sábado, 9 de abril de 2011

Os Bolsonaros e a rua Lima e Silva



O grupo Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade publicou nota manifestando repúdio às recentes declarações racistas e homofóbicas do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e criticando a matéria publicada pelo jornal Zero Hora sobre o vandalismo que teria tomado conta da rua Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Intitulada “Vandalismo, drogas e sexo a céu aberto”, a matéria tem como ilustrações fotos de casais gays se beijando. A nota do Somos afirma:
Na última semana nos deparamos com o deputado Jair Bolsonaro dando declarações racistas, heterossexistas e homofóbicas em rede nacional de televisão. “Pra mim ser gay é promíscuo, sim”, disse o deputado, democraticamente eleito pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro, quando questionado sobre suas posições.
As crenças do deputado, expressas de modo bastante claro, são preocupantes. Mas a democracia, instituição pela qual no deputado não parece ter muito apreço, tem sua utilidade nesse caso: grande parte das pessoas acredita que é um direito de Bolsonaro dizer o que pensa. Então, que ele diga o que pensa, que nós discordemos de suas ideias, que haja discussões e que nada mude na realidade em que vivemos. Afinal, é um “direito democrático” dizer que gay é promíscuo, é um “direito democrático” votar em um candidato que acredita nisso, tanto quanto é um “direito democrático” discordar disso. Será mesmo?
A própria noção do que é democracia é totalmente distorcida neste caso. Ter liberdade de expressão significa ter direito de posicionar-se contra ou a favor de acontecimentos do nosso presente, mas jamais significa incitar ao ódio, promover a discriminação e a violência ou impor a todo um grupo de pessoas um rótulo preconceituoso. Isso não é liberdade de expressão: é liberdade de promoção e implantação do ódio. Entretanto, devemos tirar uma lição bastante preciosa das declarações de Bolsonaro. Ele dá voz a um murmúrio quase silencioso de muitos cidadãos e cidadãs brasileiras, que efetivamente concordam com suas ideias, eleitores e eleitoras que votaram no deputado e que legitimam suas posições. Há uma massa de pessoas que também acreditam no que Bolsonaro diz, e que também acreditam que é este o tipo de democracia que precisa vigorar no Brasil. Temos de estar atentos/as ao que isso pode significar para o jogo político. Além disso, é importante que as pessoas se expressem publicamente, que assumam suas crenças e que se responsabilizem por elas. Se concordam com as declarações do deputado, que tomem a voz: é importante tirar os/as reacionários do “armário” para que as discussões se tornem mais claras.
Na edição desta segunda-feira do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, as páginas 4 e 5 são dedicadas a descrever e denunciar os supostos abusos cometidos por jovens que se encontram na rua Lima e Silva, localizada no bairro Cidade Baixa na capital gaúcha. O bairro é reconhecidamente o preferido pela boemia porto-alegrense e é frequentado por muitos grupos em diferentes dias e diferentes ruas. A matéria, entretanto, foca como problema a sociabilidade jovem que acontece ali, sobretudo aos domingos, entre jovens. O título da matéria “Vandalismo, drogas e sexo a céu aberto” deixa muito a desejar, ainda mais quando contrastado com as fotografias que ilustram o texto: não há sexo a céu aberto, mas beijos entre dois meninos ou entre duas meninas. É este o conceito de “sexo a céu aberto”?
O SOMOS já desenvolveu uma pesquisa de levantamento de dados e um trabalho de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis junto aos jovens que se reúnem em frente ao Centro Comercial Nova Olaria. Durante a implementação das ações da pesquisa e do projeto Qual É A Sua, desde o ano de 2007, fizemos observações participantes na sociabilidade dos jovens na rua Lima e Silva. Durante os mais de 6 meses de observações, não presenciamos nenhuma cena de sexo a céu aberto, como sugere a matéria, também não presenciamos nenhum/a jovem subindo os parapeitos dos prédios para cheirar cocaína. Vale lembrar que jovens menores de 18 anos não podem entrar em motéis e normalmente moram junto com seus pais, o que dificulta os momentos de práticas sexuais a sós – mesmo assim, jamais vimos nenhum tipo de atentado violento ao pudor acontecendo na Lima e Silva.
Sim, é verdade que os/as jovens fazem xixi nas ruas, posto que os banheiros dos estabelecimentos próximos ficam fechados – apenas para os jovens – e a Prefeitura não disponibiliza banheiros públicos naquela região da cidade. Porém, o “problema” de urina e fezes nas ruas não é uma característica apenas da Lima e Silva – várias outras regiões de Porto Alegre têm sofrido com o total descaso da política de limpeza urbana do município. Se há consumo de drogas ilícitas, como a cocaína, ou abuso de drogas lícitas, como o álcool, é importante salientar que o uso e abuso destes tipos de drogas acontecem também a algumas quadras da rua Lima e Silva, ao longo da rua João Alfredo. A diferença entre a sociabilidade das duas ruas é que a primeira é predominantemente frequentada por jovens gays e lésbicas, enquanto que a segunda é destino de jovens heterossexuais – de classe média. O uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas não é privilégio dos jovens que se reúnem na rua Lima e Silva, mas uma prática mais ou menos disseminada e comum entre vários grupos de pessoas que frequentam vários outros ambientes de sociabilidade, sem que isso se torne um problema unicamente porque o consumo se dá dentro destes espaços, sem que o público em geral veja. É esse, então, o problema? Que sejamos obrigados a ver com nossos olhos aquilo que normalmente preferimos ignorar? Acreditamos que exista, sim, um problema em relação à sociabilidade dos/as jovens que frequentam a Lima e Silva aos domingos; entretanto, as maneiras com que a sociedade e a mídia vêm lidando com este problema, além da omissão do Poder Público Municipal, só têm piorado a situação.
A matéria de Zero Hora, cuja demanda de pauta ainda é um mistério, explicita problemas que não se restringem àquele grupo de jovens. É curioso notar que ao longo do texto, nenhum dos/as jovens foi ouvido/a ou entrevistado/a. Por quê? Se a eles/as são impetradas tantas transgressões, por que não ouvi-los/as sobre o que têm a dizer? Por que damos ouvidos às declarações de Bolsonaro, por exemplo, e é tão difícil de articularmos uma resposta consistente contra suas posições? Por que não há nas páginas de Zero Hora uma matéria sobre o uso e abuso de álcool e cocaína nas boates freqüentadas pelos jovens da classe média heterossexual de Porto Alegre? Por que não há políticas públicas relevantes para dar conta dos jovens, sobretudo no município de Porto Alegre? Por que é tão fácil de acreditar que Bolsonaro tem direito de dizer o que pensa, chamando isso de liberdade de expressão, enquanto que jovens gays e lésbicas não podem se beijar em público, posto que isso é atentado violento ao pudor? É porque, talvez, em alguma medida, aqueles/as que veem como um problema jovens gays e lésbicas se beijando em público estejam também de acordo com as declarações de Bolsonaro.
O SOMOS se posiciona contrariamente às declarações do deputado Jair Bolsonaro e repudia qualquer tipo de atitude ou ideia que incite ao ódio e à violência; defendemos, sim, a liberdade de expressão, mas somos absolutamente contrários/as a posições que denigrem os Direitos Humanos. Pela mesma razão, somos a favor de um tratamento mais digno e menos preconceituoso em relação aos/às jovens que frequentam a rua Lima e Silva aos domingos, de modo que todos os atores sociais e instituições públicas envolvidas nessa situação possam tomar medidas inclusivas para resolver a questão, sempre orientadas pelos princípios preconizados pelos Direitos Humanos.

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