Para compreender a crise financeira
Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
Antonio Martins
Depois de terem vivido uma segunda-feira de pânico, os mercados financeiros operam, hoje, em meio a muito nervosismo. A bolsa de valores de Tóquio caiu mais 3%, apesar de o Banco do Japão injetar mais 10 bilhões de dólares no sistema bancário. Na Europa, há pequena recuperação das bolsas, diante de rumores sobre uma redução coordenada das taxas de juros, pelos bancos centrais. Em contrapartida, anunciou-se que a situação do Royal Bank os Scotland (RBJ) pode ser crítica — e que outros bancos estariam sob forte pressão.
A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15 e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras norte-americanas [1] deixou claro que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário. No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700 bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também a chamada “economia real”. Por falta de financiamento, as vendas de veículos caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde 1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na própria moeda. Em tempos de globalização, seria “a mãe de todas as corridas contra os bancos”, segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2 de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos “quatro grandes” europeus [3], convocada pelo presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso, que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país...
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas. Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e Europa estão viveram, na segunda-feira (6/10) um dia de quedas abruptas. Na primeira sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2% e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos importantes. Em São Paulo, os negócios foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da intervenção do Banco Central, o dólar chegou a R$ 2,20.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências: econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados, apenas para... desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas “injusto”, mas também “ineficaz e ineficiente”. Injusto porque socializa prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o Estado assuma seus “títulos podres”) sem assumir, em troca, parte de seu capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas — e ameaçadas de perder seus imóveis —, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais. Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses no Le Monde Diplomatique, o economista francês François Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada “ditadura dos acionistas”, que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China, que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 - quando George Bush preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias (anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do sistema [4]. Seus objetivos parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo, até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha, França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, “Pensando o Impensável” , de Serge Halimi