O estado da agricultura angolana
Por Roberto Blum - CorreioInternacional
Segundo os dados oficiais, a produção agrícola de Angola está
aumentando. Pela primeira vez a barreira de um milhão de toneladas de
cereais foi atingida. Acredita-se que a produção de café tenha chegado
ao dobro da do ano passado. Os rebanhos de gado bovino de raças
importadas ampliaram-se, assim como melhorou o desempenho de alguns
empreendimentos pecuários. Os números de empreendimentos de média e
grande dimensão e de empregos cresceram. O consumo de fertilizantes foi
ampliado e o governo aprovou duas linhas de crédito para investimentos
e custos operacionais da campanha agrícola.
A situação melhorou efetivamente, mas estamos longe, muito longe, do
que deveria ser feito. As estatísticas não são suficientemente
credíveis para se avaliar a real dimensão dessa melhoria. Em Angola não
há práticas de monitoria e avaliação independentes dos empreendimentos
públicos. O mais preocupante é que estas melhorias acontecem de forma
puntual, não constituem reflexo de uma mudança estratégica de fundo e
não estão associadas a reformas estruturantes que possam vir a garantir
a sustentabilidade das ações.
Promessas irrealistas
Por ocasião das eleições de 2008, o MPLA [Movimento Popular de
Libertação de Angola, partido político que dirige o país deste 1975]
prometeu aos angolanos metas de produção agropecuária ambiciosas para
2012. Por exemplo, a produção de cereais passaria de 700 mil toneladas
para 15 milhões, ou seja, aumentaria mais de 20 vezes em quatro anos, o
que seria absolutamente inédito. Foi denunciada a falta de realismo
dessas metas em Maio de 2008.
Após um ano, o panorama não é animador. Principalmente no que se
refere aos aspectos estruturantes, aqueles que condicionam a produção.
A reforma da pesquisa promete muito mas concretiza pouco. Um centro
construído em Malanje [capital da província angolana de mesmo nome,
situado no centro-norte do país] e equipado com três laboratórios desde
2006, em um investimento de mais de dois milhões de dólares, ainda não
entrou em funcionamento. Programas de capacitação de agricultores
aprovados há mais de um ano e com financiamento externo garantido, não
iniciaram por problemas de pormenor. Não há uma estratégia adequada
para estimular a instalação generalizada de provedores de serviços
públicos ou privados nos municípios, em mais de 90% dos quais os
agricultores não conseguem sequer comprar sementes e ferramentas
usuais, nem obter conselhos técnicos elementares. O consumo de
fertilizantes chegou a 30 mil toneladas, quando, segundo a FAO, já há
muito deveríamos ter ultrapassado as 400 mil.
As linhas de crédito aprovadas tardam a ser concretizadas para
desespero dos agricultores e o acesso ao que existe é limitado, quer
por deficiências do sistema bancário, concentrado nas capitais de
província e demasiado exigente nos requisitos para financiamento de
necessidades elementares dos agricultores, quer pela incapacidade
desses agricultores de apresentarem projetos credíveis. Nos últimos
anos foram adquiridos tratores e equipamentos em quantidades e valores
consideráveis que têm uma vida útil média inferior a dois anos,
possivelmente uma das mais baixas do mundo, e não são dados os passos
necessários para a definição de uma política sensata de mecanização,
que tenha em conta o estado atual de organização e as capacidades
institucionais e de recursos humanos, e preveja os níveis de
intensificação, o tipo de equipamento, a formação de técnicos e de
operários especializados e o uso de métodos modernos de planejamento
estratégico e de gestão.
Cooperativas de serviços
As cooperativas de serviços poderiam ser uma solução para estes
problemas, mas a legislação cooperativa está desatualizada e a nova lei
aguarda aprovação há vários anos. Mesmo o ambiente do agronegócio
também não é o melhor, pois a maior parte dos empresários são
agricultores em tempo parcial, colocando à frente dos seus
empreendimentos gestores geralmente pouco qualificados.
Para que serve investir no conhecimento se o petróleo paga tudo,
inclusive o conhecimento que vem de fora para dar respaldo a decisões
políticas sem fundamento? O que as pessoas parecem ignorar, ou, na
esteira de uma outra prática, desejam que não aconteça e confundem tal
desejo com a realidade, é que o petróleo tem os anos contados, o que
torna o conceito de desenvolvimento sustentável para Angola mais
pertinente do que nunca.
E o conhecimento, afinal, está aí à mão. Em meados da década de 90,
uma equipe da FAO explicou ao governo angolano que a sua aposta deveria
ser, prioritariamente, na agricultura familiar. Os pequenos
agricultores constituem a maioria, encontram-se no terreno e já
provaram que podem expandir a produção, de modo a garantir sua
alimentação básica e fornecer bens para o mercado, incluindo o
internacional, o que está estatisticamente comprovado desde antes de
1975. Ademais, o crescimento da produção familiar teria grande impacto
na economia nacional, na geração de emprego e na erradicação da
pobreza, pois a produção acrescida em unidades de pequena dimensão
resulta em uma melhor utilização dos recursos domésticos – sobretudo
terra e trabalho –, exige poucas divisas para maquinaria,
fertilizantes, pesticidas e conhecimento estrangeiro, e por isso
torna-se menos dependente.
Uma política a favor da agricultura familiar assegura desde logo a
alimentação de um número elevado de famílias, resulta numa expansão
mais justa de benefícios do desenvolvimento econômico, contribui para
padrões de vida rural mais elevados e incentiva o consumo, e,
consequentemente, estimula a expansão industrial em Angola, como
aconteceu no passado com o famoso boom econômico dos anos 60
e 70. Enfim, uma economia rural próspera reduziria os fatores de
pressão que induzem a migração para as cidades, e o aumento dos
rendimentos dos pequenos agricultores poderia tornar-se o motor do
desenvolvimento rural e, por conseguinte, a chave para uma redução da
pobreza estrutural.
Parece simples, não é verdade? Mas não é novidade. O agrônomo
francês Renê Dumont já havia sugerido algo semelhante aos governantes
africanos no início dos anos 60 e as suas ideias foram compiladas num
livro que ficou célebre, A África começa mal, que lhe valeu a
interdição de entrada em vários países do continente. Perante o
desastroso desempenho da agricultura africana, nos anos 80 ele voltou à
luta com novo livro, Pela África, eu acuso!, que poderia bem ter outro título: “Eu não vos avisei?”.
O que aconteceu foi que, ao contrário do discurso oficial, o Governo
angolano não foi capaz de implementar ao longo destes anos uma política
justa de desenvolvimento da agricultura familiar, que permitisse a
transformação dos camponeses em pequenos ou médios empresários, a
melhoria tecnológica, o aumento da produtividade da terra e do
trabalho, o aumento da renda familiar e até a garantia da posse da
terra.
Nas áreas rurais não há comércio formal e o informal é intermitente
e penalizante para os produtores. E deste modo não há incentivos. Não
há serviços sociais básicos, como o acesso à água potável, à saúde, à
escola – ou não há com a qualidade desejável – que possam estimular a
presença de jovens nas suas aldeias, preferindo estes partir para as
cidades para viverem de biscates. Serviços estruturados de extensão
rural e de medicina veterinária ainda são uma miragem. Os bancos estão
geográfica e estruturalmente a uma enorme distância. A pesquisa
científica e as instituições públicas em geral quase ignoram a
existência da agricultura familiar. Assim, não poderia contribuir para
a diversificação da economia. Pior que tudo, instalou-se a ideia de que
a agricultura familiar, essa mesma que foi responsável pela alimentação
dos angolanos e pela exportação no passado, era, afinal uma agricultura
de subsistência, e, por isso, condenada à estagnação.
Agronegócio e agrocombustíveis
O governo angolano caminha, então, no sentido oposto ao indicado
pela FAO e por Dumont. Em vez de aplicar uma política de transformação
gradual de sua agricultura que possa garantir a segurança alimentar,
aposta na “importação” de uma outra agricultura, baseada no agronegócio
e nos agrocombustíveis, para a qual o país ainda não está preparado e
só o voluntarismo e o fascínio dos angolanos pela “modernização” a
qualquer preço explicam essa aposta. Hoje isso é possível, com os meios
técnicos e científicos de que a humanidade dispõe, mas é insuportável
porque os custos de produção são assustadores.
Se a crise financeira trouxe algo de positivo, uma delas foi o
alerta para algumas das opções governamentais e particulares
extremamente dispendiosas e com resultados mais do que duvidosos. Há já
alguns sinais de dificuldades, insucessos e falências que alguns
julgavam impensáveis. Por incrível que possa parecer, algumas das
grandes empresas têm transtornos para vender o milho produzido, pois
não têm organização nem experiência para enfrentar dificuldades
inesperadas. Mas esta é também uma aposta que vai conduzir,
inevitavelmente, à exclusão da maioria dos agricultores angolanos e à
degradação da biodiversidade, o que terá consequências sociais,
políticas e ambientais desastrosas.
Uma aposta que, como diria Mia Couto [célebre escritor moçambicano],
pode produzir ricos ou endinheirados, mas nunca a riqueza de que
necessitamos para sermos um povo desenvolvido.
Fernando Pacheco
Tradução: Roberto Blum
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Fotografia retirada daqui