A India e suas contradições: espiritualismo x materialismo; alta tecnologia x pobreza extrema; humanidade x consumismo...
Famílias forçam mães a abortar os bebês após exames confirmando sexo feminino
Moncho Torres/24.05.2011/EFE
Nas últimas três décadas, houve 12 milhões de abortos seletivos de fetos femininos na Índia
A indiana Kulwant (aqui chamada por um nome fictício, por
razões legais) tem três filhas com idades de 24, 23 e 20 anos e um
filho com 16 anos.
No período entre os nascimentos da terceira menina e do menino,
Kulwant engravidou três vezes, mas foi forçada pela família a abortar os
bebês após exames de ultrassom terem confirmado que eram do sexo
feminino.
O caso ilustra um problema cada vez mais sério na Índia: o censo de
2011 no país revelou um forte declínio no número de meninas com menos de
sete anos.
Militantes que fazem campanha para que a prática de abortar meninas
seja abandonada temem que oito milhões de fetos do sexo feminino tenham
sido abortados na última década. Para alguns, o que acontece hoje na
Índia é infanticídio.
Emocionada, Kulwant disse que a sogra a "insultava por eu ter tido
apenas meninas. Ela disse que seu filho ia se divorciar de mim se eu não
tivesse um menino".
Ela contou que tem vívidas lembranças do primeiro aborto.
- O bebê já tinha quase cinco meses. Ela era linda. Eu tenho saudades dela e das outras que matamos.
Indesejadas
Até o nascimento do filho, todos os dias, Kulwant levava surras e
ouvia xingamentos do marido, sogra e cunhado. Uma vez, segundo ela, o
grupo tentou colocar fogo nela.
- Eles estavam com raiva. Não queriam meninas na família, queriam meninos para que pudessem receber bons dotes.
A prática de pagar dotes foi declarada ilegal na Índia em 1961, mas o
problema persiste e o valor do dote sobe constantemente, afetando ricos
e pobres.
O marido de Kulwant morreu três anos após o nascimento do filho.
- Foi praga por causa das meninas que matamos. Por isso ele morreu tão jovem.
A vizinha de Kulwant, Rekha (nome fictício), tem uma menina de três
anos de idade. Em setembro do ano passado, quando ficou grávida
novamente, foi forçada pela sogra a abortar dois gêmeos após um exame de
ultrassom revelar que eram meninas.
- Eu disse que não há diferença entre meninas e meninos, mas aqui
eles pensam de outra forma. Não há felicidade quando nasce uma menina.
Eles dizem que o menino vai carregar a linhagem adiante, mas meninas se
casam e vão para uma outra família.
Kulwant e Rekha vivem em Sagarpur, uma região de classe média-baixa no sudeste de Nova Déli.
Bebê Milagre
Longe dali, na cidadezinha de Bihvarpur, no Estado de Bihar, a bebê
Anuskha - a mais jovem de quatro meninas - sobreviveu por pouco.
Quando sua mãe, Sunita Devi, ficou grávida em 2009, foi a uma clínica para fazer um exame de ultrassom.
- Perguntei ao médico se era menina ou menino. Eu disse a ela que era
pobre e que tinha três meninas, e não podia tomar conta de mais uma.
A médica disse que o bebê era do sexo feminino.
- Pedi um aborto. Ela disse que ia custar US$ 110.
Sunita não tinha o dinheiro e não fez o aborto. Hoje, Anushka tem
nove meses de idade. A mãe diz que não sabe como vai alimentar e educar
as filhas, ou pagar por seus dotes.
A história dessas mulheres se repete em milhões de lares em toda a
Índia, afetando ricos e pobres. Porém, quanto maior o poder econômico da
família, menores são as chances de que "milagres" como o de Anushka se
repitam.
Números
Embora o número total de mulheres tenha aumentado no país - devido a
fatores como um aumento na expectativa de vida - a proporção entre o
número de meninas e o de meninos no país é a segunda pior do mundo, só
ficando atrás da China.
Em 1961, para cada mil meninos com menos de sete anos de idade, havia
na Índia 976 meninas. Hoje, o índice nacional caiu para 914 meninas. Os
números são piores em algumas localidades.
Em um distrito na região sudoeste de Nova Déli, o índice é de 836
meninas com menos de sete anos para cada mil meninos. A média em toda a
capital não é muito melhor, 866 meninas para cada mil meninos.
Os dois Estados com os piores índices, Punjab e Haryana, são vizinhos
da capital. Nesses locais, no entanto, houve alguma melhora em
comparação com censo anterior.
O censo recente revelou pioras nos índices de 17 Estados, com as piores quedas registradas em Jammu e Kashmir.
'Vergonha Nacional'
Especialistas atribuem o problema a uma série de fatores, entre eles,
infanticídio, abuso e negligência de crianças do sexo feminino.
O governo indiano foi forçado a admitir que sua estratégia para
combater o problema falhou, disse o ministro da Fazenda do país, G.K.
Pillai, após a publicação do relatório do censo.
- Quaisquer que tenham sido as medidas adotadas nos últimos 40 anos, elas não tiveram nenhum impacto sobre os números.
O primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, qualificou o aborto de
fetos do sexo feminino e o infanticídio como uma "vergonha nacional" e
pediu que haja uma cruzada para salvar bebês meninas.
O mais conhecido ativista indiano a fazer campanhas sobre o assunto,
Sabu George, disse, no entanto, que até o momento o governo não se
empenhou verdadeiramente em parar com a prática.
Para George e outros militantes, o declínio no número de meninas se
deve, principalmente, à disponibilidade cada vez maior, na Índia, de
exames pré-natais para a determinação do sexo do bebê.
Controle da Natalidade
George explicou que, até 30 anos atrás, os índices eram "razoáveis".
Porém, em 1974, o prestigioso All India Institute of Medical Sciences
publicou um estudo que dizia que testes para a determinação do sexo do
bebê eram uma benção para as mulheres indianas.
Para o instituto, as mulheres não precisavam mais ter vários bebês
para atingir o número certo de filhos homens. A entidade encorajou a
determinação e eliminação de fetos do sexo feminino como um instrumento
efetivo de controle populacional.
- No final da década de 80, todos os jornais de Nova Déli estavam
anunciando ultrassons para a determinação de sexo. Clínicas do Punjab se
gabavam de que tinham dez anos de experiência em eliminar meninas e
convidavam os pais a visitá-las.
Em 1994, o o Ato Teste de Determinação Pré-Natal tornou abortos para a
seleção do sexo ilegais. Em 2004, a lei recebeu uma emenda proibindo a
seleção do sexo do bebê mesmo no estágio anterior à concepção.
O aborto de forma geral é permitido até as primeiras 12 semanas de
gravidez. O sexo do feto só pode ser determinado por ultrassom após
cerca de 14 semanas.
"O que é necessário é uma implementação mais severa da lei", disse Varsha Joshi, diretora de operações do censo em Nova Déli.
Existem hoje na Índia 40 mil clínicas de ultrassom registradas e
muitas mais sem registro. Segundo Joshi, a maioria das famílias
envolvidas na prática pertence à classe média indiana, hoje em expansão,
e à elite econômica do país. Para ela, esses grupos sabem que a
tecnologia existe e tem condições de pagar pelo teste e subsequente
aborto.
"Temos de adotar medidas efetivas para controlar a promoção da
determinação do sexo pela comunidade médica. E abrir processos contra
médicos que fazem isso", disse o ativista Sabu George.
- Caso contrário, temos medo de pensar em como será a situação em 2021.
Modelo a Ser Seguido?
Alguns Estados indianos, no entanto, vêm criando iniciativas que podem, talvez, servir de modelo para os demais.
É o caso do Estado de Bihar, onde famílias de baixa renda estão participando do Esquema de Proteção da Menina.
Como parte do programa, o Estado investe duas mil rúpias (cerca de R$
70) em um fundo aberto no nome da criança. O dinheiro cresce ao longo
da vida da menina. Quando ela completa 18 anos, segundo as autoridades, o
fundo vale dez vezes mais e pode ser usado para pagar pelo casamento ou
pela educação universitária da menina.
O programa está disponível apenas para os que vivem abaixo da linha da pobreza e cada família pode registrar apenas duas filhas.
A iniciativa, anunciada em novembro de 2007, é parte de um plano do
governo para tornar bebês meninas desejadas e, ao mesmo tempo, tornar
atraente a ideia de uma família pequena.
Infelizmente, o programa não pode ajudar Anushka, o "bebê milagre".
Sua mãe é analfabeta e ela não tem certidão de nascimento, então não
pode participar do esquema.
Fonte: BBC Brasil
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