Igor Natusch no Sul21
“Posso falar ‘os livro’? Claro que pode”. A frase, contida em um
livro didático da coleção “Viver, Aprender”, provocou polêmica e foi
repetida incessantemente como exemplo de que o MEC, que está
distribuindo o livro, está incentivando a população a escrever errado,
desprezando a norma culta. A reação negativa, reproduzida por alguns
deputados e senadores, é fortemente questionada por estudiosos da língua
portuguesa, que alegam não apenas que a discussão está fora de foco,
como também ataca ideias que não são nenhuma novidade dentro do panorama
da linguística. “O livro não traz nenhum absurdo, tanto no estudo da
linguística quanto em termos de metodologia”, garante o professor Pedro
Garcez, do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária da
UFRGS.
Segundo Garcez, as frases que estão sendo destacadas e repetidas nos
meios de comunicação estão em um contexto adequado, inseridas em uma
discussão sobre concordância verbal. Para ele, trata-se de um dos
aspectos “mais salientes” quando se trata de linguagem adequada ou
inadequada. “Muitos erros gramaticais são comuns na linguagem oral,
correntes até, mas não doem no ouvido”, explica ele. “Mas a concordância
é algo que perturba, ainda mais quando reproduzida na escrita. Pessoas
que não estão familiarizadas com a discussão linguística acabam ficando
um pouco chocadas, ainda mais se levarmos em conta o modo como a
discussão foi colocada na mídia. A coisa chegou muito de supetão”,
afirma.
O livro didático que tornou-se pivô da polêmica segue conceitos de
variação linguística adotados no currículo educacional brasileiro desde
1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais foram adotados pelo Ministério da Educação na
primeira gestão do ministro Paulo Renato Souza, a partir de estudos de
linguagem que, segundo Pedro Garcez, já existem há mais de 40 anos.
Mesmo assim, a Academia Brasileira de Letras (ABL) divulgou nota
posicionando-se de forma contrária ao uso dos livros didáticos
distribuídos pelo MEC. “O manual que o Ministério levou às nossas
escolas não o ajudará no empenho pela melhoria a que o ministro tão
justamente aspira”, diz a ABL. Em resposta, o Ministério da Educação
declarou que “o reconhecimento da variação linguística é condição
necessária para que os professores compreendam seu papel de formar
cidadãos capazes de usar a língua com flexibilidade. Cabe à escola o
papel de criar situações de aprendizagem que possibilitem aos estudantes
utilizar diversas variedades linguísticas”.
“No cotidiano, dizer ‘as coisa’ ou ‘os negócio’ é comum ao povo
brasileiro, não é algo que apenas pobres ou ignorantes fazem”, afirma
Pedro Garcez. E dá outros exemplos que demonstram que, no dia a dia,
falar “errado” é mais comum do que se imagina. “É natural apagar o
plural nas proparoxítonas, dizer ‘nós tava’, ao invés de ‘nós
estávamos’, por exemplo. No Nordeste, praticamente não existe mais
morfologia do verbo na língua falada. É ‘eu tava’, ‘ele tava’, ‘nós
tava’, ‘eles tava’. Um uso generalizado”. Os próprios jornais, segundo
Garcez, adotam liberdades que não cabem na chamada norma culta, como a
colocação do pronome após o verbo (por exemplo, “escolheram ele”).
Trechos do livro foram citados fora do contexto, diz Garcez
Nenhuma dessas variantes, porém, deve ser incorporada na norma
escrita – nem de acordo com os livros didáticos do MEC, nem de acordo
com os estudos de linguística. É o que garante Pedro Garcez.
Na leitura
do professor da UFRGS, trata-se apenas de reconhecer a existência de
variações entre a linguagem falada e a escrita, e em trabalhar conceitos
de adequação e inadequação. “Imagine uma peça publicitária usando
imperativo, dizendo algo tipo ‘não deixes de vir’. É algo que não daria
certo, seria inadequado”, comenta.
O temor de que haja uma incorporação da linguagem coloquial pela
norma escrita, admitindo diferentes formas de escrever, é infundado,
segundo Garcez. “Há um caráter meio preconceituoso nessa visão de que,
se isso acontecer, as pessoas não vão mais se entender”, acusa. “O
contexto do que é exposto no livro é justamente o oposto. Para mostrar a
importância de melhorar o texto, se fala da necessidade de aprender
itens de correção gramatical. São vários pontos, como pontuação,
estrutura frasal… E aí chega-se na concordância, dizendo que, dependendo
do contexto, não há nada de errado em dizer ‘nós faz’, mas escrever
‘nós faz’ criará uma série de dificuldades”.
Outro elemento contestado por Pedro Garcez refere-se à ideia,
defendida por alguns críticos do livro didático do MEC, de que o domínio
da dita norma culta é um mecanismo de ascensão social. O argumento
surge também na nota divulgada pela ABL sobre o episódio. “Me parece um
raciocínio bastante equivocado”, diz o professor da UFRGS. “O mundo é
muito mais complexo do que isso. Concordo que para espaços públicos,
para a discussão política, o cidadão precisa dominar essa linguagem. Mas
não é uma garantia (de ascensão social). De nada adianta falar
‘corretamente’, entre aspas, e não ter outras tantas qualificações
necessárias”.
Por fim, o professor de linguística da UFRGS lembra que a manutenção
de certos conceitos, além de ignorar o dinamismo da linguagem falada,
acaba sendo lucrativa para alguns grupos. “Professores como Pasquale
(Cipro Neto), Cláudio Moreno e todos os que publicam obras do tipo ‘Não
Erre Mais’ acabam se beneficiando disso (confusão entre língua falada e
norma escrita)”, argumenta Pedro Garcez. “Não existe certo ou errado na
linguagem falada, e sim adequado ou não adequado. ‘Nós pega peixe’ não
encaixa dentro da norma escrita, mas não dá para ignorar que as pessoas
usam esse tipo de construção gramatical no dia a dia, enquanto conversam
entre si”, conclui.
Um comentário:
Querido Gérson,
Posso reproduzir no meu blog dois posts teus desta página? Beijos e deixa por e-mail, por gentileza, a resposta. Beijão
Postar um comentário