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domingo, 19 de junho de 2011

Árabes, muçulmanas e emancipadas

O Brasil de Fato relata a participação feminina na sociedade e na luta pela independência





Igor Ojeda eTatiana Merlino

 Smara (Saara Ocidental)
e Madri (Espanha) via BRASIL DE FATO

Quase todos os dias, Dajna é a primeira a se levantar. Antes do restante de sua família acordar, lava a louça do dia anterior e prepara o pão para o café da manhã. Durante o dia, cuida dos afazeres domésticos em geral. Lava a roupa, faz o almoço, o jantar. Muitas vezes, conta com a ajuda da filha e da cunhada, mas é ela a dona da casa, quem dá a ordem final. Por recomendação médica para enfrentar a diabete de que sofre, diariamente sai para caminhar. Duas ou três vezes por semana, trabalha na oficina de tear de sua comunidade, confeccionando bolsas, tapetes e panos para vender.
Essa senhora de 50 anos já casou duas vezes e teve cinco filhos. Viúva do primeiro marido, divorciada do segundo, foi obrigada a criar a prole sozinha. Além disso, se “provocada”, emite opiniões firmes sobre as mais variadas questões, nacionais ou internacionais. Dajna Laman Merhi é um bom exemplo de mulher saaraui, como é chamado o natural do Saara Ocidental, país do noroeste da África ocupado há 35 anos pelo vizinho Marrocos (leia mais detalhes sobre a ocupação nas edições anteriores do Brasil de Fato).
Dajna não vive, no entanto, sob a ocupação. Em 1975, quando a monarquia marroquina enviou 350 mil soldados para invadir o território saaraui, prestes a ser deixado pela Espanha, a então colonizadora, ela e alguns parentes – juntamente com cerca de 150 mil conterrâneos – fugiram pelo meio do deserto do Saara e se instalaram no sudoeste da Argélia, onde, nos arredores da cidade de Tindouf, foram erguidos cinco campos de refugiados, que existem até hoje. Dajna vive, com três de seus filhos – os dois mais velhos moram no exterior – no campo 27 de Febrero, que, originalmente, era uma escola de mulheres.
Como milhares de outras saarauis, ela foi uma das responsáveis, ao longo de mais de uma década, pela construção de um país no exílio, já que a maioria dos homens estava na guerra, que durou até 1991. Saúde, educação, água, alimentação, toda a administração dos campos de refugiados ficou a cargo das mulheres, que, ainda hoje, mantêm uma importante participação na sociedade e na política saaraui.

“Exemplo de emancipação”
“Dentro do estereótipo que o Ocidente faz do mundo islâmico e árabe, somos um exemplo de emancipação, pois viemos de um povo em que a mulher sempre foi considerada e respeitada”, explica Zahra Ramdán Ahmed, fundadora e presidenta da Associação de Mulheres Saarauis na Espanha.
Os saarauis são originários de uma sociedade beduína e nômade. Nela, enquanto os homens se ocupavam de tocar o gado, caçar e pescar, eram as mulheres que administravam a economia doméstica, no sentido mais político do termo. E a religião nunca foi um impeditivo a essa atuação ativa.
“A religião tem muito a ver com a cultura. A sociedade saaraui e mauritana possuem uma cultura muito aberta, tolerante, e tem sua forma de praticar o islã. Quando o estudamos, podemos ver muitas coisas interessantes, como uma igualdade real de gênero. A religião nunca nos impediu de fazer nada do que queremos”, explica Fatma Mehdi, secretária-geral da União Nacional de Mulheres Saarauis (UNMS).
A mulher saaraui é sempre ouvida. Pode se divorciar e se casar quantas vezes desejar. Tem o direito de trabalhar, viajar, divertir-se. E não é obrigada a cobrir todo o corpo, embora muitas vezes o faça por questões culturais e religiosas.
“A sociedade beduína é aberta, onde todos vivem e trabalham juntos, sempre com respeito à mulher. Não há violência doméstica. Ela tem sua opinião e participação. É uma característica da nossa sociedade de origem, mas de uma maneira espontânea, tradicional”, esclarece Khadija Hamdi, ministra da Cultura da República Árabe Saaraui Democrática, a Rasd, o governo saaraui no exílio.
Todas concordam, porém, que a divisão de “tarefas” na realidade da guerra ajudou para que essa participação alcançasse o nível da política, pois o papel de administradoras dos campos de refugiados fez com que as mulheres demonstrassem sua capacidade na área. “Não creio que existiam mulheres nos conselhos que havia na organização antiga, mas, graças à Frente Polisario, elas passaram a ter maior participação política”, opina Fatma.

Educação e voto

A Frente Polisario (Frente Popular de Libertação de Saguia El Hamra e Río del Oro) é, desde 1973, o movimento que reúne os independentistas saarauis e espécie de partido único que governa a Rasd até que se conquiste a independência. Embora sua direção ainda seja formada majoritariamente por homens, seu trabalho pelo empoderamento das mulheres é reconhecido por elas.
“A Frente Polisario fez esforços para que nossas mulheres se preparassem intelectualmente e profissionalmente para que pudessem reivindicar seus direitos como pessoas. Esse protagonismo se consolidou, sobretudo, com a educação. No começo dos campos de refugiados, em 1975, 70% das mulheres não sabiam ler nem escrever. Foram realizadas campanhas de alfabetização para as mulheres e erradicamos o analfabetismo”, conta Zahra Randám.
No entanto, ela faz a ressalva de que ainda há muito o que avançar. “É preciso não apenas libertar o Saara Ocidental, mas fazer com que as mulheres estejam nos lugares de tomada de decisões”. Hoje, há apenas duas mulheres nos ministérios e elas ainda não atingiram a metade do número de cargos eletivos.

“No Parlamento, somos 34%. Nos níveis de gestão das whilayas [províncias] e dairas [municípios], representamos 24%. Nos conselhos locais [câmeras de vereadores], compostos por 12 pessoas, 11 são mulheres, mas o prefeito é um homem. E são elas que o elegem”, explica Fatma.
Segundo ela, muitas mulheres ainda não valorizam o direito ao voto ou votam em candidatos homens. É o preço a ser pago pelo “feminismo” de algumas ações do governo saaraui. “Quando você conquista algo sem haver lutado, você não o valoriza devidamente. A Frente Polisario, desde o princípio, estava mais consciente e propôs essas políticas. A mulheres não lutaram para conseguir o direito ao voto e a consequência é que muitas não se interessam pela política e acham que sempre vão ter esse direito”, alerta a secretária-geral da UNMS.

Apatia
Estamos na sede da organização, localizada no campo de refugiados 27 de Febrero. Depois da conversa, Fatma nos leva para conhecer o espaço. Ela explica o que funciona em cada cômodo: curso de espanhol, de computação, aulas de pintura etc., além de uma pequena quadra poliesportiva. Nas paredes da casa, diversas frases feministas. “O trabalho na jaima também é de homens. Todos a compartilhar o trabalho!”, diz uma delas.
Enorme tenda de pano verde sustentada por dois grossos e altos bambus, a jaima é onde ocorre a sociabilidade saaraui. Principalmente nos campos de refugiados no sudoeste da Argélia, onde quase não há empregos e onde se espera por uma solução ao conflito com o Marrocos, é na jaima que a vida acontece. Embora todos passem boa parte do dia nela, são as mulheres suas maiores frequentadoras: é onde costuram, veem televisão, conversam, tomam o tradicional chá verde.
“Estar nas jaimas o tempo todo é morrer, pois não há nada para fazer lá. É uma pena deixar que as jovens fiquem o dia inteiro tomando chá, sem aprender nada”, lamenta Fatma, relacionando essa realidade com a falta de consciência e participação política de muitas delas.
“Há, também, outro obstáculo, que é o cansaço. Como os homens estavam na guerra, e muitos morreram nela, as mulheres ficaram sozinhas como chefes de família numerosas. Aqui, costuma-se dizer que, se uma mulher tem filhos, é muito difícil que tenha papel político. Além disso, há também a situação econômica, porque estamos falando de uma sociedade que depende totalmente das ajudas internacionais”, acrescenta.

Embranquecimento

Quando estão na jaima, as mulheres saarauis se enrolam, por cima da roupa, com um grande pano chamado melfa. Especialmente na presença de algum homem que não seja da família, apenas o rosto e as mãos ficam de fora. Quando saem às ruas, em geral vestem luvas e cobrem o rosto com outro pano. Nesse caso, contam elas, a questão não é apenas cultural ou religiosa, mas de estética. Para as saarauis, o bonito é ter a pele mais clara, distinta à da cor mais curtida característica dos povos árabes de maneira geral. Por isso, fazem o possível para se protegerem dos raios do forte sol do deserto do Saara.
O desejo de copiar o padrão de beleza ocidental – muito por causa do apelo midiático, já que quase todas as casas dos campos de refugiados têm parabólicas – no entanto, traz problemas. Fatma conta que, muitas vezes, as saarauis usam cremes para embranquecer a pele provenientes da Mauritânia e do Senegal, que não possuem controle de qualidade e que, segundo ela, causam câncer.

domingo, 29 de maio de 2011

Aborto seletivo pode explicar déficit de 8 milhões de meninas na Índia

A India e suas contradições: espiritualismo x materialismo; alta tecnologia x pobreza extrema; humanidade x consumismo...

Famílias forçam mães a abortar os bebês após exames confirmando sexo feminino
Moncho Torres/24.05.2011/EFEMoncho Torres/24.05.2011/EFE

Nas últimas três décadas, houve 12 milhões de abortos seletivos de fetos femininos na Índia
A indiana Kulwant (aqui chamada por um nome fictício, por razões legais) tem três filhas com idades de 24, 23 e 20 anos e um filho com 16 anos.
No período entre os nascimentos da terceira menina e do menino, Kulwant engravidou três vezes, mas foi forçada pela família a abortar os bebês após exames de ultrassom terem confirmado que eram do sexo feminino.
O caso ilustra um problema cada vez mais sério na Índia: o censo de 2011 no país revelou um forte declínio no número de meninas com menos de sete anos.
Militantes que fazem campanha para que a prática de abortar meninas seja abandonada temem que oito milhões de fetos do sexo feminino tenham sido abortados na última década. Para alguns, o que acontece hoje na Índia é infanticídio.
Emocionada, Kulwant disse que a sogra a "insultava por eu ter tido apenas meninas. Ela disse que seu filho ia se divorciar de mim se eu não tivesse um menino".
Ela contou que tem vívidas lembranças do primeiro aborto.
- O bebê já tinha quase cinco meses. Ela era linda. Eu tenho saudades dela e das outras que matamos.

Indesejadas

Até o nascimento do filho, todos os dias, Kulwant levava surras e ouvia xingamentos do marido, sogra e cunhado. Uma vez, segundo ela, o grupo tentou colocar fogo nela.
- Eles estavam com raiva. Não queriam meninas na família, queriam meninos para que pudessem receber bons dotes.
A prática de pagar dotes foi declarada ilegal na Índia em 1961, mas o problema persiste e o valor do dote sobe constantemente, afetando ricos e pobres.
O marido de Kulwant morreu três anos após o nascimento do filho.
- Foi praga por causa das meninas que matamos. Por isso ele morreu tão jovem.
A vizinha de Kulwant, Rekha (nome fictício), tem uma menina de três anos de idade. Em setembro do ano passado, quando ficou grávida novamente, foi forçada pela sogra a abortar dois gêmeos após um exame de ultrassom revelar que eram meninas.
- Eu disse que não há diferença entre meninas e meninos, mas aqui eles pensam de outra forma. Não há felicidade quando nasce uma menina. Eles dizem que o menino vai carregar a linhagem adiante, mas meninas se casam e vão para uma outra família.
Kulwant e Rekha vivem em Sagarpur, uma região de classe média-baixa no sudeste de Nova Déli.

Bebê Milagre

Longe dali, na cidadezinha de Bihvarpur, no Estado de Bihar, a bebê Anuskha - a mais jovem de quatro meninas - sobreviveu por pouco.
Quando sua mãe, Sunita Devi, ficou grávida em 2009, foi a uma clínica para fazer um exame de ultrassom.
- Perguntei ao médico se era menina ou menino. Eu disse a ela que era pobre e que tinha três meninas, e não podia tomar conta de mais uma.
A médica disse que o bebê era do sexo feminino.
- Pedi um aborto. Ela disse que ia custar US$ 110.
Sunita não tinha o dinheiro e não fez o aborto. Hoje, Anushka tem nove meses de idade. A mãe diz que não sabe como vai alimentar e educar as filhas, ou pagar por seus dotes.
A história dessas mulheres se repete em milhões de lares em toda a Índia, afetando ricos e pobres. Porém, quanto maior o poder econômico da família, menores são as chances de que "milagres" como o de Anushka se repitam.

Números

Embora o número total de mulheres tenha aumentado no país - devido a fatores como um aumento na expectativa de vida - a proporção entre o número de meninas e o de meninos no país é a segunda pior do mundo, só ficando atrás da China.
Em 1961, para cada mil meninos com menos de sete anos de idade, havia na Índia 976 meninas. Hoje, o índice nacional caiu para 914 meninas. Os números são piores em algumas localidades.
Em um distrito na região sudoeste de Nova Déli, o índice é de 836 meninas com menos de sete anos para cada mil meninos. A média em toda a capital não é muito melhor, 866 meninas para cada mil meninos.
Os dois Estados com os piores índices, Punjab e Haryana, são vizinhos da capital. Nesses locais, no entanto, houve alguma melhora em comparação com censo anterior.
O censo recente revelou pioras nos índices de 17 Estados, com as piores quedas registradas em Jammu e Kashmir.

'Vergonha Nacional'

Especialistas atribuem o problema a uma série de fatores, entre eles, infanticídio, abuso e negligência de crianças do sexo feminino.
O governo indiano foi forçado a admitir que sua estratégia para combater o problema falhou, disse o ministro da Fazenda do país, G.K. Pillai, após a publicação do relatório do censo.
- Quaisquer que tenham sido as medidas adotadas nos últimos 40 anos, elas não tiveram nenhum impacto sobre os números.
O primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, qualificou o aborto de fetos do sexo feminino e o infanticídio como uma "vergonha nacional" e pediu que haja uma cruzada para salvar bebês meninas.
O mais conhecido ativista indiano a fazer campanhas sobre o assunto, Sabu George, disse, no entanto, que até o momento o governo não se empenhou verdadeiramente em parar com a prática.
Para George e outros militantes, o declínio no número de meninas se deve, principalmente, à disponibilidade cada vez maior, na Índia, de exames pré-natais para a determinação do sexo do bebê.

Controle da Natalidade

George explicou que, até 30 anos atrás, os índices eram "razoáveis". Porém, em 1974, o prestigioso All India Institute of Medical Sciences publicou um estudo que dizia que testes para a determinação do sexo do bebê eram uma benção para as mulheres indianas.
Para o instituto, as mulheres não precisavam mais ter vários bebês para atingir o número certo de filhos homens. A entidade encorajou a determinação e eliminação de fetos do sexo feminino como um instrumento efetivo de controle populacional.
- No final da década de 80, todos os jornais de Nova Déli estavam anunciando ultrassons para a determinação de sexo. Clínicas do Punjab se gabavam de que tinham dez anos de experiência em eliminar meninas e convidavam os pais a visitá-las.
Em 1994, o o Ato Teste de Determinação Pré-Natal tornou abortos para a seleção do sexo ilegais. Em 2004, a lei recebeu uma emenda proibindo a seleção do sexo do bebê mesmo no estágio anterior à concepção.
O aborto de forma geral é permitido até as primeiras 12 semanas de gravidez. O sexo do feto só pode ser determinado por ultrassom após cerca de 14 semanas.
"O que é necessário é uma implementação mais severa da lei", disse Varsha Joshi, diretora de operações do censo em Nova Déli.
Existem hoje na Índia 40 mil clínicas de ultrassom registradas e muitas mais sem registro. Segundo Joshi, a maioria das famílias envolvidas na prática pertence à classe média indiana, hoje em expansão, e à elite econômica do país. Para ela, esses grupos sabem que a tecnologia existe e tem condições de pagar pelo teste e subsequente aborto.
"Temos de adotar medidas efetivas para controlar a promoção da determinação do sexo pela comunidade médica. E abrir processos contra médicos que fazem isso", disse o ativista Sabu George.
- Caso contrário, temos medo de pensar em como será a situação em 2021.

Modelo a Ser Seguido?

Alguns Estados indianos, no entanto, vêm criando iniciativas que podem, talvez, servir de modelo para os demais.
É o caso do Estado de Bihar, onde famílias de baixa renda estão participando do Esquema de Proteção da Menina.
Como parte do programa, o Estado investe duas mil rúpias (cerca de R$ 70) em um fundo aberto no nome da criança. O dinheiro cresce ao longo da vida da menina. Quando ela completa 18 anos, segundo as autoridades, o fundo vale dez vezes mais e pode ser usado para pagar pelo casamento ou pela educação universitária da menina.
O programa está disponível apenas para os que vivem abaixo da linha da pobreza e cada família pode registrar apenas duas filhas.
A iniciativa, anunciada em novembro de 2007, é parte de um plano do governo para tornar bebês meninas desejadas e, ao mesmo tempo, tornar atraente a ideia de uma família pequena.
Infelizmente, o programa não pode ajudar Anushka, o "bebê milagre". Sua mãe é analfabeta e ela não tem certidão de nascimento, então não pode participar do esquema.

Fonte: BBC Brasil