Aonde vai o socialismo de Chávez?
A Venezuela bolivariana vive um processo inédito de mobilização social. Foi isso que tornou inviáveis os aspectos ultra-centralizadores e retrógrados do projeto do presidente. Diálogo em Caracas com o sociólogo Edgardo Lander, um socialista comprometido com o futuro da democracia
Elizabeth Carvalho
Do longo discurso de três horas, restou apenas uma frase. Os bons ouvintes, experientes e calejados, imediatamente identificaram ali a dúvida, o tênue sinal de fraqueza, a pequena brecha por onde escoava o mal-estar oculto nas próprias fileiras chavistas, com a reforma constitucional que o presidente Hugo Chávez acreditava ver aprovada no dia seguinte, por referendo popular. Diante da multidão que cobria de vermelho a imensa Avenida Bolívar, no comício de encerramento de sua campanha em Caracas, ele advertiu: “que fique bem claro: quem votar NÃO vota contra Chávez, vota por Bush”. Chávez sabia que ali mesmo, naquela massa compacta que constituía sua base de apoio, havia muita gente que desta vez não queria, nem iria, dizer SIM ao presidente – apesar da chantagem política implícita na frase.
O professor Edgardo Lander é bem mais que um bom ouvinte, experiente e calejado. Catedrático do Departamento de Sociologia da Universidade de Venezuela e professor do programa de pós-doutorado, dono de uma obra respeitada em todo o mundo, é um intelectual profundamente engajado no processo histórico de mudança que seu país vem experimentando nos últimos anos. Mas é também um crítico feroz da fracassada experiência socialista do século 20, que ele teme se repetir na Venezuela. Uma ordem autoritária, demolidora dos ideais democráticos, que incorporou as tendências mais negativas do modelo industrial-capitalista, com padrões de destruição ambiental ainda mais acelerados que os da sociedade que pretendia combater. Em suma, é um socialista venezuelano que votou NÃO. E acha que o resultado das urnas, que rechaçaram a reforma constitucional com uma diferença de apenas 1,5 %, foi o melhor que poderia ter acontecido à Venezuela e ao governo Chávez — que, pela legislação atual, vai se estender até o ano de 2013.
O impacto mais importante deste resultado, segundo Lander, se deu no próprio chavismo. Comparado com o desempenho da oposição, nas presidenciais do ano passado, o NÃO contabilizou 200 mil votos adicionais, e eles certamente não saíram apenas dos que rejeitam o presidente. Da mesma forma, não se pode creditar a estes a totalidade do índice de 44% de abstenção. Lander faz questão de ressaltar que é ainda muito cedo para uma análise numérica mais detalhada, mas admite que os níveis de abstenção em muitas zonas populares foram elevados. “São muitas as leituras que se pode fazer destes níveis de abstenção”, ele diz, “mas creio que uma proporção significativa desta falta de disposição de sair para votar pela reforma é uma expressão do desconforto que ela provocou. Entre assumir o NÃO e se abster, muitos preferiram ficar em casa”.
Nas últimas semanas que antecederam a votação do dia 2, Lander produziu uma extensa contribuição ao debate sobre a proposta de reforma. Esmiuçou cada um dos artigos que deveriam ser modificados, para concluir que não se tratava de uma reforma, mas uma nova Constituição, cheia de lacunas, que deveria substituir a que em 1999 instituiu a República Bolivariana. Ou seja: só uma nova assembléia constituinte poderia, do ponto de vista constitucional, elaborar as mudanças que Chávez considerava indispensáveis em sua viagem rumo ao incerto “socialismo do século 21”.
"Socialismo do século 21": em parte, nunca definido; em parte, volta ao estatismo e à ultra-centralização
O presidente levantou a bandeira deste vago conceito em sua campanha pela reeleição, em 2006. Uma mudança significativa num discurso político que, em 1999, falava apenas de combate sem tréguas ao capitalismo selvagem e bebia na fonte da teoria do desenvolvimento de Celso Furtado. Mas, como observa Lander, o novo discurso navegou à deriva. Nenhum passo concreto foi dado para um debate que ajudasse a desenhar concretamente o socialismo que se pretendia construir.
“Sendo socialismo do século 21, seria lógico supor que não seria o socialismo do século 20. Mas em que aspectos se distanciaria dele? Na negação do modelo do partido único? No rechaço a uma ideologia oficial do Estado? Em alternativas ao modelo monocultural que negava toda a diferença? Em formas de organização orientadas para não repetir a chamada democracia popular proletária, que terminou por negar a própria democracia? Em um modelo não baseado na planificação burocrática centralizada? No questionamento radical do produtivismo de crescimento sem limite, como ontem na União Soviética e hoje na China? Socialismo com pluralismo político, compatível com a Constituição vigente?”
A reforma deixava sem resposta boa parte das perguntas de Lander, e esclarecia outras de forma bastante perturbadora. O artigo 136 da reforma, por exemplo, acrescentava um poder popular (comunas, conselhos comunais, conselhos de operários, camponeses, estudantis) à divisão territorial tradicional do Poder Público (municipal, estatal e nacional). Um “poder”, na verdade, diretamente submetido à lógica do Estado, alternativo, diferente dos outros poderes, que ao sociólogo soa como um contra-senso. “Organizações populares convertidas em conselhos comunais ligados ao Estado não fortalecem a autonomia”, ele diagnostica. “Acabam funcionando como mecanismo de cooptação e controle que vem de cima.”
Na análise de Lander, a reforma proposta conduzia de um modo geral a um modelo de socialismo estatista, tendo como centro de poder o presidente da República e ampliando suas atribuições. A ele cabe estabelecer as linhas de um plano geral estratégico de desenvolvimento. A ele cabe a administração das reservas internacionais e das reservas para a economia nacional. A ele estão atreladas as Forças Armadas. Todos os caminhos do novo Estado socialista venezuelano levam a Chávez. Como um super-herói, ele tem a força. “Chávez se cerca de colaboradores incapazes de contestá-lo e de uma intelectualidade cortesã”, revela o sociólogo. “É impossível atravessar nove anos de poder sem críticas e não acabar se separando da realidade, sem sucumbir aos males de uma patologia política.”
O outro lado da moeda: inclusão social, resgate da cidadania, avanço da organização popular
Mas foram também nove anos de avanços indiscutíveis na sociedade venezuelana. Lander destaca mudanças substanciais no acesso à educação e à saúde, no resgate da cidadania e no processo de inclusão social, no consumo de alimentos da população carente. Relaciona a escassez de produtos de primeira necessidade não apenas ao claro boicote de empresários do ramo que se opõem a Chávez, mas a um grande aumento da demanda de consumo. São avanços que se chocam com problemas estruturais que a revolução bolivariana de Chávez não foi capaz de solucionar.
Há 14 trimestres, a economia venezuelana apresenta os mais altos índices de crescimento da América Latina, em torno de 10%. O Produto Interno Bruto é hoje exatamente o dobro de 1998, ainda que a aceleração tenha caído de 10,3%, em 2006, para 7%, em 2007. Mas os lucros do grande capital permanecem intocáveis, estratosféricos. Os dos bancos subiram 33% em 2006, atingindo cerca de R$ 12,606 bilhões num único semestre. A inflação melhorou, mas não está controlada: vai fechar este ano em torno de 20%. As políticas agrícolas são ineficientes: Lander não enxerga sinais de um combate efetivo à chamada “doença holandesa” de que padece o país — um conceito econômico que explica a relação entre a exploração dos recursos naturais e o declínio de outros setores da economia. A produção interna está escravizada às divisas geradas pelo petróleo. A Venezuela não produz o que come. Setenta por cento do consumo de alimentos depende das importações, da lógica perversa de que comprar fora sai mais barato do que plantar, colher e distribuir. São problemas que a grave e contumaz ineficiência da gestão pública não ajuda a resolver.
Junte-se neste caldeirão uma das maiores conquistas da sociedade venezuelana nos últimos anos, que é a cultura política impulsionada pelos processos de organização popular. A Venezuela é hoje certamente a nação mais politizada da América do Sul. Lander avalia que o sucesso das missões bolivarianas não teria sido possível sem a sólida mobilização das comunidades em torno de suas propostas. É fácil constatar essa avaliação nas ruas, nas escolas, nos mercados e nos escritórios. O povo venezuelano é bem informado, conhece profundamente os seus direitos e alimenta um orgulho pátrio que no Brasil só aflora durante a Copa do Mundo.
A esperança: que esta sociedade mobilizada rejeite o messianismo, como fez no referendo do dia 2
Esta é a mistura que se derramou sobre as urnas em 2 de dezembro. “O resultado do referendo nos dá um quadro diferente do que analistas políticos, e mesmo Chávez, seriam capazes de imaginar”, Lander conclui. “Não há um povo passivo disposto a seguir um líder messiânico, que dita normas de conduta. As urnas revelam que, entre optar pela revolução bolivariana chavista e o fascismo-imperialismo”, há outras opções ainda para se pensar”.
A favor do futuro, Edgardo Lander ressalta a comprovação da absoluta transparência do sistema eleitoral venezuelano, que considera uma das mais importantes conquistas para a legitimidade do processo político no país e cala de vez as vozes que a cada eleição semearam a suspeita de manipulação eleitoral no país. Nesse quadro, a vitória do NÃO pode também isolar os setores golpistas mais radicais, abrindo espaço para uma oposição mais democrática.
Por fim, no pronunciamento da madrugada de 3 de dezembro, apresentou-se frente às câmeras de televisão um Chávez bem diferente daquele que na véspera da votação ameaçava a multidão no comício. Reconheceu que o SIM teve 3 milhões de votos a menos dos que lhe tinham sido dados nas eleições presidenciais, e que era preciso escutar a voz do povo. Lander acredita que aí reside a chave do tesouro: se isso realmente ocorrer e permitir um desdobramento de reflexão autocrítica, uma nova vida democrática pode estar a caminho no processo de mudança na Venezuela.