Carlos Lopes Pereira
«Desde
o tempo das chamadas descobertas ou achamentos até ao tempo do comércio
de escravos e crimes da escravatura; desde as guerras de conquista
colonial até à época de ouro do colonialismo; das primeiras “reformas”
ultramarinas até às guerras coloniais de genocídio dos nossos dias, os
colonialistas portugueses deram sempre provas de uma mentalidade
supersticiosa e dum racismo primitivo em relação ao homem africano, que
consideravam e consideram como naturalmente inferior, incapaz de
organizar a sua vida e defender os seus interesses, fácil de enganar,
sem cultura e sem civilização».
Amílcar Cabral, 1971
Ao longo da guerra de libertação nacional, o Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o seu líder, Amílcar
Cabral, denunciaram repetidas vezes – em declarações públicas, em
mensagens, em relatórios, em comunicados de imprensa, em documentos
apresentados à Organização das Nações Unidas e à Organização da Unidade
Africana – aquilo que consideravam ser crimes cometidos pelos
colonialistas portugueses na Guiné. E não se limitaram a denunciar,
apresentaram provas: recolheram declarações de vítimas de torturas e
ferimentos, mostraram fragmentos de bombas «napalm», promoveram
testemunhos de jornalistas, cineastas, escritores, delegações de
organizações e países e outros observadores insuspeitos.
Com base na leitura de documentos publicados pelo PAIGC, sobretudo
intervenções de Amílcar Cabral, para o caso da Guiné, são inúmeros os
exemplos desses crimes atribuídos ao colonialismo português.
«O “apartheid” à portuguesa»
– Em Junho de 1960,
numa brochura publicada em Londres, intitulada «The facts about
Portugal’s african colonies», com prefácio do jornalista e historiador
Basil Davidson, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral, explicava à
opinião pública europeia a situação dos 11 milhões de africanos
submetidos à dominação colonial portuguesa. Afirmava que apesar das
riquezas naturais existentes em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e
São Tomé e Príncipe, «os africanos têm um nível de vida inferior ao
mínimo vital» e «a sua situação é de servos no seu próprio país».
Lembrava que depois do tráfico de escravos, a conquista pelas armas e as
guerras coloniais «de pacificação», veio a destruição completa das
estruturas económicas e sociais da sociedade africana. Seguiu-se a fase
de ocupação europeia e o povoamento crescente, a partir de finais do
século XIX e, no caso da Guiné, até 1936, quando terminaram as guerras
de «pacificação»: as terras e os haveres dos africanos foram pilhados,
os portugueses impuseram a «taxa de soberania» e tornaram obrigatória a
cultura de certos géneros (na Guiné, através da Companhia União Fabril
(CUF), foi imposta a cultura da mancarra); instituíram o trabalho
forçado e organizaram a deportação de trabalhadores, os «contratados».
Denunciando a ideologia racista do estatuto indígena
–
imposto no início da década de 30 do século XX por Salazar e só
formalmente abolido em 1961, por Adriano Moreira, então ministro do
Ultramar do regime fascista – Cabral ridicularizava «a ideia de criar
uma “sociedade multirracial” nas colónias, baseada legalmente no
estatuto indígena», «na realidade o “apartheid” à portuguesa». E
comentava: «99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é
considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é
considerada assimilada. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o
estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade económica e
gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da
população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos,
cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o
português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais
de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de
“assimilado”»1…
Onda de repressão e terror
– Nesse ano de 1960, já
em Conakry, na República da Guiné – onde instalou o secretariado-geral
do PAIGC e obteve apoios do Partido Democrático da Guiné (PDG) e do
presidente Sékou Touré –, Amílcar Cabral enviou, em panfletos, mensagens
aos funcionários públicos e empregados comerciais guineenses e
cabo-verdianos, aos militares guineenses e cabo-verdianos (oficiais
sargentos e soldados obrigados a servir no exército colonial português),
aos jovens da Guiné e Cabo Verde e até aos colonos portugueses nos dois
territórios, convidando-os a juntarem-se à luta de libertação nacional,
denunciando os colonialistas que «perseguem, prendem, torturam,
massacram, reforçam cada vez mais as suas forças armadas e preparam-se
cinicamente para continuar a afogar em sangue todas as tentativas de
libertação por parte dos nossos povos»2.
A 1 de Dezembro de 1960, o PAIGC dirigiu um memorando ao governo
português propondo o «reconhecimento solene e imediato dos direitos dos
povos guineense e cabo-verdiano à autodeterminação» (uma solução
política, como alternativa à guerra, foi sempre defendida pelo partido
até à vitória). Nesse documento, Amílcar Cabral lembrava que «depois do
massacre do cais de Pidjiguiti (Bissau, 3 de Agosto de 1959), no qual
militares e civis portugueses mataram a tiro dezenas de trabalhadores
guineenses em greve, uma onda de repressão e terror, planeada e
comandada pela PIDE, veio tornar mais dura a vida e a luta do povo da
Guiné». E denunciava que, «a par disso, a administração colonial
conseguiu, com o aumento da exportação do arroz [a base da alimentação
dos guineenses], criar mais uma arma de opressão – a fome –, que castiga
actualmente uma grande parte do povo guineense»3.
A 3 de Agosto de 1961, o PAIGC proclama a passagem da «revolução
nacional» na Guiné «da fase da luta política à da insurreição nacional, à
acção directa contra as forças colonialistas», embora reiterando ainda,
três meses depois, numa nota aberta ao governo de Lisboa, a proposta de
aceitação por Portugal do princípio de autodeterminação dos povos da
Guiné e Cabo Verde – nota a que Salazar nem se dignou responder.
«Napalm» sobre as tabancas – Num relatório de finais de 1963, de
balanço da luta armada, entretanto desencadeada na Guiné em Janeiro
desse ano, o PAIGC retoma a denúncia dos crimes dos colonialistas:
«Alarmadas perante a intensificação da nossa acção, as forças
portuguesas desencadearam em todo o país, mas sobretudo no Sul, a mais
violenta repressão militar e policial contra as nossas populações,
principalmente contra todos os suspeitos de pertencerem ao nosso
Partido. Aprisionaram, torturaram e assassinaram patriotas, massacraram
populações sem defesa e incendiaram as tabancas [aldeias]». E mais:
«Desesperados perante as vitórias alcançadas pelo nosso povo tanto no
interior do país como no plano exterior, os colonialistas portugueses
enviaram para a Guiné grandes reforços de material de guerra e de
soldados, cujos efectivos são actualmente da ordem dos 18 a 20.000
homens (cerca de 1.000 em 1959, 5.000 em 1961, 10.000 em 1962).
Recorreram então intensivamente aos únicos meios ao seu alcance para
tentar deter a nossa luta: os bombardeamentos massivos das nossas
tabancas e das nossas populações, sobretudo com as bombas “napalm”, e as
tentativas de ataques às nossas posições, a partir de unidades navais
colocadas nos braços de mar e nos rios das regiões litorais. Mais de uma
centena de tabancas foram destruídas (total ou parcialmente) pelos
bombardeamentos aéreos que fizeram vítimas inocentes, de que a maioria é
constituída por velhos, mulheres e crianças»4.
Mas nem só destas acções se fazia a guerra: «Por outro lado, os
colonialistas portugueses, enquanto gastam somas fabulosas para subornar
alguns chefes tradicionais e para conservar a colaboração de um número
cada vez mais reduzido de mercenários e traidores, procedeu à difusão
aérea de panfletos nos quais as ameaças de destruição total das nossas
populações e dos nossos bens materiais pelo bombardeamento e pelo fogo
se sucedem às frases de adulação (…)»5.
Em 1964
– ano do I Congresso do PAIGC em Cassacá,
nas regiões libertadas do Sul, ano da Batalha do Como (até então «a mais
dura derrota da história colonial portuguesa e as [suas] mais pesadas
baixas em vidas humanas»), ano da criação das Forças Armadas
Revolucionárias do Povo –, um relatório sobre o desenvolvimento da luta
armada dá conta da «liquidação das manobras do inimigo tendentes a
dividir e desmobilizar o nosso povo pela criação de movimentos
fantoches»6, uma prática que os colonialistas vão repetir
posteriormente.
Afinal, quem eram os terroristas?
– Em 7 de
Dezembro de 1966, um relatório da luta do PAIGC apresenta mais
novidades. Os colonialistas nomearam um novo governador, o general
Schultz, ido de Angola, «o sexto chefe do estado-maior português [na
Guiné] depois do desencadear da luta armada»7, e as tropas portuguesas
totalizavam já 25.000 homens (tropas de terra, mar e ar, polícia e
corpos armados especiais), um aumento de 25 vezes em relação ao número
de soldados estacionados no início da década, num território com 36.000
quilómetros quadrados e 800.000 habitantes.
Amílcar Cabral denuncia manobras políticas dos colonialistas
«visando desmobilizar os patriotas e enganar a opinião africana e
mundial promulgando falsas “reformas” administrativas»8, acusa os
colonialistas de criarem «pretensos movimentos autonomistas» e constata a
intensificação da «repressão policial que presentemente atinge não só
os patriotas mas também pessoas que eram consideradas favoráveis ao
regime colonial»8.
Em 1967 – o exército colonial atingia já os «35.000 militares das
diversas armas» –, os colonialistas «intensificaram os bombardeamentos e
o tiroteio criminosos contra as populações e tabancas das regiões
libertadas utilizando bombas de fragmentação, de napalm e fósforo
branco» e, por outro lado, «fizeram tentativas desesperadas a fim de
aterrorizar as populações e reocupar certas posições estratégicas
importantes das regiões libertadas mediante operações combinadas de
grande envergadura e “golpes de mão” por tropas hélio-transportadas»9,
segundo um relatório do PAIGC de Março de 1968. O mesmo documento
sublinha que nos bombardeamentos aéreos, diários e repetidos, visando
sobretudo as populações e tabancas das regiões libertadas, «o inimigo
utilizou maciçamente bombas de fragmentação, de napalm e, pela primeira
vez, bombas de fósforo branco»10, fornecidas por alguns dos seus aliados
da OTAN.
A par destes «bombardeamentos selvagens» e de outras operações (como
“golpes de mão” contra as regiões libertadas, com tropas
hélio-transportadas, algumas vezes apoiadas por desembarques de
fuzileiros navais, «com o fim de aterrorizar as populações, queimar as
nossas culturas agrícolas e destruir as nossas bases»11), o relatório
refere as acções de propaganda das forças coloniais: «uma intensa
propaganda falsa, sobretudo na rádio [de Bissau], tendente a
desacreditar a direcção e os objectivos do nosso Partido, a criar a
confusão entre as populações, a dividir as forças nacionalistas, a
desmobilizar os combatentes, a minar a unidade da nossa organização e a
provar a imaturidade da África para a independência»12.
A política do sorriso e do sangue
– A partir da
mudança de governador da Guiné, em Maio de 1968 – o general Arnaldo
Schultz é substituído pelo general António de Spínola, «militar formado
na repressão em Portugal e em Angola»13 –, a estratégia colonialista
sofre alterações de forma. Um relatório do PAIGC, de Janeiro de 1970,
caracteriza esta «política de duas faces, de sorriso e sangue», a
política spinolista da «Guiné melhor à sombra da bandeira portuguesa»:
por um lado, «por actos de falsas gentilezas e atenções para com as
populações das zonas e centros urbanos ainda ocupados, de concessões nos
planos social e religioso com a construção activa de escolas, de postos
sanitários e de mesquitas, assim como na organização de viagens a
Portugal, atribuição de bolsas de estudo, etc.». Por outro lado, «o
inimigo envia todas as semanas novos contingentes de tropas para o nosso
país, intensifica os bombardeamentos criminosos e os assaltos
terroristas contra as populações das regiões libertadas, queima as
colheitas, mata o gado e, sempre que pode, massacra civis, nomeadamente
velhos, mulheres e crianças»14. O relatório dá um exemplo concreto
destes «assaltos terroristas»: «Quando o inimigo, com a sua falsa
política tenta desmobilizar o nosso povo por meio de falsas promessas da
sua “campanha psicossocial”, bem como por meio do espantalho
neocolonialista de uma “Guiné melhor”, os seus agentes armados tentam,
através dos poucos meios aos quais podem ainda recorrer (principalmente
através dos bombardeamentos aéreos), prejudicar o mais possível as
nossas populações e os nossos combatentes. Chegaram a queimar uma parte
das nossas colheitas em Como, Corubal, Quínara e Tombali, com o fim de
reduzir as populações à fome e, deste modo, impedir a nossa luta.
Aquando de algumas incursões e acções combinadas, chegaram ao ponto de
não apenas raptar ou matar vários elementos da população, mas também de
roubar arroz, gado e fruta para alimentação das suas tropas, cercadas
nos acampamentos»15.
O oitavo ano da luta armada de libertação nacional, 1970, foi «muito
rico em acontecimentos de uma grande importância» para o PAIGC,
assinala o relatório do partido de Janeiro de 1971. «O sinistro general
Spínola (antigo comandante da Guarda Nacional Republicana, o principal
instrumento da repressão armada fascista em Portugal; antigo comandante
de cavalaria motorizada em Angola), que substituiu o general Arnaldo
Schultz, transferido após quatro anos de vãs tentativas criminosas para
parar a marcha da nossa luta, chegara à nossa terra com a pretensão de
pôr fim à nossa luta durante o ano de 1969», regista o documento. E
sublinha: «Tendo sido forçado a constatar o tremendo fracasso dos seus
planos de guerra a todo o custo e seguindo possivelmente directrizes do
novo chefe do Governo português, Marcello Caetano, o novo governador
militar inaugurou a política do sorriso e do sangue, de concessões e
crimes abomináveis, de manobras de toda a espécie visando alimentar a
guerra pela guerra e desmobilizar a população e os combatentes, para
destruir as bases principais do nosso movimento». Mas esta política não
deu os resultados esperados por Spínola – apesar dos «actos criminosos
dos colonialistas, que reforçaram os bombardeamentos com “napalm” e os
assaltos terroristas contra as populações», referindo o PAIGC que, por
outro lado, «a liquidação de três comandantes do estado-maior e a morte
por crise cardíaca do comandante militar (…) privaram o governador dos
seus principais colaboradores, os quais eram os cabecilhas da guerra
psico-social»16.
«Nós não estamos à venda»
– A liquidação pelo PAIGC
de três majores do exército colonial é amplamente explicada no
relatório datado de Janeiro de 1971 e redigido por Amílcar Cabral, num
ponto sobre «as manobras políticas dos colonialistas portugueses: a
guerra psico-social». Escreve o líder guineense-caboverdeano: «Depois de
terem sido forçados a reconhecer, pela voz dos seus chefes principais,
que não podem fazer parar a nossa luta nem ganhar a sua suja guerra
colonial contra o nosso povo e a África, os criminosos colonialistas
portugueses adoptaram novas tácticas para tentar destruir o nosso
Partido. Começaram a empregar os métodos mais desprezíveis, os mais vis,
no âmbito de uma política que deixa ver claramente, cada dia mais, que
os colonialistas portugueses são verdadeiros “gangsters” ou bandidos sem
o menor escrúpulo, capazes de cometer os crimes mais bárbaros e de
utilizar as mentiras mais desavergonhadas. Tendo fracassado na tentativa
de criar a confusão na nossa luta, vendendo, pelo preço da traição, a
liberdade condicionada a um certo número de compatriotas presos, os
colonialistas portugueses recorreram a outros meios. Inventaram mentiras
a respeito de divisões no seio do Partido; escreveram cartas a alguns
dirigentes, prometendo-lhes dinheiro em quantidade, boa vida e honras;
tentaram explorar o oportunismo, a ambição e os baixos sentimentos,
convencidos de que os militantes e dirigentes do nosso Partido são como
os que os servem. Mas enganaram-se. As suas tentativas não tiveram por
resposta mais do que o desprezo e a repulsa por parte dos nossos
camaradas. (…) Então, na frente de Canchungo (centro-Oeste do país), os
colonialistas portugueses puseram em acção alguns dos seus principais
quadros militares especialistas da guerra psicológica, para tentarem
comprar alguns responsáveis dessa frente. Depois de terem estabelecido
alguns contactos, escrito cartas ridículas, dado presentes e feito
promessas de toda a espécie, os colonialistas sofreram uma derrota
vergonhosa: os nossos combatentes liquidaram os comandantes e outros
oficiais e soldados que pensavam poder comprar-nos. Este facto prova uma
vez mais que sabemos bem o que queremos e somos patriotas. Nós não
estamos à venda»17.
O relatório denuncia também outra táctica a que os colonialistas
recorreram para tentarem parar a luta de libertação: «dividir o nosso
povo e levar os africanos a lutarem contra os africanos», uma táctica
«velha e muito usada não só pelos colonialistas mas também pelas guerras
coloniais imperialistas»18. São apontados dois exemplos: os «congressos
de etnias» para «atiçar de novo os sentimentos tribais que já
extinguimos» e a campanha racista contra os cabo-verdianos, desenvolvida
através Rádio de Bissau.
Nesse balanço de 1970 sobre a luta na Guiné, é destacada ainda a
audiência que o Papa Paulo VI concedeu em Roma a Amílcar Cabral,
Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, dirigentes do PAIGC, do MPLA e da
Frelimo, e é referida a morte de quatro deputados portugueses «que
tinham vindo “visitar” o que resta ainda da colónia que era o nosso
país» e cujo helicóptero foi abatido pelos combatentes da liberdade.
Assassinar Amílcar Cabral e Sékou Touré
– O relatório do PAIGC
de Janeiro de 1971 dá grande relevo à «agressão imperialo-portuguesa»
contra a República da Guiné, que Amílcar Cabral classifica como «uma
vitória para o nosso povo e o nosso Partido e uma das mais vergonhosas
se não a mais vergonhosa derrota do colonialismo português ao longo da
sua história». Isto, reconhecendo que «apesar de estarmos habituados aos
actos de desespero e banditismo, aos crimes mais abomináveis da parte
dos colonialistas portugueses, não deixou de ser para nós uma certa
surpresa a agressão caracterizada que eles planearam, organizaram e
executaram contra a capital da República da Guiné» [Conakry]. E mais: «É
certo que os colonialistas portugueses já tinham feito muitas
provocações e agressões contra os povos irmãos das repúblicas da Guiné e
do Senegal. Cometeram inúmeros crimes contra as populações pacíficas
das fronteiras desses países, bombardearam e incendiaram aldeias,
roubaram e pilharam, a coberto da mentira de que temos bases nos
territórios vizinhos (…). Mas não resta dúvida de ultrapassaram tudo
isso ao perpetrarem a agressão de 22 de Novembro [de 1970] contra
Conakry, para a qual tiveram de utilizar os seus próprios barcos e
aviões, os seus oficiais e soldados, embora pintados de preto e diluídos
em algumas dezenas de mercenários africanos do exército colonial e de
renegados e criminosos originários da República da Guiné. Mostraram,
sim, mais claramente do que nunca, até onde vai o desprezo pelas leis e
pela moral internacionais do nosso tempo. Revelaram de maneira
categórica, à África e ao mundo, a natureza tresloucada e criminosa do
colonialismo português»19.
Amílcar Cabral revelou todos os pormenores da agressão militar (cuja
responsabilidade o governo fascista português negou veementemente…):
– A operação «Mar Verde» foi previamente autorizada por Marcello
Caetano e «seguramente, teve o consentimento dos aliados do Portugal
colonialista»;
– O general Spínola e o seu estado-maior, em especial o comodoro
Luciano Bastos, comandante da Marinha, elaboraram em pormenor os planos
da operação;
– «Estes planos foram submetidos pelo próprio governador militar à
aprovação do chefe do governo colonial português, a quem foi dada
garantia do sucesso da empresa;
– Marcello Caetano recebeu, duas semanas antes da operação, o
comodoro Luciano Bastos e o capitão Alpoim Galvão, «que foi designado
para comandar a agressão contra Conakry»;
– Foram empregados na acção cerca de 350 homens, entre fuzileiros
especiais, tropas de elite, «comandos africanos» e algumas dezenas de
originários da República da Guiné;
– As forças de agressão partiram da ilha de Soga, nos Bijagós, «onde
tinham sido treinados, durante vários meses, os renegados da República
da Guiné» e onde antes da partida receberam a visita de Spínola. Foram
transportadas em seis unidades navais da Marinha portuguesa. Estavam
prontos para intervir, se a operação tivesse tido êxito,
caças-bombardeiros do tipo Fiat G-91, aviões de transporte de
pára-quedistas e helicópteros Alouett III.
Os objectivos principais do desembarque em Conakry eram os
seguintes: assassinar o presidente Sékou Touré e outros dirigentes do
PDG e derrubar o regime guineense, colocando no poder «os renegados da
República da Guiné, alguns dos quais estavam aguardando nos barcos, ao
largo da capital, e outros nas prisões políticas»; assassinar o líder do
PAIGC e, eventualmente, outros dirigentes do partido; destruir todas as
instalações do PAIGC; e, subsidiariamente, libertar os prisioneiros de
guerra portugueses.
A agressão falhou
– as forças do PAIGC estacionadas
em Conakry, sobretudo, e as tropas guineenses leais a Sékou Touré
resistiram e rechaçaram os invasores.
Amílcar Cabral escreveu a propósito: «Já estamos habituados às
manobras e mentiras dos colonialistas portugueses, particularmente do
seu representante actual na nossa terra [Spínola]. Mas devemos confessar
que, no caso da agressão contra a República da Guiné, ultrapassaram
tudo quanto antes tinham inventado, para mentir descaradamente.
Desgraçado povo, o de Portugal, que tem dirigentes capazes de mentir
tanto, que são tão cobardes para tentarem, pelos meios mais baixos,
negar a sua responsabilidade provada numa acção que planearam
minuciosamente, organizaram e executaram. Mesmo em relação aos
prisioneiros, único resultado “positivo” da operação, inventaram toda
uma história para tentarem fugir à responsabilidade»20.
A cobra nunca deixa de ser cobra…
– Os documentos
do PAIGC nos anos seguintes repetem as denúncias dos crimes do
colonialismo português. Num relatório de Setembro de 1971, Amílcar
Cabral escreveu: «Na Guiné, o inimigo prossegue a sua política de
mentiras, de concessões demagógicas, de promessas de promoção dos
africanos, até mesmo duma “revolução social” (sic) que se fosse posta em
prática não apenas realizaria o programa socioeconómico do nosso
Partido mas ainda daria ao nosso povo um nível de vida bastante mais
elevado do que o do povo de Portugal. Para completar a farsa, o actual
chefe dos colonialistas portugueses – o sinistro general Spínola –
promete agora “levar o povo à autodeterminação sob a bandeira
portuguesa”. Adepto fervoroso das teorias do general Kaúlza de Arriaga,
que considera o negro com um ser não inteligente, o governador militar
da Guiné quer viver a fábula do homem do homem astuto que tinha
prometido ao rei ser capaz de ensinar um burro a ler. Tal como o homem
da fábula, está sem dúvida convencido de que com o passar do tempo ou o
burro morrerá, ou morrerá o rei, ou ele mesmo»21.
O relatório retoma a denúncia de «numerosas agressões contra as
populações de Casamance (Senegal) e da zona fronteiriça da República da
Guiné», pelas tropas coloniais portuguesas, e a acusação de que «os
colonialistas tentam, por todos os meios ao seu alcance, perpetrar os
crimes mais bárbaros contra as nossas populações, matar o nosso gado,
queimar as nossas colheitas, em resumo, desenvolver e intensificar a sua
actividade criminosa e terrorista que é o grande desmentido das suas
pretensões de promoção económico-social e política do nosso povo». São
referidos, uma vez mais, «intensos e contínuos bombardeamentos aéreos,
nomeadamente com “napalm”» e «assaltos com tropas hélio-transportadas
com o fim de destruir aldeias, queimar as colheitas e matar o gado»22.
Na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1972, Amílcar Cabral
referiu-se de novo à política da «Guiné melhor» de Spínola e à natureza
racista do colonialismo: «Os esforços tão desesperados quanto vãos que
faz o actual chefe dos colonialistas portugueses na Guiné, no sentido de
destruir o nosso Partido para liquidar a nossa luta, são a prova mais
clara de que os colonialistas portugueses não conhecem nem nunca
conhecerão a África, não compreendem nem podem compreender o sentido da
História e continuam convencidos da sua capacidade de, como dizem,
“enganar o preto”. Essa ignorância, incapacidade e convicção racista
caracterizaram sempre a acção dos colonialistas portugueses em África,
explicam todos os crimes que praticaram e praticam contra os povos
africanos, são a causa subjectiva das actuais guerras coloniais e vão
seguramente provocar a perda de Portugal, com graves consequências para o
povo português»23.
Ainda nesse ano de 1972, a 19 de Setembro, poucos meses antes de ser
assassinado, o líder do PAIGC dirigiu uma mensagem por ocasião do 16.º
aniversário do partido, na qual voltou a denunciar o «racismo primitivo e
doentio» dos colonialistas portugueses e do seu chefe, que falam da
«Guiné melhor» e prometem a «autodeterminação sob a bandeira
portuguesa», concessões ilusórias que «só enganam os tolos ou os
traidores»24. A cobra, por mais que mude de pele, não deixa de ser
cobra, adverte…
O maior crime dos colonialistas
– Num relatório dirigido à OUA e
cuja primeira redacção Amílcar Cabral concluiu poucas horas antes do
seu assassinato por agentes do colonialismo português, a 20 de Janeiro
de 1973, o líder do PAIGC abordou a situação da luta na Guiné e em Cabo
Verde. Escreveu: «A acção militar dos colonialistas, que fazem esforços
desesperados para levar os africanos a baterem-se contra os africanos,
caracteriza-se principalmente por bombardeamentos aéreos intensos e por
assaltos terroristas contra as regiões libertadas. O massacre das
populações (quando podem fazê-lo), a utilização do “napalm”, a
destruição das aldeias, do gado e das colheitas são as acções principais
do inimigo, que desenvolve planos para a utilização de produtos
tóxicos, herbicidas, desfolhantes, contra os nossos campos de cultura e
as nossas florestas25».
Dias antes, na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1973,
considerado o seu «testamento político», Amílcar Cabral anunciava já a
preparação da eleição da Assembleia Nacional Popular visando a
proclamação da existência do Estado da Guiné-Bissau, a criação de um
executivo para esse Estado e a promulgação da sua primeira Constituição:
«Da situação de colónia que dispõe de um movimento de libertação e cujo
povo já libertou em 10 anos de luta armada a maior parte do seu
território nacional, vamos passar à situação de um país que dispõe do
seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupado por
forças armadas estrageiras26».
De forma quase premonitória, o líder do PAIGC advertia que, apesar
de todos os avanços da luta, «não podemos esquecer nem um só momento que
estamos em guerra e que o inimigo principal do nosso povo e da África –
os colonialistas fascistas portugueses – alimentam ainda, com o
sacrifício e a miséria do seu povo e por meio de manobras as mais
pérfidas e de actos os mais bárbaros, a criminosa intenção e a vã
esperança de destruir o nosso Partido, liquidar a nossa luta e
recolonizar o nosso povo». Ainda que, assegurava, «nenhum crime, nenhuma
força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos agressores
colonialistas portugueses será capaz de parar a marcha da História, a
marcha irreversível do nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde para a
independência, a paz e o progresso verdadeiro a que tem direito»27.
Na verdade, esse «inimigo bárbaro que não tem o menor escrúpulo nas
suas acções criminosas» – o colonialismo português – assassinou Amílcar
Cabral nos primeiros dias de 1973, utilizando traidores africanos, a
soldo da PIDE, infiltrados no PAIGC.
Luís Cabral, irmão de Amílcar, um dos fundadores e principais
dirigentes do PAIGC – não se encontrava em Conakry na noite do crime e
da prisão de Aristides Pereira e outros dirigentes do partido –, num
testemunho oral publicado em 1995, confirmou aspectos principais sobre o
assassinato e a continuação da luta até à proclamação da independência
da Guiné-Bissau e ao derrubamento do fascismo em Portugal.
Recordou que os colonialistas portugueses fizeram várias tentativas
para destruir o PAIGC, até chegar ao ataque a Conakry, em Novembro de
1970, «operação de um comando especial orientado directamente pelo
general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o
governo e destruir o PAIGC», considerando que, depois do fracasso da
agressão, «a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por
dentro»28.
De acordo com Luís Cabral, foi o que aconteceu: «Os homens que
assassinaram o Amílcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio
da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau,
das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E, então,
indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e
estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kani, Aristides
Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para
Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra
a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a
conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas
para isso os guinenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque
com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o
PAIGC estivesse em Cabo Verde (…)»29.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral «foram quase todos
fuzilados». Esses homens «foram mandados pela PIDE, eles disseram
isso»30, confirmou Luís Cabral, referindo também cumplicidades de certos
dirigentes da República da Guiné com os criminosos.
Depois do assassinato de Amílcar Cabral – os colonialistas chegaram
então a proclamar o fim da guerra na Guiné –, o PAIGC intensificou a
luta armada em todas as frentes, equipou-se com novas armas (mandou
formar pilotos de «Mig» na União Soviética e recebeu mísseis Strela, de
fabrico soviético, entregues pela URSS ainda em Janeiro de 1973, que
puseram fim à impunidade aérea dos colonialistas), realizou o seu II
Congresso nas regiões libertadas do Leste, elegeu por unanimidade
Aristides Pereira como secretário-geral, e, a 24 de Setembro de 1973,
reuniu no Boé a primeira Assembleia Nacional Popular da história do país
e proclamou o Estado da Guiné-Bissau, reconhecido de imediato por cerca
de 80 países. Em 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas
derrubou o regime fascista em Portugal, entre Maio e Agosto
realizaram-se conversações em Londres e Argel entre delegações do PAIGC e
do novo Governo de Lisboa e a 10 de Setembro a independência de jure da
Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal.
Não é necessário esperar que um dia o WikiLeaks divulgue documentos
secretos da guerra que Portugal travou em Angola, Guiné e Moçambique
entre 1961 e 1974 para se conhecer melhor as barbaridades do
colonialismo português.
Para o caso da Guiné-Bissau, basta recorrer a textos da autoria de
Amílcar Cabral (haverá imensos outros documentos interessantes
espalhados pelos arquivos e fundações portuguesas…), muitos deles
publicados, para se conhecer a impressionante lista de crimes que o
PAIGC atribuiu, durante 11 anos da sua luta armada de libertação
nacional (1963-1974), ao colonialismo português – discriminação racial,
fomento do racismo e do tribalismo, prisões e torturas, massacres,
bombardeamentos massivos de populações civis (com bombas de
fragmentação, «napalm» e fósforo branco), utilização de desfolhantes e
herbicidas, destruição de colheitas, roubo de gado e, claro, agressão
militar a um país soberano e assassinato de dirigentes políticos.
E foram crimes em vão. Portugal foi derrotado militarmente na Guiné.
Os guerrilheiros do «mato» acabaram por vencer os generais formados nas
academias ocidentais, mais as suas numerosas tropas bem equipadas com
aviões, tanques e canhões fornecidos pelos aliados da NATO.
Apesar dos indescritíveis sacrifícios da guerra, guineenses e
cabo-verdianos que lutaram nas fileiras do PAIGC podem hoje orgulhar-se
não só da conquista da independência nacional das suas pátrias mas
também de terem contribuído decisivamente, com a sua luta, para a
liquidação do colonial-fascismo de Salazar/Caetano e a libertação do
povo português.