Luis Alves no A VERDADE
Músicas e flores marcaram no 25 de abril de 1974 aquela que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos.
Às 23h do dia 24, o locutor das
Emissoras Associadas anunciou a canção “E depois do Adeus”. Era a senha
para o décimo Grupo de Comando tomar a RádioClube Portugal (RCP). E a
meia-noite e meia, a Rádio Renascença tocou “Grandola, vila morena,
terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó
cidade”! Era a senha para as demais ações militares que vieram a seguir:
ocupação da Central Telefônica, dos ministérios, da Rádio e Televisão
Portuguesa (RTP).
Quando o sol já brilhava, os capitães de
abril tomaram o Banco de Portugal e logo chegaram ao Quartel do Carmo,
onde se refugiara Marcello Caetano, primeiro-ministro que sucedeu o
arquifascista general Antônio de Oliveira Salazar. Caía quase meio
século (48 anos) de ferrenha ditadura.
Não houve resistência. Os tanques
passearam pelas ruas até os pontos estratégicos que deveriam ser
ocupados. Até paravam nos sinais vermelhos e o povo, que se aglomerou
para apoiar e aplaudir, distribuía flores com os soldados, os famosos
cravos que enfeitaram os fuzis e se tornaram símbolo do movimento
revolucionário. O 25 de abril não entusiasmou apenas o povo português,
mas as forças populares do mundo inteiro. No Brasil, por vivermos ainda
uma ditadura militar do mesmo quilate da portuguesa, e pela ligação
histórica Brasil-Portugal, ele foi saudado com muito entusiasmo. Chico
Buarque, com sua música denunciadora e profética, escreveu: “Sei que
estás em festa, pá! Fico contente e enquanto estou ausente, guarda um
cravo para mim” (Tanto Mar).
Mas para entendermos o levante vitorioso
de abril e os fatos que ocorreram a seguir precisamos recuar bastante
no tempo. Paciência, que na história humana nada acontece por acaso.
De dominado a dominador
Portugal formou-se provavelmente na
Idade do Bronze (2.000 a.C.- 8.000 a.C.), quando povos de origens
diversas, em fluxo migratório, pararam diante do mar na Península
Ibérica e se miscigenaram. Depois vieram as invasões, sucessivamente dos
romanos, bárbaros e muçulmanos.
Não há uma data que marque a
independência do território português e sua constituição enquanto nação
soberana. Foi um processo que se deu a partir do século XII. Há
historiadores que identificam como momento decisivo as batalhas de
1383/1385, que tiveram ampla participação popular e derrotaram
definitivamente os exércitos de Castela (Espanha).
Os portugueses desenvolveram no litoral
intensa atividade pesqueira e aprenderam muito bem a arte da navegação.
Já em 1415, realizou-se a 1ª expedição ao norte da África, conquistando
Ceuta, porta de entrada para uma região rica em cereais. A busca de
novas terras é vista como forma de solucionar os graves problemas
econômicos que atingem o país: desorganização da sociedade rural,
domínio da burguesia comercial, expansão da economia europeia e de seu
mercado consumidor. Para o povo português, representava também a oportunidade de emigrar para conseguir riqueza em outras terras.
Em 1448, as expedições chegaram à Índia,
firmando Portugal como potência naval e comercial. Portugal, entretanto
,não investiu os lucros obtidos no desenvolvimento industrial,
tornando-se um entreposto comercial da Europa e constituiu-se enquanto
império periférico, mantendo uma relação de dependência com o seu
principal cliente, a Inglaterra. Quando se consolida a Revolução
Francesa e a França passa a disputar com os ingleses a supremacia no
continente europeu, Portugal está inteiramente alinhado com a
Inglaterra, com quem mantém intenso comércio com base na produção
agrícola brasileira.
O declínio do império
Em 1807, as tropas francesas
(napoleônicas) invadem Portugal e a Corte se refugiou no Brasil, vivendo
o império português a sua 1ª grande crise.
Com a derrota de Napoleão (1814),
Portugal passou a ser governado por uma Junta de Governadores que
recebia instruções do Rio. A Corte permaneceu no Brasil até 1820 quando
se deu a revolução do Porto, que reduziu os poderes do rei,
estabelecendo uma monarquia constitucional, e exigiu o retorno do Dom
João VI.
A emancipação do Brasil (1822) destruiu
os pilares do comércio português. Para compensar as perdas, o império
volta-se para suas colônias na África.
Com escassa industrialização e extrema
dependência dos mercados externos a crise se agrava a cada dia. Incapaz
de solucioná-las, a monarquia abre espaço para a articulação
republicana, que unia setores médios (intelectualidade, militares) e
setores das massas urbanas.
A república foi proclamada em 5 de
outubro de 1910, por meio de um golpe de Estado, desencadeado a partir
de um atentado que vitimou o rei, D. Carlos e o príncipe Luís Felipe,
herdeiro do trono.
A era republicana começa com a
disseminação das greves operárias contra o alto custo de vida e os
baixos salários. O novo regime respondeu com uma lei de greve patronal e
com repressão ao movimento. A classe operária foi posta à margem da
vida republicana, uma vez que sua proclamação fora obra das elites,
fazendo apenas circular o governo entre frações das classes dominantes. A
primeira república durou até 1926, quando um golpe militar pôs fim à
instabilidade política.
Em 1928, o Governo do general Carmona
convidou para pôr ordem na economia um professor da Universidade de
Coimbra, Antônio Oliveira Salazar. Este acabou assumindo a chefia do
Estado. Com a implantação de rigorosa ortodoxia econômica e implacável
repressão política, o salazarismo unificou as classes dominantes e impôs
uma ditadura de quase meio século (48 anos).
A relação da ditadura salazarista com as
Forças Armadas nunca foi tranqüila, especialmente após a Reforma
Militar de 1937, que subordinou a instituição militar ao chefe do
executivo (Salazar). Várias conjuras militares aconteceram e foram
derrotadas nos anos 50 e 60.
No meio popular, a luta se desenvolvia
em rigorosa clandestinidade. A repressão dizimou centenas de quadros do
Partido Comunista Português (PCP) e de outras organizações de esquerda.
A queda do salazarismo começou na África
com a derrocada do que restava do império colonial português. A
exploração econômica já não compensava mais os custos sempre crescentes
que o Estado português tinha de fazer para enfrentaras guerrilhas de
libertação nacional que impunham cada vez mais derrotas ao império,
especialmente em Moçambique, Angola, e Guiné-Bissau. Em 24 de setembro
de 1973, foi proclamada a independência da Guiné, com o reconhecimento
diplomático de 86 países, fato que demonstrou o isolamento da ditadura
colonialista portuguesa, a essa altura já condenada pela ONU.
A relação deficitária entre a metrópole e
as colônias africanas aguçou a crise econômica interna e a insatisfação
popular com o regime e o colonialismo, identificados como responsáveis
pelo desemprego, os baixos salários e o esvaziamento do campo. Apesar da
ditadura, os trabalhadores não deixaram de lutar e se organizar,
criando as comissões clandestinas nos locais de trabalho e intervindo
também nos sindicatos oficiais. No seio das Forças Armadas, o
descontentamento crescia diante da redução dos gastos, a contabilização
de milhares de soldados mortos no continente africano e a certeza que se
instalava entre os oficiais de que seria impossível uma vitória
militar.
O falecimento de Salazar em 1968, substituído por Marcello Caetano, ex-reitor da Universidade de Lisboa, não alterou o quadro.
A década de 1970 se inicia com o impulso
das lutas operárias, especialmente a partir da 1ª metade de 1973. Daí,
até abril de 1974, mais de cem mil trabalhadores participaram de greves
nos centros industriais, nas grandes, pequenas e médias empresas e nas
zonas agrícolas de Alentejo e Ribatejo. Numerosos sindicatos se
libertaram de direções pelegas, havia um movimento em ascensão, que
preparava um grande ato público para o 1º de maio em Lisboa e outros
centros do país, marcando uma jornada de lutas por melhores salários,
contra a carestia, mas também por liberdades democráticas,contra as
guerras coloniais, por independência e paz. Por seu lado, o governo
fascista articulava uma operação preventiva que no dia 30 de abril
levaria para a prisão ativistas sindicais e populares. Não teve tempo.
Os capitães de abril
Em 9 de setembro de 1973, numa chácara
nos arredores de Évora, nasceu o Movimento dos Capitães ou Movimento das
Forças Armadas (MFA), que propunha o fim do colonialismo e a
democratização da sociedade portuguesa.
Setores mais conservadores das Forças
Armadas planejaram tomar a bandeira dos capitães. Para isso, o general
Antônio Spínola lança o livro Portugal e o Futuro em que defende a
independência progressiva das colônias e sua união em uma “comunidade
lusíada”, com a realização de eleições democráticas.
Os dois grupos acabam se compondo. Isto
garantiu, por um lado, a neutralidade do alto oficialato, permitindo uma
ação incruenta, mas por outro, exigiu concessões no programa político,
como explicou o major Otelo Saraiva de Carvalho: “O General (Spínola)
travava o movimento de abril; os oficiais do movimento acertaram o
programa com o general porque precisavam dele. Então foram feitas muitas
concessões. O programa não saiu como queríamos” (JB, 11/10/74)
Avanços e Recuos
A ação militar vitoriosa de 25 de abril
não foi articulada com o movimento de massas, mas incorporou em parte
seus anseios. Por isso, foi defendida e apoiada, como relatamos no
início, e mais ainda, no Dia do Trabalho. “Foi o maior dos maios. Só
possível por causa de abril. Ali estiveram quase um milhão de
portugueses, sem contar com as muitas centenas de milhares que estiveram
no Porto, Braga, Aveiro, Coimbra, Santarém, Barreiro, Alentejo e outras
centenas de localidades… A palavra de ordem era “O povo, unido, jamais
será vencido”. As exigências eram o fim da guerra colonial, a
restauração das liberdades democráticas e a justiça social”.
O primeiro Governo Provisório,
pós-abril, contemplou todas as forças, sendo palco de disputas e
contradições, mas tomou medidas importantes: congelamento de preços dos
bens de primeira necessidade, instituição do salário mínimo nacional,
reconhecimento do direito de greve e associação. Depois de uma tentativa
de golpe direitista em 11 de março de 1975, Spínola renunciou à
presidência e Vasco Gonçalves assumiu a chefiado Conselho de Ministros.
A esquerda assume o comando da
Revolução. O novo governo toma medidas que implicam profundas mudanças
econômico-sociais: estatização dos bancos e setores estratégicos da
economia como energia, telecomunicações e transporte, além da construção
civil, regulamentação do mercado, realização da reforma agrária no
Alentejo e no Ribatejo.
O patronato promove sabotagens,
desorganiza a atividade econômica, enquanto o Movimento Operário, apesar
de não se desmobilizar, reduz o número de greves. Isso ocorre, segundo
Álvaro Cunhal, secretário Geral do Partido Comunista Português (PCP), em
razão da “elevada consciência política da classe operária e dos demais
trabalhadores”.
Enquanto isso, no interior das Forças
Armadas, a direita se articula. Um grupo de oficiais elabora o documento
dos nove em que condena o radicalismo. Em 2 de setembro de 1975, uma
assembleia do MFA define que a presença de Vasco Gonçalves no governo é
incompatível com a coesão das Forças Armadas. Vasco é demitido.
Em 25 de novembro de 1975, um grupo de
pára-quedistas se subleva, num episódio que nunca foi devidamente
esclarecido. Adireita caracterizou-o como insurreição de esquerda para
tomar o poder. Mas a esquerda define-o como manobra da direita para
justificar a direitização do regime. O fato é que o 25 de novembro
marcou a exclusão da esquerda do MFA. Oficiais e soldados considerados
radicais foram expulsos, licenciados, presos e transferidos para a
reserva.
Em 26 de fevereiro de 1976, eliminado a
componente radical da revolução, novo acordo MFA- partidos políticos pôs
Portugal na senda da democracia burguesa. Aos poucos, as conquistas da
revolução dos Cravos foram eliminadas e o país integrou-se como sócio
menor à União Europeia, sob a dependência dos monopólios capitalistas.
A ferrenha censura proibiu a música de
Chico Buarque em homenagem à Revolução de Abril em 1974. Quando foi
liberada na vigência da “abertura lenta, gradual e segura”, ele teve que
refazer a letra que se imortalizou: “já murcharam tua festa, pá, mas
certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim.”
Luiz Alves
(Publicado no Jornal A Verdade, nº 60)
(Publicado no Jornal A Verdade, nº 60)
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