:: Flávio Gikovate ::
Nossa trajetória, como espécie ímpar, passa pelo crescimento e diferenciação do cérebro e de todo o sistema nervoso, o que permitiu uma maior e melhor utilização do “equipamento” assim disponível. Talvez a mais formidável seja a possibilidade de constituição da linguagem. Ela depende do aprimoramento de inúmeras áreas cerebrais, muitas delas com localização mais bem conhecida na atualidade.
É forte minha convicção de que a aquisição da linguagem corresponde a um divisor de águas entre duas circunstâncias completamente diferentes. Nossa espécie viveu, ao longo de dezenas de milhares de anos, sem ter conseguido sistematizar e transferir às gerações seguintes um sistema de sinais que denominassem objetos, ações e sensações. Penso que estiveram, mais que tudo, às voltas com seus impulsos instintivos e com a resolução de suas necessidades de sobrevivência. Formavam, como os outros mamíferos, arcos reflexos condicionados e os respeitavam. Reagiam aos desejos sexuais, às situações agressivas e a algumas regras de sobrevivência que tivessem aprendido a respeitar. Nesse domínio, tudo são suposições e não sou qualificado para ir mais adiante nos detalhes.
Avançando nos milênios, e continuando no plano das conjecturas, imagino que em algum momento fomos capazes de dar uso efetivo ao “equipamento” que já possuíamos há muito mais tempo. Símbolos sonoros - e depois também registrados sob a forma de desenhos, nossa primeira escrita - puderam ser associados fixamente aos atos e a determinados objetos com suas propriedades. Refiro-me ao fato de que o mesmo símbolo passava a ter o mesmo significado para todos os membros de um determinado grupo. Sendo assim, puderam ser transferidos de uma geração à outra, o que permitiu, talvez pela primeira vez, a sistemática e rápida acumulação de experiências e conhecimento. Nos meus devaneios imagino que essa deve ter sido a primeira grande revolução “tecnológica”, em tudo similar à que estamos vivendo atualmente.
É difícil imaginar o quanto a aquisição da linguagem deve ter influenciado a vida de cada pessoa e também a forma como viviam socialmente. Algum tipo de vida em grupo era anterior à aquisição da linguagem, já que ela dependia de que os mesmos símbolos fossem usados por várias pessoas com igual significado. Chamamos os símbolos de palavras. Elas passavam a substituir, na mente de cada um, o objeto ou situação à que se referia, assim como os números vieram a substituir a quantidade de objetos. De uma hora para outra, passamos a correlacionar as palavras entre si sem termos que nos ater diretamente aos fatos, assim como os matemáticos podem inventar correlações entre números que já quase não tem nada a ver com as quantidades a que inicialmente se referiam. Surge a possibilidade de construirmos pensamentos, ou seja, conjunto de frases constituídas por palavras que, um dia, foram “apenas” símbolos indicativos de objetos, sensações ou situações.
Tenho que me empenhar para não me perder e não me confundir enquanto escrevo essas linhas, de modo que suponho que o leitor não se encontrará em situação muito diferente. É como se estivéssemos assistindo a um curso de matemática ou mesmo de informática! Não vamos nos envolver demais nesta seara. O fato é que somos capazes - e isso sabemos por vivência pessoal - de utilizar nosso cérebro de forma a construir pensamentos, imaginar situações que não estamos vendo, refletir sobre o que nossos órgãos dos sentidos nos informam. Nos sonhos “vemos” o que não existe, já que estamos com os olhos fechados; sabemos distinguir o que vemos do que imaginamos, mesmo quando ambos nos chegam sob a forma de imagens. Somos sensíveis a determinados sons que, em nós, determinam emoções especiais, e assim por diante. O mais importante de tudo isso é que somos conscientes de nossa condição. Sabemos que, como os outros animais, somos mortais. Vivemos sabendo que, um dia, iremos morrer e nosso corpo irá ser reintegrado à terra.
O aspecto mais interessante de nossa condição é que não vivenciamos toda essa gama de pensamentos e sensações como se elas estivessem em relação com o nosso corpo, em especial com o cérebro. Quando pensamos, imaginamos ou conversamos, não temos a sensação de que nosso cérebro está em atividade, de que determinadas reações químicas no interior dos neurônios são responsáveis por nossos sorrisos ou lágrimas. Não é assim que nos percebemos. Temos a nítida impressão de que nossa atividade intelectual - ou seja, as correlações que fazemos entre palavras, frases, conceitos etc.- e nossas emoções são totalmente independentes do corpo. Temos a impressão, portanto, de que somos duplos, constituídos de duas entidades: a que possui um corpo e uma outra, imaterial, que foi chamada de alma. Nossa alma contém nossos pensamentos, sensações e também valores, algo que construímos a partir do uso autônomo das nossas funções psíquicas. Nossa alma, por vezes, olha para nosso corpo e não o reconhece como nosso! É comum que isso aconteça quando envelhecemos e nos assustamos com nossa imagem refletida inesperadamente em alguma superfície espelhada.
As dores físicas, registradas na alma, nos lembram que as entidades não estão tão separadas assim. Acontece o mesmo quando nos percebemos tomados por impulsos corpóreos, tais como o desejo sexual, a fome, a sede, reações agressivas etc. Eles chegam à consciência - palavra que corresponde, assim como mente, a sinônimo do que estou chamando de alma - e, por vezes, não são muito bem recebidos. É como se nossa alma tivesse que “suportar” uns tantos desaforos do nosso corpo. É como se nossa alma, superior, tivesse que conviver com os mesquinhos anseios corpóreos.
Ao mesmo tempo temos que aceitar que a alma não é capaz de subjugar totalmente o corpo, o que determina uma inexorável tensão interna, um conflito entre partes. A alma constrói um conjunto de valores que nem sempre levam em conta as reais peculiaridades do corpo. Tal sistema de valores parece ter sido elaborado em função de uma idéia de que, através dos pensamentos e da ação da mente, seríamos capazes de transcender totalmente nossa condição mamífera e mortal, muitas vezes percebida como algo quase intolerável.
O corpo também costuma ter suas “queixas” em relação à alma. Costuma sentir como exagerados e desnecessários os freios derivados do sistema de valores constituídos pela alma. A realização de determinados desejos naturais acaba por determinar uma ofensa ao código mental, de modo a provocar um conflito íntimo que pode até mesmo determinar efeitos nocivos à saúde corpórea. Se a pessoa age de acordo com o desejo do corpo, a alma reclama e determina sentimentos de vergonha ou culpa. Se o corpo é privado de agir, pode adoecer. E assim vamos tentando equilibrar nossa dualidade e suas conseqüências.
O anseio de transcendência, de que essa parte imaterial, sentida como superior, que habita nosso corpo seja capaz de sobreviver à nossa morte física, deve ter influído na construção da hipótese da imortalidade da alma. Não tenho a menor intenção de opinar a respeito desse tema. Gostaria de reafirmar o ponto de vista no qual estou me baseando: independentemente de sua origem e de seu caráter mortal ou imortal, vivenciamos em nossa subjetividade a presença da alma, qual seja, um conjunto de pensamentos, sensações e valores que não nos parecem vinculados ao corpo. Não desconheço o fato de que alterações orgânicas cerebrais de todos os tipos podem interferir em nosso estado psíquico, especialmente na disposição, humor, assim como provocar distúrbios senso-perceptivos e de cognição mais ou menos graves. Não desprezo nada disso. Apenas registro que, do ponto de vista da psicologia normal e de como vivemos o cotidiano, a alma parece destacada do corpo. Além disso, nem sempre somos competentes para perceber a influência, que efetivamente sofremos, das nossas condições corpóreas, especialmente aquelas relacionadas com a química cerebral.
Não há mais a menor dúvida de que alterações metabólicas cerebrais podem interferir dramaticamente na forma como pensamos, sentimos e agimos.
Ou seja, a alma está sim sujeita às condições do cérebro -- assim como de todo o corpo. Acontece que a recíproca também é verdadeira: muitos dos nossos pensamentos desastrosos, relativos a medo ou a maus presságios, determinam imediatamente as reações físicas correspondentes. Nosso corpo reage aos nossos pensamentos da mesma forma que reage aos fatos que a eles corresponderiam. As reações corpóreas não distinguem entre realidade e imaginação!
Flávio Gikovate é médico psicoterapeuta, pioneiro da terapia sexual no Brasil. |
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O programa "No Divã do Gikovate" irá ao ar todos os domingos das 21h às 22h, respondendo questões formuladas pelo telefone e por e-mail gikovate@cbn.com.br |
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