A escola da diversidade
Como toda adolescente de sua idade, 15 anos, Vitória é vaidosa.
Adora maquiagem, faz sempre as unhas, cuida com zelo dos cabelos e adora
sapatos. Mas embora a alma e o espírito sejam femininos desde que se
entende por gente, ela nasceu “Vitor”. A mãe insiste em chamá-la assim,
pelo nome masculino. Não é preconceito. Ela sabe e aceita que o filho
tenha outra orientação sexual, mas ainda não está totalmente resolvida
quanto à opção dele de ser mulher.
É fato que a sociedade não
tolera as travestis e existem poucas opções para elas além da
prostituição. Apesar da pouca idade, porém, Vitor (ou Vitória) não tem
dúvidas sobre sua sexualidade. Pelo contrário, tem uma convicção
corajosa. Quando soube através de um jornal local que uma “escola LGBT”
começaria a funcionar em março ali mesmo, em Campinas, a mãe de Vitor
imediatamente tratou de conseguir o telefone do lugar. As matrículas já
tinham se encerrado, mas ela não desistiu. Foi com o filho pessoalmente
até lá. Deco Ribeiro, o diretor, levou um susto. “Eu esperava o Vitor,
mas quem chegou lá foi a Vitória. Estava com uma blusinha caída no
ombro, calça colada e presilha no cabelo. Eu não tinha como a deixar de
fora.”
Quando as aulas começarem, Vitor vai aprender canto,
dança, artes cênicas e maquiagem. E quando chegar ao último estágio,
poderá, se quiser, apresentar-se artisticamente e ganhar dinheiro
animando festas e fazendo shows. Foi justamente da drag Lohren Beauty,
ícone da cena gay de Campinas, a ideia de criar uma escola LGBT. O plano
inicial era modesto: oferecer a jovens homossexuais da cidade um curso
intensivo de formação drag, da maquiagem ao canto, passando pela dança e
o teatro. Lohren procurou o amigo Deco Ribeiro, professor de jornalismo
da Facamp, para ser seu sócio. Os dois escreveram um projeto e o
enviaram aos canais competentes. Isso foi em meados do ano passado. Já
estavam meio desenganados quando, no fim do ano, receberam a boa
notícia. A escola LGBT fora duplamente contemplada – com um patrocínio
do governo estadual e a inclusão do projeto no programa Pontos de
Cultura, do Ministério da Cultura.
Ao todo, a dupla contará com
R$ 180 mil para investir até o fim de 2010. A notícia se espalhou rápido
e logo começaram a aparecer interessados. O que eles não esperavam era a
reação que viria. A história de que uma escola LGBT estava para entrar
em funcionamento causou alvoroço e o movimento gay se dividiu. Se de um
lado alguns louvaram a iniciativa, outros acharam que ela só segregava
mais. “Muita gente no movimento viu a história por cima e saiu
criticando. Acharam que era uma escola regular, com aulas de matemática e
ciência. Não é nada disso. A ideia é que o jovem gay não precise passar
parte da adolescência fingindo ser hetero. Muita gente se deixou levar
pelo nome ‘escola gay’ ou ‘escola para gays’. Besteira. A escola nunca
se propôs a ser um ambiente fechado, só para gays. Assim como gays,
lésbicas e travestis podem circular e expressar sua sexualidade em todos
os lugares, qualquer pessoa, de qualquer orientação sexual, é muito
bem-vinda”, ressalta Deco Ribeiro.
Mas a crítica mais dura veio
de um dos mais prestigiados jornalistas e blogueiros do Brasil.
“Francamente! Sou a favor dos direitos das minorias – especialmente das
maiorias em desvantagem social. Mas não se pode confundir direitos com
segregação, que é um dos problemas de vários movimentos de minorias. E
usar recursos da União para promover esse aquário? Qual o sentido de uma
escola gay? Como se falar em uma 'cultura gay'? Por acaso, dança,
teatro, música, criação literária são prerrogativas de gays? A melhor
defesa das minorias sexuais é o combate pertinaz ao preconceito e a
defesa incessante da sua inclusão social. Agora, começam a tratá-las
como índios, que precisam ser preservados da civilização”, escreveu Luis
Nassif. A posição do jornalista foi a que mais chocou o diretor da
escola. “Ele está equivocado. O espaço só agrega. Não é uma escola só
para gays, aqui eles podem se expressar como são, enquanto a escola
tradicional reprime. Nós queremos mostrar o LGBT para a sociedade”.
Para
o ministro da Cultura Juca Ferreira, essa polêmica se reduz a uma
questão semântica. “Eu também estranhei quando vi o nome 'escola LGBT'.
Isso induz ao erro porque parece que é uma escola tradicional. Mas esse
detalhe a gente corrige. Não é escola, é um centro cultural”, diz. A
questão da segregação, aliás, é um tema caro ao movimento gay, que está
conseguindo ampliar consideravelmente o leque de políticas públicas que
incentivam a diversidade. Quando surgiu a ideia de criar abrigos
específicos para moradores de rua homossexuais, a reação foi intensa.
“Nós somos contra a criação de abrigos. Esse movimento surgiu porque, de
fato, a população e os agentes públicos só estão preparados para lidar
com o público hetero. Mas não podemos isolar os gays. De qualquer forma,
o caso da escola é diferente. É preciso construir políticas públicas
por demanda e tudo que é novo gera resistência”, opina Michelle Meira,
coordenadora geral de promoção de políticas LGBT do governo federal. Em
Campinas, no entanto, a resistência à escola foi menor que o interesse
pela novidade. Entre os 60 classificados da primeira turma, há alunos
heterossexuais. Por precaução, a direção não divulga publicamente o nome
completo de nenhum deles, nem mesmo dos professores. Além dos cursos, a
escola promoverá debates com a comunidade. O tema? Intolerância, claro.
Cultura
tipo exportação A escola LGBT é um exemplo da diversidade de
projetos contemplados pelo programa Pontos de Cultura. Criado em 2003
pelo então ministro Gilberto Gil, o programa tem uma premissa simples:
injetar recursos em iniciativas culturais locais. Com 2.500 unidades
implantadas no Brasil, a ideia começou a chamar a atenção de governos e
organizações em países da Europa e América Latina.
A Itália foi a
pioneira a adotar o modelo. Criou o projeto Officine dell’Arte,
inspirado no exemplo brasileiro. O projeto opera com oficinas de arte e
cultura multimídia destinadas ao público jovem, em áreas urbanas
deterioradas. No início de 2010, foi assinado o Acordo de Cooperação
Técnica entre o Ministério da Cultura e a Associação Afro-Brasileira de
Dança, Cultura e Arte (Abrasa), que implementou o Ponto de Cultura
Internacional Brasileiro e Afro-Brasileiro na Áustria. Em março, Juca
Ferreira fechou convênio com o secretário nacional de Cultura do
Paraguai e com a Itaipu Binacional. Cerca de 30 Pontos serão instalados
no país vizinho e na região de fronteira. Nessa entrevista para Fórum,
Juca Ferreira fala sobre a vocação exportadora da sua pasta.
Fórum
– O que o Brasil ganha investindo na criação de Pontos de Cultura no
exterior?
Juca Ferreira – O Brasil exporta muitos
imigrantes. Esse contingente passa tempo demais vivendo sem contato com
sua cultura, podendo perder o vínculo. Chegam até uma segunda ou
terceira geração criada fora. É preciso que esses brasileiros mantenham
algum tipo de ligação com seu país e com sua língua. Além disso, existe
uma questão financeira. Hoje, os imigrantes mandam ao Brasil todo ano
remessas de dinheiro que equivalem ao montante obtido pela exportação de
soja.
Fórum – Como é feita essa operação no exterior?
Juca
– Nossa legislação não prevê gasto fora do Brasil. Então
estamos fazendo parcerias com o Ministério das Relações Exteriores, que é
vocacionado para isso. Nosso objetivo não é cooptar, mas estimular
injetando recursos.
Fórum – Pensa em abrir Pontos de
Cultura em países em crise? Juca – Estamos discutindo no
ministério a criação de um Ponto de Cultura no Haiti.
Essa
matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 84. Nas bancas.
Pedro Venceslau