitimar, também por este lado, o regime
democrático e os conflitos a ele inerentes.
“Os anos 1970, vistos
como o auge deste audacioso movimento de democratização, transcorreram,
na política, sob a expectativa do sorpasso (a ultrapassagem) dos
democratas cristãos por parte dos comunistas, que pareciam prestes a se
tornar a principal força política e eleitoral. E, naturalmente, a
presença dos comunistas, no centro de um novo bloco de forças,
representaria o início da via italiana para o socialismo, teorizada pela
velha direção togliattiana, ou ainda o ponto de partida para a
introdução de “elementos do socialismo”, na visão de Enrico Berlinguer,
um dos últimos grandes dirigentes do comunismo histórico”, acrescenta.
“Este,
definitivamente, não é o quadro de um estado de exceção. Bem ao
contrário, tratava-se de uma sociedade e de um Estado em ebulição, nos
quais se testava a possibilidade de uma transição democrática para uma
sociedade de tipo socialista, sob a égide da democracia política, das
liberdades e do respeito às leis. Na frase de Berlinguer, uma frase que
por si só é quase um programa político ainda hoje, a democracia devia
ser “um valor universal”, não um expediente tático que se atira na lata
do lixo uma vez obtido o poder. Um elemento fundamental, portanto, do
próprio socialismo, que não devia ter as estruturas viciadas do partido
único ou do partido-Estado.
“Sabe-se hoje que aquela possibilidade
de transição era frágil, e por um conjunto grande de razões. Primeiro e
fundamentalmente, o povo italiano, chamado a se pronunciar regularmente
em eleições livres, jamais permitiu aquele sorpasso. De modo
consistente e ao longo dos anos, a formação de um bloco alternativo ao
da Democracia Cristã nunca se mostrou viável — e só numa eleição para o
Parlamento europeu, já nos anos 1980, é que o PCI teria mais votos do
que a DC, mas isso, registre-se, sob o impacto da morte em campanha do
próprio Berlinguer. Em segundo lugar, eram os anos em que se iniciou a
grande reestruturação econômica e política do capitalismo, depois do
impetuoso desenvolvimento do pós-guerra e do compromisso entre
capitalismo e democracia a que dera lugar. Os “caminhos nacionais” se
estreitavam e se tornavam impraticáveis na Europa, e o próprio
“eurocomunismo” de Berlinguer, que de certa forma tinha consciência do
fim destes caminhos nacionais, restou dramaticamente isolado: sem o
apoio dos demais partidos comunistas tradicionais (e obviamente sem o
apoio da URSS) e sem os meios para agir no ambiente sob domínio dos
Estados Unidos e do Pacto Atlântico”, afirma o articulista.
“Um
terceiro elemento se juntou a este conjunto de fatores, e com ele
entramos plenamente no nosso tema. Setores subversivos da direita
intensificaram sua velha ‘estratégia da tensão’, iniciada ainda nos anos
1960, partindo para uma sequência de atentados e carnificinas que não
poupavam vítimas civis e até buscavam intensificar o número destas. Era a
marca do “terrorismo negro”, a de matar indiscriminadamente, como
quando, já no final de 1980, explodiu-se a estação ferroviária de
Bolonha — uma infame ‘punição’ contra uma cidade símbolo do PCI e então
modelo de vida cívica e de economia plural e inovadora.
“A estes
setores somou-se, gravemente, uma miríade frequentemente confusa de
organizações de extrema esquerda, das quais a mais conhecida são as
Brigadas Vermelhas, responsáveis pelo ainda hoje obscuro e sob muitos
aspectos inexplicado assassinato de Aldo Moro, o político
democrata-cristão mais aberto a entendimentos com o PCI. A marca deste
“terrorismo vermelho” era uma certa seletividade: assassinavam-se
políticos e sindicalistas, inclusive do PCI, grandes dirigentes
industriais e pequenos comerciantes. Às vezes, a seletividade tinha
algum requinte sádico, como quando se adotou uma nova tática para a qual
se criou o vocábulo gambizzare. Como se sabe, gamba é
perna, em italiano. Alvejar joelhos e pernas dos adversários passou a
ser algumas vezes a nova tática dos que cogitavam chegar ao socialismo
ou ao comunismo pela luta armada. Considero isso particularmente cruel.
Uma perversão da política. Coisa de criminosos comuns.
“Não se
trata de ‘criminalizar a oposição ou o dissenso’, como hoje tantas vezes
se diz a propósito de tudo e de nada. Por tudo o que dissemos, pode-se
muito bem constatar que, na tarefa comum de desestabilizar o Estado de
Direito e fazer retroceder a luta política na Itália, retirando o
protagonismo das massas e barrando o notável processo de socialização da
política então em andamento, aliaram-se objetiva e subjetivamente o
terrorismo vermelho e o negro. Uma aliança que muitas vezes foi tecida
com instrumentos fornecidos por setores desviados do Estado —
particularmente os serviços secretos —, por lojas maçônicas como a
tristemente célebre P-2, por espiões e agentes de ambos os lados em
conflito na Guerra Fria e, last but not least, pela
criminalidade comum das variadas máfias e camorras. Não exagero nem
julgo fatos específicos, mas Cesare Battisti é uma criatura deste
momento e deste contexto. Nem mais nem menos. Gente como ele cometeu
crimes iguais ou semelhantes aos que lhe são imputados. Crimes contra
pessoas comuns e, simultaneamente, contra a democracia e contra o Estado
de Direito.
“A democracia italiana defendeu-se deste assalto
violento sem se desviar do regime constitucional. A atitude do PCI,
então hegemônico entre as forças de esquerda, foi decisiva para que se
isolassem e derrotassem os setores subversivos: a atitude de uma força
de esquerda madura e responsável, atenta à defesa do seu programa
fundamental, que, na verdade, era a Constituição republicana feita sob a
presidência de Umberto Terracini, um grande comunista amigo de Gramsci e
que, por sinal, recebeu uma pena ligeiramente superior à deste último
no processone fascista contra os dirigentes do PCI nos anos
1920. A involução autoritária, objetivo nem tão oculto dos terroristas
de direita e de esquerda, foi impedida, e é em momentos desse tipo que
se afirma, ou não, a capacidade de direção nacional de uma grande força
política, mesmo eternamente condenada à oposição pelos constrangimentos
da Guerra Fria”, pontua Henriques.
“Hoje o PCI não mais existe,
mas é perfeitamente possível afirmar que as forças que majoritariamente o
compunham se encontram, ao lado de católicos democráticos, no
recentemente criado Partido Democrático, depois da experiência do
Partido Democrático da Esquerda e dos Democráticos de Esquerda. A Itália
tem um governo de centro-direita e à sua frente está uma figura
particularmente polêmica, a de Silvio Berlusconi. A coalizão no poder
inclui forças que expressam um persistente e não muito disfarçado
mal-estar com a própria unidade nacional, como é o caso da Liga Norte.
Expressa-se nesta Liga até mesmo um racismo intraétnico contra os
italianos do Sul. A luta política, pois, é duríssima, as tensões sociais
são inéditas, mas nada disso autoriza a caracterizar como fascista ou
pró-fascista o Estado italiano. Na presidência deste Estado encontra-se
um homem do porte de Giorgio Napolitano, egresso do PCI, assim como, nos
anos 1970, à frente do Estado estava Sandro Pertini, um socialista
histórico com passagem relevante numa luta armada de verdade, travada
por motivos históricos irrefutáveis — a Resistência contra o fascismo e o
nazismo.
“Deduz-se facilmente que o atual governo de
centro-direita, o terceiro dirigido por Berlusconi, está imerso em
contradições graves, embora não tenha chegado ao poder através de golpe
de Estado e o país continue sendo, como é acaciano observar, uma
democracia, apesar de todas as suas imperfeições. Gostaria de chamar a
atenção para uma dessas contradições do governo Berlusconi, um fato que
talvez ainda não tenha sido devidamente comentado e divulgado no nosso
país.
“Tal contradição, que aqui nos interessa, encarna-se num
personagem: tem nome e responde por atos tão graves quanto os imputados a
Cesare Battisti. Jorge Troccoli — este o personagem — foi capitão dos
Fuzileiros Navais do Uruguai e contribuiu para o desaparecimento de
muitos oposicionistas da ditadura uruguaia, entre os quais seis cidadãos
italianos. Troccoli foi um dos agentes da Operação Condor, uma
“internacional” do terrorismo de Estado em ação nos países do Cone Sul
dominados pelas ditaduras militares nos anos 1970 e 1980. O curioso é
que o governo de Berlusconi negou a extradição de Troccoli para o
Uruguai, alegando dupla cidadania. Fora este último aspecto, o caso
Troccoli tem muitas semelhanças com o de Battisti. Não faltaram pressões
diplomáticas do governo uruguaio, recursos às instâncias do Judiciário
italiano, etc., mas o governo de Berlusconi parece irredutível na sua
decisão sobre Troccoli, ‘o Battisti uruguaio’, no dizer do jornal L’Unità. E se trata de um episódio recente, cujas escaramuças diplomáticas e judiciárias mais dramáticas ocorreram em 2008″ acrescenta.
‘No
fundo, diante de situações como estas, volto a pensar num homem como
Berlinguer. Um homem de partido, sem dúvida um comunista que aos olhos
de hoje se diria tradicional, mas cuja formação moral, cuja
reflexividade e até certa melancolia talvez o tenham poupado de ilusões
mais graves quanto às virtudes supostamente imaculadas dos seus
partidários e aos defeitos pretensamente insuperáveis dos seus
adversários. Um líder cujo carisma talvez residisse no anticarisma, no
apelo ao que havia de mais sensato, razoável e inteligente nos seus
amigos, partidários e até mesmo nos que a ele e ao PCI legitimamente se
opunham. Precisamos de homens e mulheres assim, que apelem, com grande
autoridade moral e sem ambiguidade, ao caráter universal de alguns
valores básicos. Sem isso, o que nos espera é a agitação estéril dos
sectarismos. De direita ou de esquerda”, encerra o artigo o editor Luiz
Sérgio Henriques.
Problema diplomático
A conclusão, segundo Roberto Cotroneo, jornalista do diário italiano de esquerda L’Unità, é que “não há nada a fazer”.
“O
caso Cesare Battisti não é mais um problema diplomático entre Itália e
Brasil, está se tornando algo muito mais grave”. O jornalista lembra
que chamar o embaixador italiano no Brasil à Itália, para consultas,
como o fez o premiê Silvio Berlusconi “é um ato duríssimo e sob certos
aspectos clamoroso”.
“Neste momento, a tensão entre os dois
países, com uma longa tradição de boas relações diplomáticas, parece
pelo menos surpreendente. Nesta altura, Batisti certamente terminará
como refugiado político no Brasil, porque nenhum país no mundo expõe-se
com um parecer do seu presidente e depois recua das suas decisões. E é
francamente impensável, sendo o Brasil uma das maiores potências do
mundo, que a Itália interrompa as relações diplomáticas”, afirma, em
artigo publicado um ano atrás.
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