MST
- Horacio Martins de Carvalho, engenheiro agrônomo e cientista social,
fala em entrevista ao MPA sobre as tarefas estratégicas do campesinato
na construção de sua própria autonomia frente ao agronegócio, além do
papel e do caráter da luta dos movimentos camponeses perante o Estado
brasileiro que é o grande financiador desse modelo de produção
hegemônico.
Horário é membro do Conselho da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, onde também foi presidente.
Quais as tarefas dos camponeses na construção de sua "autonomia" frente ao modelo do agronegócio?
A construção da autonomia relativa dos camponeses perante o capital
tem como uma exigência política que o próprio campesinato seja capaz,
via as suas mediações de representação de interesses (organizações e
movimentos sociais e sindicais), de se constituir como classe social.
Para tanto, é importante, senão indispensável, que compreenda a sua
relação contraditória de classe com as diversas frações de classe do
capital, seja a burguesia bancária, industrial, comercial e/ou agrária.
É na prática cotidiana de enfrentamento do capital que o campesinato
se constrói como classe social. A autonomia relativa do campesinato
perante o capital expressa a possibilidade efetiva dos camponeses de se
reproduzirem socialmente sem dependerem da empresa capitalista, ao menos
na maior parte das suas realizações até que se possa construir um
Estado popular que supra suas necessidades de instrumentos de trabalho
como as máquinas e implementos e amplie o seu contingente de camponeses
pelo acesso à terra via uma reforma agrária popular.
Nessa perspectiva são diversas as tarefas para se alicerçar a
construção da autonomia relativa camponesa perante o capital, este
materializado na burguesia. É recomendável, contudo, se agrupar tais
tarefas em dois níveis: as tarefas estratégicas e as tarefas táticas.
As tarefas estratégicas, em geral de médio e longo prazo, deveriam
ser elaboradas a partir das questões estruturais concernentes com a
reprodução social do campesinato numa formação econômica e social onde o
modo de produção capitalista é dominante e hegemônico. Tais tarefas
estratégicas seriam, então, definidas historicamente pela dinâmica das
relações de classe sociais contraditórias entre o campesinato e as
diversas frações de classe da burguesia (burguesia industrial, bancária,
comercial e agrária).
Nessa perspectiva, os camponeses deveriam se identificar como sendo
uma classe social diferente do proletariado e da burguesia. E a partir
daí serem capazes de definir seus interesses de classe que teriam como
centralidade a reprodução social da família camponesa. Esse interesse
estratégico da classe camponesa é inteiramente distinto do interesse
central da reprodução social capitalista que tem como centralidade o
lucro.
Ao se considerar que há distinção entre a centralidade de reprodução
social da família camponesa e aquela da empresa capitalista no campo (o
lucro), estar-se-ia assumindo que a lógica da reprodução social do
campesinato é inteiramente distinta daquela da empresa capitalista.
Portanto, pode-se afirmar que há uma especificidade camponesa, uma
lógica própria que orienta e conduz a sua reprodução social e é, nessa
perspectiva, distinta e mesmo contrária, à racionalidade de reprodução
social capitalista, esta baseada na exploração do trabalhador
assalariado e, via as trocas comerciais nos mais distintos mercados, do
campesinato.
Dois eixos centrais poderiam orientar as estratégias camponeses,
capazes de construir autonomia relativa o camponês perante o capital: o
primeiro, seria construir uma base recursos autogerida, capaz de tornar o
camponês menos dependente dos insumos de origem industrial (prática de
outro padrão tecnológico); o segundo residiria na relação camponês com a
natureza onde a coevolução estivesse presente (evolui a produção
camponesa mas evolui a natureza no sentido da sua preservação e
melhoramento).
As tarefas táticas seriam aquelas que se estabelecem nas relações
entre o campesinato e o Estado. São as tarefas pautadas pela
reivindicação de políticas públicas favoráveis ao campesinato e o
protesto contra a discriminação dos camponeses no acesso às políticas
públicas e à afirmação de seus direitos como cidadãos. É no exercício
das tarefas táticas que os camponeses acumularão forças para se
constituírem politicamente como classe social.
Qual papel dos movimentos camponeses em uma conjuntura de avanço do Modelo agrícola hegemoneizado pelo Agronegócio?
O papel mais relevante esperado dos movimentos e organizações sociais
e sindicais camponesas é a afirmação da sua especificidade camponesa.
Significa negar que os camponeses não possuem identidade social, mesmo
se contemplando a ampla diversidade de formas de se relacionar tanto com
a natureza como socialmente: proprietários de terras, posseiros,
arrendatários, parceiros, foreiros, etc. Ao afirmarem a sua
especificidade como camponeses, portanto, como famílias que tem como
centralidade no processo de produção a sua reprodução social, sendo ao
mesmo tempo os que decidem sobre a alocação da força de trabalho
familiar e os que usufruem dos resultados obtidos, deixam de se
confundirem com os pequenos burgueses (fração da burguesia) ou como
proletários. São camponeses.
Essa afirmação da especificidade camponesa e da sua construção
política como classe social demanda que o campesinato tenha um projeto
de construção de um outro tipo ou modelo de agricultura para o país. Ao
negarem o modelo agrícola hoje hegemoneizado pelo agronegócio necessitam
afirmar uma outra proposta que nega a atual e construa um novo modelo
de relação homem-natureza e homem-homem.
Nessa perspectiva, as dimensões econômica, política e ideológica
devem estar integradas. Significa dizer que os camponeses, com o apoio
do proletariado rural e urbano, devem ser portadores de uma concepção de
mundo distinta da capitalista. A construção dessa nova proposta é a
tarefa estratégica principal dos movimentos e organizações sociais e
sindicais camponeses. Isso porque sem essa perspectiva de médio e longo
prazo para a luta social camponesa as tarefas táticas tornar-se-ão
dispersas e o acúmulo de forças no sentido da realização dos interesses
de classe dos camponeses (e mais amplamente camponês-proletariado) serão
mínimos e insuficientes para mudarem a correlação de força política de
classe em presença num determinado contexto.
A prática de um outro padrão tecnológico como a da agroecologia é
importante porque proporciona ações imediatas de mudanças no interior da
unidade de produção camponesa, assim como no seu produto, de maneira
que a negação do padrão tecnológico dominante se efetue não apenas na
concepção teórica, mas na prática concreta da produção. Nesse sentido a
produção e renovação dos recursos autogerados (produção interna na
unidade de produção ou na cooperação entre camponeses num território
dado) é de fundamental importância.
Qual deve ser o caráter da luta dos movimentos camponeses frente ao Estado brasileiro que é o grande financiador do agronegócio?
É sempre bom recordar que o Estado é o financiador, assim como a base
política e ideológica de reprodução do agronegócio. Mas, não é o
agronegócio. Ainda que enfrentá-lo, seja no nível das políticas públicas
seja no âmbito do poder legislativo, é por demais importante, não se
deve descuidar da luta direta contra o capital no campo. É uma luta que
se realiza nas diversas dimensões: a econômica (outro padrão tecnológico
e de produção), a política (proposição de outras políticas públicas e
de legislação a favor do camponês) e a ideológica (concepção de mundo e
novo modelo para a relação homem-natureza).
Com relação ao Estado, e em particular com os poderes Executivo e o
Legislativo, é indispensável sempre combinar propostas camponesas com as
reivindicações e os protestos. O eixo da luta é afirmar propostas
econômicas e políticas objetivas de afirmação do campesinato, e se
exigir que os governos as cumpram. Um campesinato, ou suas instituições
de mediação de interesses, que não tenham propostas de políticas
públicas e de legislação para a realização dos seus interesses de
classe, fica sempre a reboque da racionalidade dominante que prevê, num
processo de dominação-hegemonia, políticas sociais para os outros, sejam
eles os camponeses e ou os proletários, no sentido da cooptação pelo
alto e para exercer a dominação.
A reivindicação e o protesto vêm depois de esgotadas as ações de
afirmação das propostas camponesas. Reivindica-se a concretização do que
se sugeriu ou se propôs. E se os governos ou o legislativo não cumprem o
que se havia acordado, é o protesto a forma mais usual. Mas, tudo deve
partir de proposições, sejam elas estruturais sejam conjunturais. As
proposições têm caráter afirmativo, positivo, que educa o próprio
campesinato e faz com que ele se sinta sujeito das ações sugeridas. Elas
constituem um começo que sempre se renova. Reivindicação e protestos
são complementos da ação de proposição. São elos de uma mesma cadeia de
acontecimentos nas relações campesinato com o Estado.
A negação do modo de produção capitalista presente no campo se faz
não apenas pelo discurso sobre o que ele tem de pior, pela exploração
que estabelece nas relações sociais de produção, pela depredação do meio
ambiente e pela oferta de produtos e subprodutos contaminados. A
negação se faz pela afirmação de um novo projeto ou modelo para o campo.
È a proposição que permite a ação positiva de construção de um novo que
nega o dominante.
Diria que, em síntese, o caráter da luta dos movimentos camponeses
perante o Estado deve ser de proposições afirmativas da especificidade
camponesa e das exigências que essa especificidade requer. Afirmar que o
campesinato é uma classe social e que, portanto, têm interesses de
classe que se confronta com os interesses de classe da burguesia. É uma
afirmação portadora de um não à conciliação de classes imposta pelas
classes dominantes e pelo Estado.
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