Guardian, UK (editorial) via Viomundo
Tradução Caia Fittipaldi
A névoa da guerra é excepcionalmente densa no Afeganistão. No momento
em que se dissipa, como hoje, com a publicação, pelo Guardian, de
excertos de relatos secretos de militares dos EUA, revela-se paisagem
muito diferente daquela a que nos habituamos. São relatos de guerra
escritos no calor da hora e mostram um conflito no qual reinam a mais
brutal confusão e todos os desacertos, sem qualquer plano ou projeto. Há
muitas diferenças entre o que mostram esses documentos e a guerra
organizada, bem embalada, da versão ‘pública’ dos comunicados oficiais e
dos flashes necessariamente resumidos de jornalistas incorporados à
tropa.
No material agora publicado há mais de 92 mil relatórios de ações dos
militares norte-americanos no Afeganistão entre janeiro de 2004 e
dezembro de 2009. Os arquivos foram distribuídos por Wikileaks, website
que publica material não rastreável de várias fontes. Em colaboração com
o New York Times e Der Spiegel, o Guardian trabalhou durante semanas
nesse oceano de dados, até extrair deles a textura oculta e as histórias
de horror humano que são o dia a dia da guerra.
Esse material teve de ser tratado como o que é: um relato
contemporâneo ao conflito. Alguns dos relatórios de inteligência não têm
fonte confirmada: alguns dos aspectos da contagem do número de mortes
entre civis não parecem confiáveis. São relatos – classificados como
secretos – enciclopédicos, mas incompletos. Foram removidas do que
adiante se lê todas as informações que ponham em risco a segurança dos
soldados, de informantes locais e de agentes colaboradores.
O quadro geral que emerge é extremamente perturbador. Há relatos de
cerca de 150 incidentes nos quais as forças da coalizão, inclusive
soldados britânicos, mataram e feriram civis, a maioria dos quais jamais
divulgados; de centenas de confrontos de fronteira entre soldados
afegãos e paquistaneses, de dois exércitos supostamente aliados; da
existência de uma unidade de forças especiais cuja única missão é
assassinar líderes Talibã e da al-Qaeda; do massacre de civis apanhados
em locais onde aconteçam explosões das bombas de fabricação caseira dos
Talibã; e uma longa lista de incidentes nos quais os soldados da
coalizão atiraram uns contra os outros, também envolvendo soldados
afegãos, com mortos e feridos.
Ao ler esses relatos, é fácil suspeitar de que reine por lá o mais
absoluto descaso pela vida de inocentes. Um ônibus que não para para uma
patrulha a pé é metralhado (4 passageiros mortos e 11 feridos). Os
documentos contam como, na caça a um guerrilheiro local, uma unidade das
Forças Especiais executou sete crianças. As crianças não eram
prioridade. Relato assinalado “Noforn” (ing. not for foreign elements of
the coalition, “proibido para elementos estrangeiros [não da coalizão,
locais, portanto]”) sugere que a prioridade daquela unidade foi
esconder, o mais rapidamente possível, o sistema de mísseis móveis que
haviam usado na ação.
Nesses documentos, as agências de inteligência do Irã e do Paquistão
organizam manifestações e tumultos. O Serviço Secreto do Paquistão
(Inter-Services Intelligence, ISI) tem ligações com os mais conhecidos
senhores-da-guerra. Diz-se que o ISI teria entregue 1.000 motocicletas a
Jalaluddin Haqqani, um desses senhor-da-guerra, para serem usadas em
ataques suicidas nas províncias de Khost e Logar, e que estariam
implicados em sequência impressionante de ações, desde atentados contra a
vida do presidente Hamid Karzai até o envenenamento dos carregamentos
de cerveja para os soldados ocidentais. São relatos que não há como
comprovar e é possível que sejam parte de uma barreira de falsa
informação distribuída pelo serviço secreto afegão.
Mas a resposta da Casa Branca ontem – que negou que o exército
paquistanês seja tão direta e especificamente ligado aos guerrilheiros
locais – basta, para que se tenha de definir como inaceitável o status
quo na guerra do Afeganistão.
Para a Casa Branca, os “paraísos seguros” para “terroristas” em
território paquistanês continuam a ser “ameaça intolerável” às forças
dos EUA. Sejam ou não, esse não é um Afeganistão que EUA ou Grã-Bretanha
estejam a alguns meses de entregar, embrulhado em papel de presente e
fitas cor-de-rosa, a um governo nacional soberano em Cabul. Antes,
exatamente o contrário. Depois de nove anos de guerra, o caos, sim,
ameaça tornar-se incontrolável. Guerra ostensivamente feita para
conquistar corações e mentes afegãs não será vencida do modo como as
coisas parecem estar, por lá.