Roger Raupp Rios é juiz da 4ª Vara Federal de Porto Alegre, mestre e
doutor em Direito pela UFRGS e professor de mestrado em Direitos Humanos
na UniRitter. Tem atuado de forma destacada na questão de direitos
sexuais e antidiscriminação. Ele é autor de uma decisão pioneira no
Brasil, de 1996, quando se posicionou a favor de um casal homossexual em
questão de direito previdenciário. Desde então, tem sido nome
importante no estudo jurídico voltado à consolidação dos direitos dos
homossexuais.
Na noite desta quarta, o jurista participou de um seminário promovido
pela Escola Superior da Magistratura (ESM) da AJURIS, em Porto Alegre.
Ao lado da médica e especialista em antropologia social Elizabeth
Zambrano, Roger Raupp Rios discutiu o panorama que se descortina a
partir da decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceram por unanimidade no mês passado a união estável para casais do mesmo sexo.
Uma decisão que abre um horizonte novo para as relações homoafetivas,
ao mesmo tempo que desperta um contra-ataque incisivo por parte de
setores que não aceitam a mudança, liderados pela bancada evangélica no
Congresso Nacional.
Minutos antes do começo da palestra, Roger Raupp Rios conversou com o Sul21
sobre a posição do Supremo, interpretando-a como um sinal brasileiro na
direção do que já vinha sendo apontado por tribunais da Europa, EUA e
até mesmo da América Latina. Foi surpreendido pela informação de que o Ministério da Saúde decidiu eliminar as restrições para doação de sangue por homossexuais,
ao mesmo tempo em que fez um alerta sobre a série de iniciativas
políticas que já estão sendo tomadas contra a decisão do STF e contra as
conquistas da comunidade LGBT em geral. E demonstrou descontentamento
com a posição da presidenta Dilma Rousseff, que criticou abertamente a
cartilha para conscientização em escolas como trazendo em si uma
“propaganda de opção sexual”.
Sul21 – Quais são as perspectivas que surgem a partir da
decisão do STF, que reconheceu a união homoafetiva como uma célula
familiar? O que uma decisão como essa nos indica em termos de mudanças
jurídicas no Brasil?
Roger Raupp Rios – Eu diria que nem indica, mas sim
confirma. É uma decisão que confirma o que vem acontecendo há pelo menos
15 anos no Brasil, que confirma o que vem sendo decidido tanto em
tribunais federais quanto estaduais. Já há reconhecimento, nesses
tribunais, de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Nesse
sentido, mais do que indicar uma novidade, a decisão do Supremo confirma
uma tendência que já vem se verificando, e que coloca o Brasil ao lado
de outros tribunais internacionais, inclusive latino-americanos, como
México, Argentina e Colômbia. Ingressamos no grupo dos países cujos
tribunais de cúpula reconhecem esses direitos. Com a decisão, o Brasil
entrou nesse rol, de forma um tanto tardia talvez, mas entrou.
Sul21 – Temos então uma tomada de posição junto à comunidade internacional, também?
RRR - Essa decisão é uma afirmação clara de que o
tipo de preconceito voltado contra homossexuais é incompatível com a
Constituição brasileira e com os direitos básicos do ser humano. Afirmar
isso com todas as letras pode indicar uma série de novas possibilidades
em várias outras áreas, tanto no direito de família como em outros
direitos civis, como no direito do trabalho, da política, no mundo
comunicação social, da saúde, do ensino e aí por diante. É verdade que
já temos avanços nesses mundos, especialmente na saúde. Mas o STF
afirmar, com todas as letras e de forma categórica, que a homofobia
viola a Constituição é um bom indicativo, em minha opinião.
Sul21 – De qualquer modo, já começam a surgir alguns reflexos
positivos da decisão do Supremo, como a sinalização do Ministério da
Saúde em acabar com as restrições a homossexuais na hora de doar sangue…
RRR – Foi anunciado isso? O Ministério da Saúde disse isso?
Sul21 – Sim, o ministro da Saúde (Alexandre Padilha) editou no começo da semana uma portaria sobre esse assunto.
RRR – É curioso. Na verdade, é muito curioso, e digo
isso sem querer ser irônico, não estou usando de ironia ou de cinismo,
de forma alguma. É curioso porque essa é uma questão que há anos vem
sendo debatida e que não tem nada a ver com afetividade. A afirmação de
que a afetividade legitima algum tipo de conhecimento não muda nada no
estado sorológico de uma pessoa. Nesse sentido, é um desdobramento bem
interessante…
Sul21 – Uma mudança de posição, digamos assim.
RRR – E o que fez com que esse padrão fosse
modificado? É isso que acho importante a gente questionar. Saiu alguma
pesquisa? Porque há muitas pesquisas no campo da saúde pública, e há
muitas reivindicações de movimentos sociais ligados à luta contra a
homofobia. Isso é algo que é discutido há muito tempo, e é um ponto que
sempre foi controverso dentro do próprio Ministério da Saúde, que sempre
foi conhecido por ser um ministério bem progressista com relação a
questões de sexualidade. Por exemplo, logo após as primeiras edições das
Paradas Gays o Ministério da Saúde se colocou como financiador, como
parte de uma política de fortalecimento da estima (entre os
homossexuais), como forma de combater a violência e diminuir os índices
de contágio de doenças sexualmente transmissíveis nesse grupo. Então
veja, dentro de um ministério que historicamente sempre foi
progressista, nessa questão da doação de sangue nunca tinha se
conseguido avançar. Então, é extremamente interessante que haja esse
desdobramento.
Sul21 – De qualquer modo, é possível perceber que alguns
setores estão reagindo a essa decisão do STF. Um exemplo está no
material produzido pelo Ministério da Educação, que seria distribuído em
escolas e acabou sendo vetado.
RRR - Sim, e não só nisso, não só no chamado “kit
anti-homofobia”. Há projetos e decretos federativos no Congresso,
articulados por essa chamada bancada evangélica, que desejam não só que o
governo não distribua o kit anti-homofobia, mas também que revogue a
resolução do Conselho Federal de Medicina que tirou a homossexualidade
de seu rol de doenças reconhecidas. Querem revogar essa decisão! Querem
derrubar a portaria do Ministério da Saúde que incluiu, dentro das
atribuições do Sistema Único de Saúde, cirurgias de mudança de sexo. Há
um requerimento da bancada evangélica junto ao Ministério da Justiça
questionando as afirmações do governo de que há muitos registros de
violência homofóbica no país. Entende? Tem uma série de reflexos, de
reações bastante fortes. A própria Presidência da República – de forma
no mínimo infeliz, para não dizer imprudente – desqualificou o trabalho
do Ministério da Educação sem saber do que estava falando…
Sul21 – Eu ia fazer justamente essa pergunta, sobre a posição adotada pela presidente no caso…
RRR - Sim, a presidente da República falou sem
conhecimento, já que os próprios elaboradores da campanha dizem que ela
não viu a campanha como um todo. A campanha sequer tinha sido lançada,
estava iniciando o período de testes para verificar sua eficácia. E uma
campanha que não tem absolutamente nada a ver com propaganda de qualquer
direcionamento sexual! Infelizmente, a coisa foi conduzida de forma
totalmente equivocada. A tensão é muito grande, e acho que essa decisão
acabou colocando ainda mais lenha na fogueira da resistência, acabou
dando ainda mais força a esse movimento de reação.
Sul21 – E qual a posição a ser tomada para consolidar o que já foi conquistado? Como evitar retrocessos?
RRR - Olha, acho importante identificar que tipo de
reação está havendo e em que ela se fundamenta. A partir daí, se for o
caso, e me parece que é o caso, contestar as premissas nas quais se
baseia essa reação. Por exemplo, essas pessoas compreendem de forma
muito equivocada o que é laicidade, porque na verdade não estão propondo
um Estado laico, e sim um Estado cujas políticas sejam baseadas nos
valores de determinadas religiões. Pode ser que se mostre cada vez mais
importante explicitar isso. Também ser mais rigoroso quanto à aferição
de violência e discriminação contra homossexuais do que temos sido até
então. E compreender a decisão do STF não só de forma louvatória – e eu
acho que a decisão deve ser louvada, porque realmente foi muito
importante – mas de uma forma sedimentada e profunda. Crítica até, mas
em um bom sentido, buscando mostrar o tamanho da conquista obtida ao
mesmo tempo em que reforça a necessidade de avançar em pontos que ainda
não foram devidamente atendidos por ela.
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