sábado, 9 de abril de 2011

Textos finais de Tolstói são libelos contra os ricos e a igreja


Como o menino do conto de Andersen, Liev Tolstói grita: "O rei está nu!". A imagem serve para sintetizar a ideia que perpassa os textos de Os Últimos Dias. Em cartas, trechos de diário, discurso e ensaios elaborados entre 1882 e 1910, o célebre escritor russo faz manifestos cáusticos contra a hipocrisia da sociedade, atacando os pilares do poder, defendendo a simplicidade e derramando religiosidade.

Filho da aristocracia, Tolstói (1828-1910) foi um rico desvairado, um militar, um romancista monumental (Guerra e Paz, Anna Kariênina) e um profeta peculiar. É dessa última fase que se ocupa o livro lançado pela Penguin-Companhia das Letras, a partir de seleção feita pelo professor Jay Parini, autor de A Última Estação, obra na qual se baseou o filme homônimo em cartaz.

Tolstói escreve em seu diário: "Pensei que, se eu servir as pessoas pela escrita, então a única coisa a que tenho direito, o que devo fazer, é desmascarar a mentira dos ricos e revelar aos pobres o engano em que eles os mantêm".

Com esse objetivo, ele dispara: "As pessoas vivem num luxo absurdo, enriquecendo-se com o trabalho de pobres humilhados e protegendo a própria riqueza com guardas, juízes, sentenças -e o clero, em nome de Cristo, aprova, consagra e abençoa essa vida, apenas aconselhando os ricos a conceder uma pequena parte do que foi roubado àquele de quem continuam roubando".

Hipnotização do povo

Por suas opiniões, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa, que, para ele, tinha abandonado os princípios da religião, criando um "pseudocristianismo". Rico proprietário de terras, Tolstói também se rebelou contra sua classe: "Deveria estar claro para qualquer homem culto de nossa época que o direito exclusivo à terra para pessoas que não trabalham nela e que privam o acesso a ela a centenas de milhares de famílias miseráveis é algo tão perverso e infame como a posse de escravos", diz numa carta.

Nos textos reunidos no livro, ele discorre sobre uma "hipnotização do povo", pregando contra os governos e as Forças Armadas, que ele classifica como "instrumento de assassínio". Pacifista, adversário feroz do serviço militar obrigatório, trocou correspondências com Bernard Shaw e Mahatma Gandhi.

Numa delas, expressa a necessidade de, com a aproximação da morte, transmitir suas opiniões a outras pessoas. Essa urgência provoca um jorro de ideias — às vezes repetitivo e cansativo — que toma conta do volume. Conta fábulas e esgrima temas como educação, vegetarianismo, religião, ciências e artes.

Shakespeare

Nesse último ponto, Tolstói elabora uma polêmica crítica à obra de Shakespeare, que para ele não era um artista. Dissecando Rei Lear, por exemplo, ele argumenta que a peça é "muito ruim, composta de modo desleixado" e que lhe provocou "nada além da repugnância e tédio". Na sua visão, não há "base razoável" para o "louvor insano" que os críticos fazem ao dramaturgo.

Tolstói prega nos textos, eivados de religiosidade e moralismo, a construção de uma nova sociedade, com a eliminação da violência, o estabelecimento de um sistema geral de propriedade, uma única religião e uma "irmandade universal". Suas utopias, que chegaram a reunir seguidores, se esfarelaram no tempo. Suas críticas permanecem.

Basta ler a descrição da sociedade em A Morte de Iván Ilitch (1886) — "uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal", na avaliação de Otto Maria Carpeaux — para antever o âmago do pensamento de Tolstói que desemboca nesse livro lançado agora. Nele a densidade do autor no caminho de seus últimos dias transparece para além dos ranços e carolices.

Da Redação do VERMELHO, com informações da Folha de S.Paulo

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