Por Jacques Távora Alfonsin
O novo governador do Rio Grande do Sul escolheu Carlos Henrique
Kaipper (foto) como procurador geral do Estado. Alguns testemunhos do
passado de quem assume, agora, a coordenação do serviço público da
Procuradoria, abre expectativas bem diferentes entre os gaúchos, se o
critério de defesa dos direitos humanos fundamentais da população pobre
do nosso Estado decidir sobre o mérito dessa escolha. Enquanto ela,
quase certamente, está animando essa multidão, leva muita preocupação e
desconfiança àquele poderoso segmento latifundiário, contrário à reforma
agrária e acostumado a camuflar como “produtividade rural”, exceções a
parte, a manutenção perversa do trabalho escravo.
Kaipper integrou o quadro de advogados do Ministério de
Desenvolvimento Agrário. Em 2004, quando participava da II jornada de
debates sobre trabalho escravo, cuja abertura contara com pronunciamento
do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ele falou sobre esse
crime, o modo como um tal tipo cruel de exploração de trabalhadoras/es
pobres e ignorantes se dá no Brasil, sua inconstitucionalidade frente ao
regime do país, os meandros por onde a bancada ruralista e a CNA
consegue impedir, vergonhosamente, o andamento de qualquer projeto de
lei capaz de punir essa injustiça, inclusive com a perda da propriedade
da terra onde ela se perpetra.
Disponível na internet (II Jornada de debates sobre trabalho escravo),
o seu discurso revela bem mais do que o perfil competente do advogado,
particularmente daquele que lida com a defesa do Direito público e
Social. Auditório acostumado com aquelas lições modorrentas de doutrina e
jurisprudência, tão aborrecidas quanto alheias e distantes da dura
realidade de injustiça social e pobreza, sob as quais vive todo um povo
de párias no interior do Brasil, ficou perplexo quando o orador bradou: “Doutor,
por mim não preciso receber um tostão. Só quero que me tirem daqui,
pelo amor de Deus, pra que eu possa voltar para a minha família.”
Era a desesperada queixa que um trabalhador rural, submetido ao
regime de escravidão, tinha feito ao Kaipper numa das suas visitas a um
latifúndio onde os órgãos de fiscalização federal detectara esse crime
hediondo. A lembrança dramática do fato, denunciada com indignação pelo,
hoje, novo procurador geral do Estado, revela três diferenças
relevantes sempre presentes entre advogadas/os, juízas/es,
promotoras/es, gente enfim que lida com as leis e o direito, conforme a
concepção de justiça de cada um/a.
A primeira relacionada com as gentes, o lugar e o tempo de onde
partem os seus juízos sobre a realidade. Quando esses reduzem a sua
visão dos fatos, filtrada apenas através da lei, por sua vez gestada em
passado distante e atrasado, quando se negam ao contato epidérmico com o
povo e os lugares onde serão sentidas e sofridas as suas conseqüências,
cede a preconceitos tradicionais, “explicativos” de desigualdades
sociais, é insensível a urgências, atrasa providências e a injustiça é
certa.
A segunda relacionada com o sentido de exercício do poder público.
Quando esse se baseia no cálculo interesseiro de como “subir”, submisso
apenas a conveniências político partidárias casuísticas da hora, com
medo de desagradar, ou confundindo o egoísmo corporativista com
valorização de carreiras, medindo tudo pelo tamanho da remuneração a ser
paga, ignora suas responsabilidades, fica imune à crítica, à
auto-crítica, e a injustiça é certa.
A terceira relacionada com as referências de exercício do poder
público. Esse tem uma tendência histórica de inverter sua obrigação de
servir pela de dominar. Quando perde a noção de que a sua origem não se
encontra na cabeça do indivíduo que o exerce, mas somente se justifica
em função do mandato democrático que o constitui, fazendo passar por
assunção de encargos a autoridade do argumento em lugar do argumento de
autoridade, a injustiça é certa.
Pelo testemunho público do Kaipper naquela II Jornada, parece que nem
o povo ao qual ele vai servir, nem as/os procuradoras/es que vai
liderar, nem o governador que o nomeou, precisam temer, pois o novo
procurador demonstra conhecer bem as tais diferenças.
A Procuradoria Geral, como a sua própria denominação autoriza
confiar, somente se explica e justifica, na medida em que anda a
procura. Movimentar-se, pois, agir, fazer, para ela não significa mera
hipótese. No caso da defesa do Estado, democrático e de direito como
previsto na Constituição Federal, outra prioridade nessa busca não pode
e não deve existir que não seja a de garantir as condições de dignidade
e cidadania do nosso povo, pois essa é a principal razão de ser do
Estado.
Enquanto os direitos humanos fundamentais sociais que as expressam
ficarem dependentes, apenas, da burocracia administrativa ou das
decisões dos tribunais, a escravidão contra a qual o Kaipper se insurge
terá somente mudado de lugar, (proporções e exceções ressalvadas), pois
tanto a primeira, como as últimas não são fins em si, não passam de
meios, de apoio às garantias de vida e liberdade para todo o povo.
Pobreza, miséria, falta de educação, saúde e segurança, entre outras
realidades desafiadoras da nova administração pública do Estado, não
deixam de ser formas outras de escravidão. O passado recente dessa mesma
administração não percebeu isso com o cuidado e a urgência de a tais
problemas se dar resposta oportuna e eficiente.
Mesmo respeitados os limites de competência constitucional da
Procuradoria Geral do Estado, a escolha do coordenador da relevante
prestação de serviço reservada àquele Órgão Público, feita pelo
governador Tarso Genro, apóia dois dos mais importantes sentimentos do
povo que elegeu o novo governo do Estado: a confiança depositada em suas
virtudes e a esperança de que a sua escolha não foi feita em vão.
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