A América Latina aprende a dizer não | | | |
Luiz de Eça | |
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Pela segunda vez na História, Tio Sam foi desobedecido pelos povos ao sul do Rio Grande...
Depois de sepultar a ALCA, na IV Cúpula das Américas, os países latino-americanos barraram mais uma demanda básica da política externa americana, ao rejeitar a doutrina da "ação preventiva" na reunião da OEA de debate da invasão do Equador pela Colômbia.
A posição da Casa Branca, que defende o direito de um país atacar o território do outro quando sentir sua segurança ameaçada, já vigora "de fato" no âmbito da ONU, empurrada goela abaixo da comunidade internacional pelo poder hegemônico dos Estados Unidos.
Mas na América Latina ainda não é aceita.
Considera-se altamente discutível essa idéia de fazer justiça pelas próprias mãos, ao invés de pedir providências a quem é de direito.
Seria substituir o conceito do respeito à soberania, à integridade territorial – básico no direito internacional desde o século 17 –, pelo da lei das selvas.
Inclusive porque o julgamento do que seria "segurança ameaçada" ficaria por conta do governo do país que se sentisse nessa situação.
Mas seria seu governo sempre objetivo e equilibrado na análise dos fatos e na tomada das correspondentes decisões militares? Não é o que tem sido provado. O exemplo mais emblemático é a invasão do Iraque.
Aqui, a aplicação do princípio da "legítima defesa" dos Estados Unidos contra ameaças comprovadamente inexistentes já custou cerca de 100 mil vítimas iraquianas e a destruição do país, além de 4.000 soldados americanos mortos e 600 bilhões de dólares do tesouro de Washington que, hoje, mais do que nunca, bem precisado estaria deles para enfrentar sua crise econômica.
Como esse, há muitos outros exemplos da aplicação desastrada do princípio da "ação preventiva".
Em 1986, depois que um atentado terrorista matou dois soldados americanos em Munique, o então presidente Reagan, mediante indícios não concludentes de conivência do ditador Khadafi, da Líbia, "defendeu" seu país mandando bombardear o complexo residencial da família do adversário. Khadafi saiu ileso, mas não sua netinha de um ano de idade, que morreu com mais cerca de 100 pessoas.
Em 1998, por ordem do presidente Clinton, aviões americanos arrasaram uma fábrica em Cartum, capital do Sudão, onde, segundo a CIA, se produziam bombas químicas, um terrível perigo para os Estados Unidos.
Foi um pequeno erro: eram apenas shampoos. Que, porém, não deixaram de causar dano ao povo americano, obrigado a arcar com pesada indenização paga pela Casa Branca ao proprietário bombardeado para trancar ação por ele ajuizada nos Estados Unidos.
Como se sabe, os governos do continente consideraram a ação colombiana violadora do direito internacional, portanto, um crime. Porém, como o tigre está enfraquecido, mas ainda tem garras, não se ousou condenar o criminoso, ou seja, a Colômbia, que foi obrigada a apenas pedir desculpas e jurar não repetir sua malfeitoria.
Tudo acabaria melhor se fosse ouvida a proposta do chanceler do Brasil, que pedia a paz na Colômbia através da soltura dos reféns e anistia das FARCs.
Infelizmente, por enquanto, isso é o chamado sonho impossível. Nenhuma das partes é favorável.
A Uribe, por razões eleitorais, interessa a continuidade da guerra contra a guerrilha, com quem a população está totalmente incompatibilizada depois de 42 anos de lutas que expulsaram de suas casas entre 2 e 3 milhões de pessoas. Pesquisa mostrou que o massacre da fronteira com o Equador foi apoiado por 84% dos respondentes.
Por sua vez, as FARCs, em manifesto datado de setembro último, declaram que aceitam abandonar as armas, mas jamais para um "governo títere dos Estados Unidos" como o de Uribe.
Por fim, a própria justiça colombiana é um obstáculo à paz. E tem boas razões.
Atores destacados do drama, os paramilitares foram criados com a conivência do presidente quando governava o departamento de Antioquia, com o objetivo de auxiliar o exército e proteger os camponeses contra a guerrilha.
Cedo aliaram-se ao narcotráfico, tornaram-se algozes dos camponeses – roubando suas terras - e cometeram uma onda de assassinatos políticos. Segundo informes da ONU, 80% dos crimes da guerra civil foram cometidos pelos paramilitares que, entre 1982 e 2005, seqüestraram 1.163 pessoas, assassinaram mais de 1.700 indígenas, 2.550 sindicalistas e cerca de 5 mil membros do União Patriótica (partido que foi exterminado por eles), além de usurparem mais de 6 milhões de hectares de terras.
Uribe acabou declarando os paramilitares ilegais e prendendo uns quantos. Mas pegou mal quando a justiça colombiana prendeu dois governadores de estado e 13 deputados (a maioria governistas), muito próximos a ele, além de surgirem denúncias contra generais e ministros - todos por associação a paramilitares.
Essas ligações perigosas ficaram documentadas pela National Security Archive (NSA, Arquivo de Segurança Nacional), organização americana não-governamental que publica documentos antes confidenciais liberados pelo Ato de Liberdade de Informação.
Pretendendo resolver o problema dos paramilitares, Uribe propôs que todos aqueles que se desmobilizassem e confessassem seus delitos seriam absolvidos, quando não fossem réus de crimes de morte ou seqüestro. Quanto aos que tivessem incorrido nesses ilícitos, teriam suas penas reduzidas de 40 (como preceitua a lei) para 5 a 8 anos.
Mas a Suprema Corte se opôs, declarando que uma anistia só pode cobrir crimes políticos, coisa que assassinato, seqüestro, tortura e roubo não são. E ue, portanto, os paramilitares deveriam ser julgados e apenados como criminosos de direito comum.
O problema se agrava porque essa interpretação abrange não somente os paramilitares, mas também os guerrilheiros das FARCs, que praticam crimes de seqüestro e tráfico de drogas. Crimes sim, isso é um fato inegável.
As intenções idealistas dos líderes das FARCs não os absolvem. No máximo, poderão ser consideradas como atenuantes.
Claro, a paz para o povo colombiano é um bem tão importante que talvez justificasse passar uma borracha no passado, ainda que perdoando ações merecedoras de punições.
Mas isso só se fará através de um acordo nacional entre os personagens centrais do drama, não importa quem sejam, pois, afinal, eles são a realidade.
Assim como disse "não" à proposta americana de incluir a lei das selvas na Carta da OEA, a América Latina vê-se agora diante da opção de dizer "não" ao maniqueísmo, que divide a Colômbia entre "mocinhos e bandidos", e buscar um acordo entre contrários que leve a paz a um povo que não merece o sofrimento de 42 anos de guerra civil.
Luiz Eça é jornalista.
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