terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Legado que mantém Florestan Fernandes vivo


Florestan FernandesFlorestan Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e que contém contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância para as Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande sociólogo no Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das Ciências Sociais em nível internacional.
Há quinze anos, a morte tirou Florestan do nosso convívio. Já faz tanto tempo, e Florestan continua fazendo tanta falta, com sua lucidez, sua coragem, sua inteligência e sua integridade, buscando sempre encontrar a raiz dos grandes problemas postos no seu tempo, tentando problematizá-los de maneira mais consistente tanto teórica quanto politicamente, apontando assim novos caminhos para enfrentá-los, tendo sempre como norte as possibilidades da construção de uma sociedade nova, socialista. Florestan fala de “utopias igualitárias e libertárias, de fraternidade e felicidade entre os seres humanos”.
Guardamos dele sua lembrança e seu exemplo. Acima de tudo, porém, podemos mantê-lo presente (a nós e, principalmente, às nossas lutas) por meio do legado que nos deixou com os seus escritos. Aí suas idéias, suas formulações e seus embates – teóricos e políticos – continuam vivos, atuais, presentes, motivadores. Aí podemos continuar a falar de Florestan no tempo presente, e assim recolher seu ensinamento para enriquecer o pensamento e para clarificar o encaminhamento das lutas que o presente requer.
Florestan Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e que contém contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância para as Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande sociólogo no Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das Ciências Sociais em nível internacional.
Transformou em profundidade o padrão do trabalho científico da Sociologia no Brasil, configurando o que para ele constituía a Sociologia crítica. De acordo com Florestan, a produção desta Sociologia resulta da conjugação de dois esforços simultâneos. Por um lado, requer trabalho rigoroso e metódico de pesquisa balizada por padrões propriamente científicos. Por outro lado, ciente de que a neutralidade científica é um mito, requer que o próprio trabalho científico assuma compromisso ético e político com a transformação social em favor dos oprimidos e humilhados. Assim, para Florestan Fernandes, a Sociologia crítica é ciência que, no movimento mesmo de fazer-se como ciência, é engajada.
A obra de Florestan Fernandes é vasta e complexa. Há, porém, uma linha de investigação, que atravessa toda a sua produção madura, que confere conteúdo histórico, sociológico e político à ótica dos dominados e à perspectiva de transformação social, das quais Florestan jamais se afastou. É a investigação que o leva à formulação do seu conceito de capitalismo dependente como uma forma específica do desenvolvimento capitalista. Este conceito e sua teorização constituem uma contribuição teórica e metodológica importantíssima de Florestan Fernandes para a teoria do desenvolvimento capitalista. E abriga conseqüências políticas da maior relevância. Levá-las em consideração pode afetar significativamente o posicionamento quanto a políticas voltadas para a transformação social mais efetiva e mais profunda. Trata-se, portanto, de questões que permanecem importantes no cenário político.
O grande problema posto era o chamado “desenvolvimento”. Era apresentado como um problema econômico a demandar equacionamento político. Tal como estava posto, esse problema continha também um quadro supostamente teórico, a oferecer sentido às políticas supostamente necessárias para “resolver” o problema que desse modo era proposto: as chamadas “teorias” da modernização ou do desenvolvimento.
À época, essas “teorias” eram bastante discutidas e criticadas no âmbito acadêmico, mas Florestan foi dos primeiros a questioná-las mais a fundo, em pesquisa que o levou a teorizar o capitalismo dependente. Ao tempo em que Florestan finalizava a sua concepção do capitalismo dependente como um conceito, e logo depois que ele tornou pública a sua formulação, a chamada “escola da dependência” ensaiava seus primeiros passos, mas estancava a meio caminho entre as “teorias” do desenvolvimento/ modernização e a teorização de Florestan sobre o capitalismo dependente. Na verdade, os dependentistas se aproximavam de uma parte das descobertas/construções teóricas e metodológicas de Florestan, mas as despiam de alguns de seus atributos essenciais, exatamente aqueles que colocavam em questão o desenvolvimento desigual e combinado da expansão do capitalismo naquele momento.
Para teorizar o capitalismo dependente, Florestan se opõe às noções de desenvolvimento e de subdesenvolvimento oriundas das concepções evolucionistas e deterministas das chamadas “teorias” da modernização. Nega essas duas noções e, para analisar, compreender e ser capaz de explicar a condição da nossa sociedade (e das sociedades que Florestan identificava na sua teorização como sendo do mesmo tipo que a nossa), recorre às formulações sobre o imperialismo.
Ao entender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo da perspectiva dos povos e das regiões que a expansão capitalista mundial incorpora, Florestan consegue dar conta de que esse processo mesmo de incorporação implica necessariamente submeter esses povos e essas regiões, sob formas historicamente diferenciadas, aos desígnios e aos interesses maiores do capital que deste modo se realiza e se amplia.
A compreensão do capitalismo dependente como especificidade da expansão do capitalismo em sua fase monopolista permite entender que o “desenvolvimento” que essa expansão propõe para as regiões para as quais se dirige é desenvolvimento desse capitalismo monopolista e que significa incorporar essas regiões submetendo-as. Esta concepção do capitalismo dependente em Florestan Fernandes contém ainda dois desdobramentos muito importantes. Primeiro, que os setores dominantes locais das regiões tornadas capitalistas dependentes têm participação ativa e decisiva para a concretização da política que visa aquele “desenvolvimento”. Para Florestan, eles são parceiros, menores e subordinados, mas parceiros, do grande capital em expansão pelo mundo. São intermediários, mas enquanto intermediários são imprescindíveis, e contam com um retorno para si dos ganhos desse modo obtidos pelo capital em expansão. Esta lógica implica uma super-exploração dos trabalhadores e da massa da população das regiões capitalistas dependentes.
Segundo, que a democracia possível sob o capitalismo dependente é sempre uma democracia restrita, a tal ponto que é mais correto designá-la como uma autocracia, na qual a grande maioria do povo fica excluída dos direitos, direitos que supostamente uma democracia deveria estender a todos os cidadãos. Desse modo, a super-exploração implica também como conseqüência uma super-dominação do conjunto dos setores subalternizados da população nessas regiões.
Algumas vezes se tenta separar o Florestan Fernandes cientista e o Florestan Fernandes político. É preciso considerar, porém, que a descoberta da verdade da dominação, da submissão, da subalternização ou da exploração, é, como tal, profundamente questionadora da realidade social estruturada sobre esses processos de dominação, de submissão, de subalternização ou de exploração. De tal modo que a exposição desses processos é em si mesma profundamente política, e tanto mais eficaz na crítica que contém quanto mais clara e sistematicamente fundamentada.
Estas são análises estruturais, nas quais, no entanto, é possível encontrar a profundidade das raízes das tendências e dos comportamentos políticos das classes dominantes das regiões capitalistas dependentes. Florestan, no entanto, está sempre atento também às conjunturas e sabe perfeitamente que para ser concreta uma análise precisa conjugar os determinantes estruturais com os condicionantes conjunturais. Era desse modo que ele procurava trabalhar.
Esse tipo de pesquisa científica, abrangente e crítica, bem como o magistério que o acompanhava de perto, onde mais poderiam ser realizados a não ser na universidade pública? Em 25 de abril de 1969, com base no Ato Institucional nº 5, a ditadura imposta no Brasil pelo golpe civil-militar de 1964 excluiu Florestan Fernandes do serviço público em todo o território nacional. Cortava assim irremediavelmente a continuidade de pesquisa científica importante, conduzida por ele e por seus assistentes e colaboradores mais próximos, pesquisa que era resultado de trabalho longamente acumulado em instituição acadêmica superior que, enquanto instituição pública de ensino superior, se supunha resguardada em sua autonomia pedagógica, didática e de pesquisa. Mas tal suposição o arbítrio da ditadura revelou ser equivocada.
Com essa exclusão, Florestan perdeu o locus próprio para exercer o seu ofício como cientista. Precisou redimensionar suas atividades. Continuou suas pesquisas, mas desde então sem a interlocução permanente e sistemática de seus colegas e colaboradores e de seus estudantes, e sem apoio institucional, portanto de forma mais dispersa e descontinuada. Mesmo assim, retomou o seu trabalho individualmente, seguiu pesquisando e publicando os resultados de seus estudos, produzindo análises sempre lúcidas, perspicazes e iluminadoras.
Um dos traços marcantes da vida e da trajetória de Florestan foi sempre a defesa da educação pública, gratuita, laica, de qualidade, para todos. Na primeira Campanha em Defesa da Escola Pública, Florestan foi muito atuante e combativo e sua liderança foi reconhecida como fator importante da ampliação e da consistência da Campanha. Mas não apenas em momentos de grande mobilização como aquele, Florestan Fernandes esteve sempre presente com seu apoio claro, público e firme a todas as reivindicações e lutas dos movimentos dos professores, dos educadores e dos estudantes, de todos os níveis, em defesa da educação pública e gratuita, da elevação da sua qualidade e da sua democratização.
Como Deputado Federal Constituinte, Florestan foi o interlocutor privilegiado que o Forum Nacional em Defesa do Ensino Público e Gratuito na Constituinte teve na Subcomissão e na Comissão de Educação do Congresso Constituinte. Sua atuação para a melhor acolhida às propostas do Fórum foi importantíssima. Mas Florestan dialogava diretamente com o Forum e com os movimentos que o constituíam e chegava mesmo a ajudar, com sua análise sempre atenta e perspicaz, a nossa gestão das dificuldades criadas pelos inevitáveis atritos iniciais e conflitos eventuais entre os encaminhamentos de tantos movimentos de setores diferenciados no interior do Forum. Sem o Deputado Federal Constituinte Florestan Fernandes as lutas pela defesa da educação pública na Constituinte certamente teriam sido ainda muito mais difíceis do que foram.
A educação foi sempre um tema muito caro a Florestan, tema sobre o qual ele elaborou uma extensa e fecunda produção. Se há um fundo comum a essa produção, ele se forma em torno da educação pública gratuita de alta qualidade e altamente democratizada. Afinal, a escola pública e as bibliotecas públicas foram fundamentais para a vida de Florestan, aquele jovem de origem lumpen que se viu obrigado pelas necessidades de sobrevivência a trabalhar desde os seis anos de idade e que vislumbrou na educação a perspectiva de, por meio de seu próprio esforço, determinação e disciplina, poder transformar a sua condição social para, como ele dizia, “tornar-se gente” e ser reconhecido “como gente”. Leitor voraz, com sua inteligência e sua aplicação permanente à busca de saber, Florestan perseguiu, com determinação obstinada os seus objetivos através da educação e a partir do campo da educação tornou-se Florestan Fernandes, reconhecido nacional e internacionalmente como grande cientista, como grande professor e como destacado intelectual defensor das grandes causas dos dominados e subalternizados, dos oprimidos e humilhados.

* Mirim Limoeiro Cardoso é professora aposentada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Planos contra Dilma e o acordo com os “russos”

Eduardo Guimarães no Blog da Cidadania




Falta muito pouco tempo para o dia da eleição presidencial mais importante da história recente do Brasil. A contar desta segunda-feira, serão 13 dias até que o povo possa dizer o que está pensando sobre o que está vendo. Pois é: faltam menos de duas semanas. Tudo o que se disser agora sobre o desfecho da campanha eleitoral poderá ser conferido em breve, portanto.
Neste momento, fazer previsões pode ser um perigo para a própria credibilidade, em que pese que as pesquisas induzem à crença de que Dilma Rousseff deve vencer José Serra já no primeiro turno. Mas como existe uma fábrica de escândalos contra a candidatura do PT que trabalha em três turnos, de segunda a segunda, a grande especulação é sobre o resultado desse massacre acusatório.
No fim de semana, Veja e Folha de São Paulo, os veículos mais dedicados a produzir escândalos contra a principal adversária de Serra, despejaram mais uma leva deles sobre a opinião pública. Nesta segunda-feira, a Folha divulga mais acusações – e notem que escrevi no plural.
Entre o colunismo serrista, para que o leitor tenha uma idéia de como o clima de radicalização só faz aumentar basta dizer que um repórter da Folha, de nome Fernando Canzian, ao comentar as críticas de Lula à imprensa chama o presidente de “anão”. Foi em artigo publicado no UOL. Artigo que ainda diz que o presidente “já vai tarde”, aludindo ao fato de que seu mandato está terminando.
Em todos os meios de comunicação de massa, os ataques e acusações a Dilma, ao PT e ao governo Lula devem estar dominando alguma coisa próxima de 90% do noticiário. As acusações desse noticiário se confundem com as que faz Serra tanto em seu programa na tevê e no rádio quanto em cada oportunidade em que a mídia lhe dá voz – em debates, entrevistas etc.
O Brasil chegará ao dia da eleição presidencial tendo discutido apenas acusações a Dilma, ao seu grupo político e ao governo que integrou até há pouco. Até agora, a única exceção de grande mídia que propôs reflexão do eleitor sobre os rumos do país foi o programa da candidata do PT no horário eleitoral gratuito, que irrompe no horário dito “nobre” de rádios e tevês e, assim, tem enorme potencial de audiência, por mais que essa audiência caia em períodos eleitorais.
Com essa diferença descomunal de espaço para cada candidato nas grandes mídias, qualquer observador estrangeiro, se não conhecer a fundo a realidade política do Brasil, dirá que Dilma não tem qualquer chance de se eleger. A diferença de condições na disputa com seus dois principais adversários, é enorme. Se já tivéssemos instituições mais independentes do poder econômico, a Justiça eleitoral já teria tirado várias tevês e rádios do ar como punição por fazerem campanha para um lado. E isso inclui a Globo
Note-se que a candidata laranja de Serra, Marina Silva, posa de “ética”, de “heróica” e de “petista convertida ao bem”; seu chefe posa de “vítima” e de “ético”, simultaneamente. E os dois principais adversários da petista recebem apoio velado, mas claramente visível, por parte de colunistas, articulistas, editorialistas e até de apresentadores de programas jornalísticos.
Contudo, para quem está vivendo esse processo por dentro, como o eleitorado brasileiro, só sendo muito ingênuo para não notar que os ataques a Dilma foram aumentando de acordo com o aumento de suas intenções de voto.
Dessa maneira, para impedir que as pessoas enxerguem uma imagem sua que vai se solidificando – sobretudo depois que Lula, campeão de popularidade e de credibilidade, acusou parte da imprensa de ter se convertido em partido político –, essa imprensa já começa a ter que se explicar.
Mesmo assim, na parte da imprensa que reage com o fígado à crítica de Lula à sua isenção, os insultos a ele proliferam. Alguns menos afoitos – ou suicidas –, porém, ainda optam por afirmar que tratam os dois lados da mesma forma, apesar do bombardeio ininterrupto que integram, e não passam recibo fazendo ataques virulentos ao presidente.
Diante da lembrança que o PT levanta de que em véspera de eleição é sempre assim contra seus candidatos, esses meios de comunicação desmentem. Todavia, não se entende como esperam que as pessoas se esqueçam das eleições anteriores ao serem lembradas delas pela campanha petista.
Espontaneamente, possivelmente a maior parte não se lembraria de como as coisas sempre foram em época de eleição, mas essa lembrança está sendo resgatada e, assim, fatalmente encontrará eco no imaginário popular. Simplesmente por ser verdadeira.
Até acredito que a tática funcionaria com aquele que vive no Brasil e que não tenha tido a experiência de ser bombardeado por propaganda anti-Lula em alguma eleição nos últimos vinte anos.  Mas será que essa pessoa existe?
Impressiona, ainda, como a coalizão tucano-midiática não consegue aceitar um fato que pode ser comprovado com a mera análise dos arquivos desses meios de comunicação. Todavia, vamos em frente que o ponto não é este.
Mesmo tendo uma mísera fração do tempo e do espaço que a grande mídia dedica a atacá-la e até a defender Serra e Marina, Dilma e sua campanha têm a seu favor um claro entendimento da sociedade de que o país vai bem.
Pergunta: quanto tempo é preciso para lembrar às pessoas de todas as classes sociais e regiões do país que as suas vidas estão melhorando a olhos vistos? Os cerca de trinta minutos diários de Dilma – divididos em blocos – serão suficientes?
O que será mais forte, a propaganda oficial e extra-oficial (imprensa) de Serra, que mostra só o que vai mal no país, ou a percepção dos eleitores sobre como estão as suas vidas e de como estavam antes de Lula? Poderá a propaganda fazer as pessoas esquecerem que melhoraram de vida, e de quanto melhoraram?
Reportagem de uma revista semanal, se não me engano, versou sobre a nova empregada doméstica, que, agora, muitas vezes chega a ter carro zero quilômetro e a fazer faculdade.
Aliás, em São Paulo vai se tornando cada vez mais difícil conseguir uma doméstica, aquela migrante nordestina ou mineira que morava na casa da família e que trabalhava de segunda a segunda, dormindo em um quarto minúsculo e sem janela depois de, às vezes, 15, 16 horas de trabalho. O que se está conseguindo são diaristas, e elas cobram cada vez mais caro.
Na região em que vivo, considerada “nobre” (próxima à avenida Paulista, em São Paulo), faxina de um apartamento de dois dormitórios não sai por menos de 80 reais por umas seis horas de trabalho, quando muito. Estamos falando de quase cinqüenta dólares. Se essa pessoa trabalhar vinte dias por mês, ganhará quase 2 mil reais…
E o que é que a oposição oferece a essa empregada doméstica que, supostamente, integraria o público mais ingênuo e que melhor poderia ser manipulado com a ajuda prestimosa da imprensa? Vitimização de Serra, denuncismo e, agora, promessas do tucano de aumento do salário mínimo e dos benefícios dos aposentados – tudo acima do que o governo Lula tem dado, é claro.
O aparato difamatório de Serra contra o PT tem uma dimensão conhecida, porém. Collor, FHC, Serra e Geraldo Alckmin tiveram aparato igual em 1989, 1994, 2002 e 2006. Mas funcionou só até 1994. De 2002 para frente, parou de funcionar. Em 2006, apesar de o país não estar nem aos pés do que está hoje em termos de economia e de sua imagem internacional, Lula venceu com folga, ainda que no 2º turno.
Surgem, assim, duas questões fundamentais:
1 – Por que uma estratégia que vem fracassando durante os últimos oito anos continua sendo usada com tanto empenho por Serra e pelos meios de comunicação que estão sempre do lado contrário ao do PT desde a redemocratização de fato, em 1989?
2 – É possível esses meios de comunicação convencerem o eleitorado de que são isentos apesar do bombardeio só sobre a candidata de um partido que todos sabem que é seu eterno alvo, e de que nas outras campanhas eleitorais esses meios não fizeram o mesmo que fazem agora?
Segundo o “tracking” diário contratado pelo portal IG e pela TV Bandeirantes ao instituto Vox Populi, nem o caso Erenice Guerra, que não sai um só minuto das manchetes, foi suficiente para abalar a vantagem imensa de Dilma sobre Serra. Todavia, o bombardeio só faz aumentar.
Apesar de a imprensa serrista desdenhar do Vox Populi, sabe que o instituto foi o que acertou mais, até agora. Além disso, ninguém imagina que a Folha, que tem o Datafolha, e a Globo, que tem o Ibope, não sabem o que está acontecendo. Contudo, ainda estão por sair pesquisas de campo mais aprofundadas sobre o período em que explodiu o caso Erenice.
Entretanto, o histórico desse tipo de denúncia não favorece a crença de que desta vez irá funcionar. Dilma, neste ano eleitoral, sofreu várias outras campanhas. A oposição conseguiu até levá-la ao Congresso para depor. Testemunhas com maior credibilidade do que aquele escroque que o impagável Paulo Henrique Amorim apelidou de “Roubinei” acusaram a petista frontalmente e, ainda assim, ela só fez crescer nas pesquisas.
A resposta à primeira questão lá de cima, portanto, é a de que o atual bombardeio não visa uma eleição que cada vez mais parece definida. Visa o governo Dilma Rousseff. E a resposta à segunda questão é a de que, obviamente, não será possível convencer o eleitorado a votar em Serra por ele supostamente ser o mocinho e Dilma, a bandida – e, talvez, por razão nenhuma.
A campanha difamatória contra Dilma, portanto, julgo que servirá para vários propósitos em um seu cada vez mais provável governo. Em minha opinião, tudo será tentado. Desde o impeachment até um golpe “branco”, ou seja, fundado em investigações ou inquéritos policiais que venham a ser instalados com base nas acusações que se sucedem.
Pelo visto, haverá denúncias até no dia da posse de Dilma caso não consigam impedi-la de tomar posse. Contudo, para sucesso desse novo plano infalível da mídia serro-tucana, haverá que combinar com os russos…

domingo, 19 de setembro de 2010

REVOLUÇÃO FARROUPILHA: MITO E VERDADE

O que realmente se comemora no dia 20 de setembro? O texto de Fausto Brignol,publicado em seu blog, nos possibilita a percepção de uma outra visão e esclarecimento sobre esse tema tão alardeado por nós gaúchos.Leia abaixo o texto na íntegra...


Foi uma guerra gerada por grandes interesses econômicos, quando o povo foi manipulado para acreditar que estava lutando pela independência e liberdade. Guerra que terminou, depois de 10 anos, quando as elites oligárquicas dos dois lados fizeram um acordo que satisfazia a todos – menos ao povo.

     Descontentes com a desigual distribuição de renda que era feita pelo Governo Imperial em relação às suas províncias, com os exorbitantes impostos aos produtos riograndenses, que eram vencidos pela concorrência dos platinos; aproveitando o período de transição da Regência de Feijó (entre Dom Pedro I e Dom Pedro II) as elites gaúchas, marcadamente os grandes latifundiários, aproveitaram o momento histórico para derrubar o governo da província e lutar por seus interesses pessoais. 

     Era sua idéia, com esse ato, forçar o governo imperial a decidir-se por uma solução federalista que daria maior autonomia econômica e política às províncias do Império.

     Como última opção, usariam o argumento separatista com a possibilidade até de uma revolução, mas sabiam que o Império jamais abriria mão do Rio Grande do Sul, principalmente após perder a Cisplatina (hoje Uruguai), em 1825, e acreditavam que o golpe de força ao tomarem o governo da Província seria o suficiente para que o governo de Feijó entrasse em acordo com aqueles que representavam as classes dominantes gaúchas.

     Acreditavam, ainda, que a ameaça de Artigas – que idealizava a criação do que chamava “Pátria Grande do Prata”, um país que se estenderia pelos territórios do Paraguai, as províncias argentinas de Corrientes, Entre-Rios e Missiones e as Missões Brasileiras entre os rios Uruguai, Ibicuí, Vacacaí e Santa Maria – de criar um novo país incluindo parte do Rio Grande do Sul, seria um fator importante para que o Império acatasse as reivindicações dos golpistas, evitando assim a possibilidade de desmembramento através de uma revolução que poderia ter o apoio de potências estrangeiras.

     Ao contrário do mito criado em torno de uma revolução libertária exigida pelo povo gaúcho em pé de guerra contra o Império, a tomada do governo da Província foi combinada, em seus detalhes, dentro dos salões das Lojas maçônicas, ponto de encontro das elites gaúchas.
     Eram duas as correntes maçônicas em solo brasileiro, que se identificavam por cores. A Azul – que pregava o federalismo monárquico – era ligada à Inglaterra, onde atuava como poder oculto através das “quatro colunas” exteriorizadas nas quatro principais instituições inglesas: O Foreign Office (serviço de Relações Exteriores), o Almirantado, o Banco da Inglaterra e o Intelligence Service (serviço secreto).
     A maçonaria Vermelha reivindicava os ideais de Rousseau, Locke e Montesquieu e defendia o Liberalismo Republicano, aos moldes da Revolução dos Estados Unidos e da Revolução Francesa. Eram separatistas e lutavam pelo fim do Império.
     Na verdade, era uma só Maçonaria, com duas estratégias não tão distintas assim. Mesmo o poder dominante da época sendo da Inglaterra monárquica, já era previsto que esse poder iria passar para os Estados Unidos republicano, que já invadia o México, dominava o Panamá e ameaçava a unidade dos países latinos proposta por Bolívar. Nos Estados Unidos, a Maçonaria vermelha dominava com o apoio do Império Britânico – maçonaria azul – que de colonizador, após a guerra da independência passara a principal aliado dos Estados Unidos.

     Essas duas propostas estratégicas da Maçonaria brasileira, no Rio Grande do Sul atraíam desde intelectuais libertários a reacionários latifundiários. Entre as duas colunas todos eram iguais. O importante é que essas “duas colunas” mantivessem a todos os irmãos na mesma obediência e que as decisões finais fossem acatadas.

     No início da Revolução Farroupilha, antes de ela se constituir de fato em uma revolução, mas quando ainda era uma simples revolta que visava unicamente a tomada do governo da Província, objetivando o Federalismo, a influência da maçonaria Azul era preponderante.
     O objetivo era o federalismo monárquico, com mais autonomia econômica para a Província. Futuramente, dentro da estratégia proposta, haveria oportunidade para um golpe de estado que instituísse a República. Mas não pensavam em separação do Brasil. Pequenas insurgências aqui e ali, em diversos estados da Coroa, fariam, aos poucos, que o Império se mostrasse impotente e ultrapassado e a proposta da República – como “saneadora de todos os males” – faria com que o povo aceitasse passivamente quando o golpe republicano viesse a acontecer.

     Era esta a idéia dos rebeldes gaúchos quando se reuniram naquela noite de 18 de setembro de 1835, na Loja Philantropia e Liberdade, da qual Bento Gonçalves da Silva era Venerável-Mestre, em Porto Alegre. Estavam presentes José Mariano de Mattos, Gomes Jardim, Vicente da Fontoura, Pedro Boticário, Paulino da Fontoura, Antônio de Souza Neto e Domingos José de Almeida. Decidiu-se por unanimidade que dali a dois dias, 20 de setembro, tomariam militarmente Porto Alegre e destituiriam o presidente provincial Fernandes Braga.
     Na madrugada de 20 de setembro as tropas dos revoltosos, com cerca de 200 homens, penetraram em Porto Alegre, pela Azenha, encontrando pouca ou nenhuma resistência. O Presidente da Província, Fernandes Braga fugiu para Rio Grande, onde se refugiou. Ocupada a capital, os revoltosos deram posse a Marciano Pereira Ribeiro como Presidente Provincial. Cinco dias depois, Bento Gonçalves leu um manifesto, que deixava clara a intenção do golpe. Entre outras coisas, explicitava: “(...) não nos propusemos outro fim que restaurar o império da lei, afastando de nós um administrador inepto e faccioso, sustentando o trono do nosso jovem monarca e a integridade do império.”
     O final do manifesto termina assim: “Viva a integridade do Império! Viva a união brasileira! Viva o Sr. D. Pedro I, imperador constitucional do Brasil! Vivam o riograndenses! Viva o dia 20 de setembro!”
     Não havia qualquer intenção de revolução contra o Império e esperavam que o Regente Feijó (que também era maçom) mandasse outro Presidente Provincial ao gosto dos que agora detinham o poder.

     Mas a resposta de Feijó foi enviar o novo indicado José de Araújo Ribeiro, acompanhado de um verdadeiro aparato de guerra: onze brigues e escunas, além de diversas canhoneiras, lanchas e iates, carregados de armamento e muitos soldados imperiais, sob o comando do capitão de mar e guerra, o inglês John Pascoe Grenfell.
     Araújo Ribeiro tomou posse do governo da Província na cidade de Rio Grande, no dia 15 de janeiro de 1836, o que foi recebido pelos revoltosos como uma declaração de guerra. Até então não tinha havido nenhum outro combate, desde 20 de setembro de 1835. Mas, imediatamente, as tropas farroupilhas, que estavam dispersas, começaram a ser reunidas sob a liderança de Bento Gonçalves, Marciano Ribeiro, Antônio de Souza Neto, Onofre Pires, David Canabarro, Lucas de Oliveira, Pedro Boticário, Vicente Ferrer de Almeida e José Mariano de Mattos.
     Por seu lado, as tropas imperiais eram lideradas por João da Silva Tavares, Francisco Pedro de Abreu (o Chico Pedro, ou Moringue), Manuel Marques de Souza (mais tarde, Conde de Porto Alegre), Bento Manuel Ribeiro (que depois mudou de lado mais três vezes) e Manuel Luís Osório. Para engrossar as tropas imperiais foram contratados mercenários do Uruguai.

FARRAPOS

     Desde 1831, havia os jornais “Jurujuba dos Farroupilhas” e “Matraca dos Farroupilhas”. Farroupilhas, ou Jurujubas era um termo utilizado no Parlamento do Rio de Janeiro pelos membros do Partido Restaurador, que tentavam, assim, menosprezar os gaúchos vinculados ao Partido Liberal, oposicionistas ao governo central. Por seu lado, os liberais chamavam os conservadores de caramurus ou camelos.

     Os liberais assumiram o termo e, inclusive, formaram o Partido Farroupilha, cujos membros reuniam-se na Sociedade Continentino (em alusão a Continente de São Pedro, primeiro nome do Rio Grande do Sul), que deu origem à Loja maçônica Philantropia e Liberdade.
     Já naquela época, circulava no Rio Grande do Sul o conde italiano Tito Lìvio Zambeccari. Maçom e carbonário, Zambeccari atuava na Sociedade Continentino como uma espécie de elo de ligação entre os carbonários italianos e os maçons gaúchos. Tornou-se amigo e assessor daqueles que viriam a ser alguns dos principais líderes da Revolução Farroupilha: Bento Gonçalves, Onofre Pires e Domingos José de Almeida.
     Segundo relato de seus contemporâneos, Zambeccari, Bento Gonçalves, Onofre Pires e José Calvet é que tratavam dos negócios da República Rio-Grandense, sendo Zambeccari a primeira cabeça que planejara a marcha que se deveria seguir mais tarde. Para o historiador Alfredo Varela, o italiano influenciara os manifestos assinados por Bento Gonçalves, sendo o de 24 de março de 1836, de sua autoria. Assim, também, a bandeira da República Rio-Grandense teria sido idealizada por Zambeccari, antes mesmo do início da revolução. Ao rebentar o conflito, tornou-se secretário e chefe do estado-maior do general Bento Gonçalves. Com ele foi preso na batalha do Fanfa, em 4 de outubro de 1836, e enviado à Presiganga, navio-prisão ancorado no rio Guaíba, para depois ser transferido para a Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.

     Assim, o nome Farroupilha não se originou do fato dos revolucionários andarem em farrapos – conforme hoje se veicula, erradamente – mas já existia alguns anos antes de eclodir a revolução. Por outro lado a influência dos maçons Zambeccari, Rossetti e Garibaldi, se não foram decisivas foram predominantes para formar o “espírito revolucionário” necessário para que a revolta libertária tomasse um caráter revolucionário e separatista.

A REVOLUÇÃO

     Em 15 de julho de 1836, os imperiais retomam a cidade de Porto Alegre, ocasião em que foram presos Marciano Ribeiro, Pedro Boticário e mais 32 revoltosos. Bento Gonçalves tentou recuperar a cidade duas semanas depois, mas foi derrotado. Entre 1836 e 1840, Porto Alegre sofreu 1283 dias de cerco – um dos maiores da História – sem que os farroupilhas conseguissem tomar a cidade.

     Em 9 de setembro de 1836 ocorreu o combate de Seival, nos campos dos Menezes, localidade perto de Bagé. Naquela ocasião, os farroupilhas, liderados por Antonio de Souza Netto, derrotaram fragorosamente as tropas de João da Silva Tavares. Naquele momento, a revolução ainda detinha um caráter estritamente regional. Mas, entusiasmados com o feito, os revolucionários, apesar da ausência de Bento Gonçalves, decidiram proclamar a República Riograndense, o que foi feito no dia seguinte, 11 de setembro. A primeira sede do governo foi em Piratini – por isto, também foi apelidada de República de Piratini. A capital da República foi mudada mais duas vezes: para Caçapava do Sul, em 1939 e para Alegrete, em julho de 1842.

     Em outubro de 1836, Bento Gonçalves foi preso na Batalha de Fanfa. Transferido para a Bahia, ficou preso no Forte do Mar. Mesmo preso, foi aclamado Presidente da República Riograndense no dia 6 de dezembro de 1836. Conseguiu fugir, com a ajuda dos maçons baianos, e em 16 de dezembro de 1837 voltou para o Rio Grande do Sul e tomou posse do Governo.

     Foi uma guerra de guerrilhas. Poucas vezes houve confronto direto entre dois exércitos, porque os farroupilhas sabiam que não poderiam enfrentar em campo aberto as forças muitas vezes superiores do Império. A tática de fustigar e recuar foi a mais empregada, provocando desgaste e constante apreensão no inimigo que nunca sabia o momento em que poderia ser atacado. Ocorreram 118 confrontos entre os farrapos e os imperialistas, com 59 vitórias para cada lado. A estimativa é de que morreram 3.400 homens.

     Embora tenha durado dez anos, os combates ocorriam geralmente no verão ou primavera. No tempo frio, os combatentes se recolhiam nas fazendas dos caudilhos, cuidava-se do gado e da cavalhada. Mas não havia desmobilização - o inverno era o período de recrutamento e organização. Período ideal para planejamentos e para os negócios. Durante a revolução, os chefes farroupilhas compravam armas, munições e víveres através dos seus contatos nos países do Prata. 

     Para isso era necessário dinheiro, porque a revolução não poderia ser financiada apenas pelos estancieiros ricos, porque, se fosse assim, em pouco tempo os recursos estariam exauridos e a guerra perdida. Foi então que entrou em cena Irineu Evangelista de Souza, o barão e visconde de Mauá. Natural de Arroio Grande, RS, Mauá também era maçom e muitas vezes ajudou a libertar, com o seu dinheiro, líderes farroupilhas que estavam presos na capital do Império.Há indícios de que Mauá coordenou a capitalização da revolução através de seus contatos na Inglaterra. No Brasil, ele representava a firma Carruthers, Castro e Cia., de Manchester – da qual tornou-se gerente e depois sócio. 

     A revolução tomou novo ímpeto com a vinda de Giuseppe Garibaldi e de Luigi Rosseti, da Itália. Ambos carbonários e maçons. Eram exímios guerrilheiros. Garibaldi tinha fugido da Itália, depois do fracasso do levante liderado por Mazzini. Condenado à morte, em 1835, fugiu para Marselha e depois para a Tunísia. Em 1839 veio para o Brasil e juntou-se à revolução.

     Com Garibaldi, a revolução teve o seu período romântico. Organizou-se uma pequena frota, na tentativa de combater pelo mar, o que apenas deu a oportunidade ao Império de bloquear o acesso à Lagoa dos Patos e ao oceano. Para romper o cerco, Garibaldi mandou construir dois enormes lanchões numa fazenda do atual município de Camaquã (que dista cerca de 125 km de Porto Alegre), que foram arrastados entre o atual município de Palmares do Sul e a foz do Rio Tramandaí (no atual município de Tramandaí) sobre carreta de 8 rodas, por cerca de 200 bois.
     Em Araranguá, no Estado de Santa Catarina, o lanchão Rio Pardo naufragou; todavia, seguiram em frente com o lanchão Seival, comandado pelo estadunidense John Griggs. Em Laguna, as tropas de Garibaldi e de David Canabarro obtiveram grande vitória e anexaram a Província, em 29/07/1839, denominando-a República Juliana.
     Foi naquela ocasião que Garibaldi conheceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, com quem veio a casar-se e que ficou conhecida como Anita Garibaldi e que o acompanhou em suas lutas – tanto no Brasil, como no Uruguai e, depois, na guerra da unificação italiana.
     Na batalha de Curitibanos, no início de 1840, Anita foi feita prisioneira, mas o comandante do exército imperial, admirado com o seu temperamento indômito, deixou-se convencer a deixá-la procurar o cadáver do marido, supostamente morto na batalha. Em um instante de distração dos guardas, tomou um cavalo e fugiu. Após atravessar a nado com o cavalo o rio Pelotas, chegou ao Rio Grande do Sul, e encontrou-se com Garibaldi em Vacaria.
     Em 16 de setembro de 1840 nasceu o primeiro filho do casal, que recebeu o nome de Menotti Garibaldi, em homenagem ao patriota italiano Ciro Menotti. Depois de poucos dias, o exército imperial cercou a casa e Anita fugiu a cavalo com o recém-nascido nos braços e alcançou o bosque onde ficou deitada por quatro dias, até que Garibaldi a encontrou.

     Os imperiais retomaram Laguna em 15/11/1839. Em 1842, Bento Gonçalves dispensou Garibaldi, que foi para o Uruguai, lutar contra Rosas. O jornalista Luigi Rossetti, que editava o jornal farroupilha “O Povo”, tinha morrido no combate de Viamão, em 1840, com o posto de capitão. 

     Apesar dos inúmeros combates – mais escaramuças que combates – nenhuma grande batalha ocorreu. Durante aqueles quase dez anos de guerra houve um jogo tático entre os comandantes dos dois exércitos. Mas três grandes combates foram quase decisivos. A tentativa de tomada de São José do Norte pelos farroupilhas, quando não houve vitória, mas muito derramamento de sangue; a tomada de Caçapava pelos legalistas, que também foi cruenta, e o combate de Taquari, quando tropas de Bento Gonçalves enfrentaram as tropas legalistas, mas foram obrigadas a recuar.

     A guerra não se decidia e as tropas farroupilhas, apesar dos feitos heróicos, estavam exauridas. Foi quando assumiu o governo da Província o maçom Luiz Alves de Lima e Silva - Barão de Caxias.

AS TRAIÇÕES E O MASSACRE DE PORONGOS

[…] Regule V. S. suas marchas de maneira que no dia 14, às duas horas da madrugada possa atacar as forças a mando de Canabarro, que estará nesse dia no Serro dos Porongos. […] No conflito poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. […] Não receia a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu general-em-chefe para entregar o cartuchame sob o pretexto de desconfiarem dela. Se Canabarro ou Lucas forem prisioneiros deve dar-lhes escápula de maneira que ninguém possa nem levemente desconfiar […]

     Assinado por Luiz Alves de Lima e Silva, o então Barão de Caxias.

(Contestado por muitos defensores de Canabarro, o documento escrito por Duque de Caxias para o coronel Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, em 9 de novembro de 1844 foi publicado em 1950 pela editora oficial do Exército, sob ordens do então Ministro da Guerra, General Canrobert Pereira da Costa, junto com outros documentos do Duque de Caxias. O documento apresentado, inclusive com a devida assinatura de Caxias, é reconhecido como autêntico pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.)

     Os ideais dos farroupilhas não foram além da luta pela igualdade de direitos entre duas oligarquias monopolistas. A que centralizava o poder no país – o Império – e os representantes das classes dominantes gaúchas, principalmente latifundiários e profissionais liberais. Não foi uma luta para a melhoria das relações sociais ou, mesmo, uma luta de classes onde o povo teria reivindicado uma reestruturação da sociedade.

     Ao contrário. O povo foi enganado com idéias libertárias vagas, como “direito dos cidadãos” e “luta contra o Império”, que foi demonizado. Mas os verdadeiros direitos que os chefes farroupilhas buscavam eram os seus direitos de classe possuidora dos meios de produção: o poder político.
     Mas, no decorrer da revolução e para atrair adeptos e tornar simpática a sua causa, os farroupilhas lançaram os ideais de Liberdade, Igualdade e Humanidade. Palavras que, na prática, eram nulas, porque aquela era uma sociedade opressora e escravocrata. Percebendo isso, os revolucionários prometeram a libertação dos escravos e maior igualdade social.

     Para que isso se concretizasse e adotasse ares de verdade, e também para fortalecer as forças farroupilhas, foram criados os corpos de Lanceiros Negros. Foram dois corpos de lanceiros constituídos, basicamente, de negros livres ou de libertos pela República Rio-Grandense que lutaram na Revolução Farroupilha. Possuíam 8 companhias de 51 homens cada, totalizando 426 lanceiros .
     Os Corpos de Lanceiros Negros eram integrados por negros livres ou libertados pela Revolução e, após, pela República - com a condição de lutarem como soldados pela causa.Eram recrutados, principalmente, entre os negros campeiros, domadores e tropeiros das charqueadas, e, apesar de lhes ser prometida a liberdade em caso de vitória da revolução, formavam corpos de combatentes separados dos brancos. A sua única e verdadeira liberdade era a de lutar pela causa dos brancos.
     Foram os responsáveis pelas principais vitórias dos farroupilhas, como a de 11 de setembro de 1936 e a da vitória de Laguna, em 1939.

     Com a vinda de Caxias como Presidente de Província, em novembro de 1842 começou a estratégia de estrangulamento da economia dos revolucionários. Para isso contou não só com os seu inexperientes 12.000 soldados como, principalmente com a adesão do eterno traidor Bento Manuel Ribeiro.
     Bento Manuel Ribeiro começou ao lado da Revolução, passou a apoiar o Império, voltou para a Revolução e terminou defendendo o Império e ajudando Caxias. Era a época dos caudilhos, que tinham as suas próprias tropas e Bento Manuel era considerado o fiel da balança. Com o seu apoio, Caxias atacou as cidades de fronteira, evitando o escoamento de charque para Montevidéu e Laguna e comprando cavalos para impedir que os Farrapos tivessem montaria. Mesmo assim, não conseguiu uma vitória decisiva, porque os farroupilhas – com cerca de 4.000 soldados - preferiam escolher o seu próprio campo de batalha e evitavam o confronto direto. Quando perseguidos, os revolucionários se refugiavam no Uruguai. Era a guerra de guerrilhas.
     Ainda assim, os farroupilhas, atacando São Gabriel em 10 de abril de 1843 e, em 26 do mesmo mês, destroçaram Bento Manuel em Ponche Verde. Mas Bento Manuel escapou, para se tornar, depois, marechal do exército imperial. Foi a última vitória dos farrapos.

     Em dezembro de 1842 reuniu-se em Alegrete a Assembléia Constituinte, sob forte discussão política. Era forte a oposição a Bento Gonçalves. Durante 1843 e 1844, sucederam-se brigas entre os farrapos. Numa destas, o líder oposicionista Antônio Paulo da Fontoura foi assassinado. Onofre Pires acusou Bento Gonçalves de ser o mandante. Este respondeu com o desafio a um duelo. Neste duelo (28 de fevereiro de 1844) Onofre é ferido e faleceu dias depois. Ainda em 1844, Bento Gonçalves iniciou conversações de paz, mas retirou-se por discordar de Caxias em pontos fundamentais, assumindo o seu lugar David Canabarro.

     As tratativas estavam em andamento quando surgiu um grande problema: o Império não aceitava a libertação dos negros. Algo tinha que ser feito nesse sentido para que a paz pudesse ser assinada. A questão dos escravos era o único ponto que ainda barrava a assinatura da paz entre os grandes donos de terras que articularam a Revolução Farroupilha e as forças do governo.

     Em 9 de novembro de 1844 Caxias escreveu o documento acima (grifado) para Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, indicando lugar e hora para o ataque aos Lanceiros Negros que estariam desarmados pelo próprio David Canabarro. Em 14 de novembro houve o massacre. Durante a tarde, Canabarro os desarmou deixando apenas as lanças e espadas - e foi passear com o seu estado-maior em uma fazenda próxima. 

     À noite, Moringue atacou, matando mais de cem negros e alguns brancos. Os que escaparam foram “remanejados” para o exército imperial, após a revolução. Muitos foram vendidos como escravos no Rio de Janeiro. Cerca de 40 ex-Lanceiros Negros foram para a fazenda do general Netto, no Uruguai, como escravos. As famílias dos que combateram pelos estancieiros continuaram escravas. Os poucos negros que conseguiram escapar ao massacre formaram pequenos grupos quilombolas.

     O Império precisava da paz devido à ameaça de Rosas e à já prevista Guerra contra o Paraguai – ocasião e que Caxias ficou tristemente famoso. Sua fama de carniceiro é bem conhecida, o povo paraguaio que o diga. Na guerra travada contra o Paraguai, entre 1864 e 1870, ele lá esteve liderando o genocídio de 76% dos habitantes daquele país - conforme os estudos de Júlio José Chiavenato, publicados em livros que ficaram famosos anos atrás.
     Porém, ainda persiste o mito criado pelas classes dominantes brasileiras e suas Forças Armadas de que Caxias seria "magnânimo na vitória", apesar das evidências no Paraguai e do massacre de Porongos. O general Netto também lutou naquela guerra. Foi quando, definitivamente, perdeu a sua alma. 

     Segundo vários historiadores, a famosa “Paz de Ponche Verde” foi uma paz comprada. Ninguém foi punido. Ao contrário, os chefes farroupilhas receberam indenizações do governo. Muitos compraram terras com as indenizações. Os oficiais republicanos passaram a pertencer ao exército imperial, com o mesmo posto angariado na revolução. As dívidas de guerra foram pagas pelo Império. Os ex-revolucionários puderam, finalmente, indicar o Presidente da Província ao seu gosto.

Galeano será leitura básica na Bolívia


Vinicius Mansur no BrasilDeFato
De La Paz na Bolívia

O anúncio foi feito pelo vice-ministro de Descolonização, Félix Cárdenas, durante o 1º Encontro Nacional do Processo de Descolonização, realizado durante esta semana na cidade de La Paz.

Em entrevista ao jornal boliviano Cambio, Cárdenas afirmou que, “a partir de 2011, o Ministério de Educação estabelecerá que a obra de Galeano deve ser necessariamente assumida como um livro base de leitura (...) O livro ‘As Veias abertas da América Latina’ permite ter uma outra visão, já que desestrutura a história colonial da região”, disse Cárdenas.  De acordo com o vice-ministro, outros livros serão incluídos, como os do sociólogo Zavaleta Mercado, “que inspiraram a revolução de 52”.

O livro do historiador, escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano foi publicado em 1971. A obra analisa a história da América Latina desde a colonização européia, com crônicas e narrativas do constante saqueio de recursos naturais da região, divididas em duas partes: “A pobreza do homem como resultado da riqueza da terra” e “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos que navegantes”.

“As veias abertas da América Latina” também será transformada em música na Bolívia. Segundo Cárdenas, o grupo mexicano Bolas Uriana virá à Bolívia, visitará vários departamentos em encontros, principalmente, com povos indígenas para, então, musicalizar o livro. Também há a intenção por parte do vice-ministério de teatralizar-lo.

Despatriarcalização
 
Cárdenas também destacou a recente criação da Unidade de Despatriarcalização, como órgão interno do vice-ministério de Descolonização. “Parece insignificante, isso deveria ser um ministério, mas o que estamos fazendo é transgredir as condutas coloniais, porque não se trata de lutar contra o homem a partir do feminismo, senão de desestruturar o patriarcado como forma de poder”.
De acordo com o vice-ministro, a Unidade de Despatriarcalização está conformada por mulheres indígenas, muitas delas ex-congressistas constituintes, eleitas durante o processo que aprovou a atual Constituição boliviana. “A construção da nova Constituição implica isso, desmontar a conduta colonial”, apontou Cárdenas.

Michael Hudson: “Modelo econômico dos EUA está falido”


Segundo o economista norte-americano, os EUA impulsionaram um modelo econômico que está falido e, com o advento da mais recente crise econômica global, cabe agora aos países que compõem o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) usar sua força conjunta para colocar em marcha um modelo alternativo: “Quando o EUA diz que os países do Bric ainda têm espaço para aumentar suas dívidas, o que quer dizer é que estes países ainda têm minas que podem ser vendidas e ainda têm florestas que podem ser cortadas. Nos próximos anos, o Norte vai fazer o máximo possível para pegar os seus recursos”, disse Hudson, durante seminário promovido pelo CDES em Brasília.

BRASÍLIA - “No cinema, nós já tínhamos o Michael Moore. Agora, na economia, temos o Michael Hudson”. A brincadeira feita pelo conselheiro Jacy Afonso de Melo revela o impacto causado pela intervenção do economista e professor da Universidade do Missouri na quinta-feira (16), durante sua participação em um seminário internacional promovido pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) em Brasília. Hudson, um ex-economista de Wall Street, mereceu repetidos aplausos dos participantes do seminário ao apresentar, assim como o xará cineasta, um ponto de vista ácido e crítico sobre o modelo econômico de seu país.

Segundo o economista norte-americano, os Estados Unidos impulsionou “um modelo econômico que está falido” e, com o advento da mais recente crise econômica global, cabe agora aos países que compõem o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) usar sua força conjunta para colocar em marcha um modelo alternativo: “Quando o EUA diz que os países do Bric ainda têm espaço para aumentar suas dívidas, o que quer dizer é que estes países ainda têm minas que podem ser vendidas e ainda têm florestas que podem ser cortadas. Nos próximos anos, o Norte vai fazer o máximo possível para pegar os seus recursos”, disse Hudson, em uma de suas muitas frases de impacto.

Hudson afirmou que o governo norte-americano passou 50 anos obrigando os países em desenvolvimento a contrair empréstimos que, na verdade, tinham como objetivo principal a criação de uma infra-estrutura que facilitasse a exportação de grãos, minério e outras matérias-primas para os EUA: “Mais tarde, em sua fase neoliberal, o governo dos EUA perguntou: por quê vocês, para pagar as dívidas que contraíram conosco, não vendem as estradas e portos que construíram com o dinheiro que emprestamos?”, concluiu.

Instituições como o FMI e o Banco Mundial, na visão de Hudson, foram criadas com o objetivo de fazer com que os países em desenvolvimento dependessem dos EUA. Segundo o economista, a adoção do dólar como moeda de parâmetro para a economia mundial foi, ao lado do que qualificou como “dependência militar”, o principal fator de fortalecimento para a hegemonia norte-americana: “Por isso, os Brics podem criar novas estruturas econômicas que não sejam baseadas no poder militar dos EUA”, disse.

Hudson citou o exemplo da China, “a quem os EUA só deixam gastar sua riqueza para comprar bônus do Tesouro americano”, para afirmar que o Brasil, fortalecido pela travessia sem grandes traumas da crise econômica global, pode seguir outro caminho: “O Brasil pode criar os seus próprios créditos, e vocês não precisam de moeda estrangeira para fazer a economia funcionar”.

Novo sistema financeiro
Além de Michael Hudson, outros palestrantes estrangeiros analisaram a conjuntura econômica mundial. Também norte-americano e pesquisador da Universidade do Missouri, Larry Randall Wray pregou a necessidade de criação de um novo sistema financeiro internacional: “Esse sistema deve ter um mecanismo de pagamento sólido e seguro, promover empréstimos menos longos, adotar um mecanismo de financiamento imobiliário sólido e um ativo de capitais a longo termo”, disse Wray, acrescentando que “esses ajustes não precisam ser feitos necessariamente pelo setor privado”.

Diretor do Observatório Francês de Conjunturas Econômicas (OFCE), Xavier Timbeau defendeu a adoção de programas de renda-mínima pelos países em desenvolvimento: “Precisamos adotar novos indicadores de riqueza que não sejam meramente econômicos. Não digam que para reduzir a pobreza basta aumentar o crescimento da economia” disse o economista francês.

O economista mexicano Julio Boltvinick também sugeriu “uma abordagem crítica sobre o paradigma dominante que reduz o bem-estar humano ao bem-estar econômico” e defendeu a adoção de novos conceitos de bem-estar: “Riqueza por si só gera poder, mas não gera necessariamente bem-estar”. Boltvinick defendeu ainda a criação de um índice de progresso social e a adoção de um indicador de tempo livre como formas de medir a desigualdade social em cada país: “Uma sociedade justa tem um tempo livre igualitário”.

PARA QUE O POVO BRASILEIRO SE PONHA DE PÉ

Fabio Konde Comparato no ConversaAfiada


Dentro de poucos dias realizaremos, mais uma vez, eleições em todo o país. Elas coincidirão com o 22º aniversário da promulgação da atual Constituição. Quer isto dizer que já vivemos em plena democracia?


Nada mais ilusório. Se o regime democrático implica necessariamente a atribuição de poder soberano ao povo, é forçoso reconhecer que este continua, como sempre esteve, em estado de menoridade absoluta.


Povo, o grande ausente

Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma lacuna: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o Governador Geral.


Iniciamos, portanto, nossa vida política de modo original: tivemos Estado, antes de ter povo. Quando este enfim principiou a existir, verificou-se desde logo que havia nascido privado de palavra.


Foi assim que o Padre Antonio Vieira o caracterizou, no Sermão da Visitação de Nossa Senhora, pregado em Salvador em junho de 1640. Tomando por mote a palavra latina infans, assim discorreu o grande pregador:


“Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (…) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.


Quase às vésperas de nossa Independência, esse estado de incapacidade absoluta do povo afigurava-se, paradoxalmente, não como um defeito político, mas como uma exigência de ordem pública. Em maio de 1811, o nosso primeiro grande jornalista, Hipólito José da Costa, fez questão de lançar nas páginas do Correio Braziliense, editado em Londres, uma severa advertência contra a eventual adoção no Brasil do regime de soberania popular:


“Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas ninguém aborrece mais do que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo.”


A nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: – Não terei a vida toda de carregar a albarda ? ”


A mesma cena, com personagens diferentes, é repetida 67 anos depois, na proclamação da república. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada.”


O disfarce partidário-eleitoral


Mas afinal, era preciso pelo menos fazer de conta que o povo existia politicamente. Para tanto, os grupos dominantes criaram partidos e realizaram eleições. Mas tudo sob forma puramente teatral. O povo tem o direito de escolher alguns atores, mas nunca as peças a serem exibidas. Os atores não representam o povo, como proclamam as nossas Constituições. Eles tampouco representam seu papel perante o povo (sempre colocado na platéia), mas atuam de ouvidos atentos aos bastidores, onde se alojam os “donos do poder”.


No Império, Joaquim Nabuco qualificava a audácia com que os partidos assumiam suas pomposas denominações como estelionato político. Analogamente no início da República, o fato de a lei denominar oficialmente eleições as “mazorcas periódicas”, como disse Euclides da Cunha, constituia “um eufemismo, que é entre nós o mais vivo traço das ousadias de linguagem”.


A Revolução de 1930 foi feita justamente para pôr cobro às fraudes eleitorais. Mas desembocou, alguns anos depois, na ditadura do “Estado Novo”, que suprimiu as eleições, sem no entanto dispensar a clássica formalidade da outorga à nação (já não se falava em povo) de uma nova “Constituição”.


Após o término da Segunda Guerra Mundial, em que muitos dos nossos pracinhas tiveram suas vidas ceifadas na luta contra o nazifascismo, fomos moralmente constrangidos a iniciar uma nova vida política, sob o signo da democracia representativa. Mas a legitimidade desta durou pouco tempo. Já em 7 de março de 1947, ou seja, menos de cinco meses depois de promulgada a nova Constituição, o Partido Comunista foi extinto por decisão judicial ( nesta terra, a balança da Justiça sempre cedeu aos golpes da espada). Em fevereiro de 1954, com o “manifesto dos coronéis”, teve início a preparação do golpe militar de 1964. O estopim para deflagrá-lo foi a iminência de que as forças de esquerda chegassem eleitoralmente ao poder e executassem o programa das “reformas de base”, com o desmantelamento econômico da oligarquia.


Obviamente, para os nossos grupos dominantes, os cidadãos podem votar como quiserem nas eleições, mas desde que se lembrem de que “nasceram para mandados e não para mandar”, segundo a saborosa expressão camoniana.


O regime autoritário, instaurado em 1964 pela caserna, com o apoio do empresariado, dos latifundiários e da Igreja Católica, sob a proteção preventiva do governo norte-americano, reconheceu que a assim chamada “Revolução Democrática” não poderia suprimir as eleições e os partidos. Manteve-os, portanto, mas reduzidos à condição de simples fantoches. Era a “democracia à brasileira”, como a qualificou o General que prendeu o grande Advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou simplesmente: “General, eu prefiro o peru à brasileira”.


O regime de terrorismo de Estado foi devidamente lavado pelo Poder Judiciário, que decidiu anistiar, com as lamentações protocolares, os agentes públicos que mataram, torturaram e estupraram milhares de oponentes políticos.


Chegamos à fase atual, em que as eleições já não incomodam os oligarcas, porque mantém tudo exatamente como dantes no velho quartel de Abrantes. O povo pode até assistir, indiferente ou risonho, uma campanha presidencial, em que os principais candidatos dão-se ao luxo de não discutir um só projeto ou programa de governo, preferindo ocupar todos os espaços da propaganda oficial com chalaças ou sigilos.


Tudo parece, assim, ter entrado definitivamente nos eixos. Um olhar atento para a realidade política, porém, não deixará de notar que a nossa tão louvada democracia carece exatamente do essencial: a existência de um povo soberano.


Iniciamos nossa vida política, sem povo. Alcançamos agora a maturidade, como se o povo continuasse politicamente a não existir.


Sem dúvida, a Constituição oficial declara, solenemente, que “todo poder emana do povo”, acrescentando que ele o exerce “por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Mas toda a classe política sabe – e o Poder Judiciário finge ignorar – que na realidade “todo poder emana dos grupos oligárquicos, que o exercem em nome do povo, por meio dos representantes por este eleitos”.


Daí a questão inevitável: o que fazer para mudar esse triste estado de coisas?


A emancipação política do povo brasileiro


É preciso atacar desde logo o ponto principal.


A soberania, na Idade Moderna, consiste, antes de tudo, em aprovar a Lei das Leis, isto é, a Constituição. Trata-se de uma prerrogativa que só pode ser exercida diretamente. Quem delega o seu exercício a outrem está, na realidade, procedendo à sua alienação. O chamado “poder constituinte derivado” é, portanto, um claro embuste.


Ora, neste país, Constituição alguma, em tempo algum, jamais foi aprovada pelo povo. Todas elas foram votadas e promulgadas por aqueles que se diziam, abusivamente, representantes do povo; quando não foram simplesmente decretadas pelos ocupantes do governo.


O mesmo ocorre com as emendas constitucionais. A Constituição Federal em vigor, por exemplo, já foi emendada (ou remendada) 70 (setenta) vezes em 22 anos; o que perfaz a apreciável média de mais de 3 emendas por ano. Em nenhuma dessas ocasiões, o povo foi convocado para dizer se aceitava ou não tais emendas.


Isto, sem falar no fato absurdo de que a Constituição Federal, ao contrário de várias Constituições Estaduais, não admite a iniciativa popular de emendas ao seu texto.


É preciso, pois, começar a reforma política (alguns preferem dizer a “Revolução”), reservando ao povo o poder nuclear de toda soberania. No nosso caso, ele consiste em aprovar, diretamente, não só a Constituição Federal, como também as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais, bem como suas subsequentes alterações respectivas.


Em segundo lugar, é indispensável reconhecer ao povo o direito de decidir, por si mesmo, mediante plebiscitos e referendos, as grandes questões que dizem respeito ao bem comum de todos. A Constituição Federal  declara, em seu art. 14, que o plebiscito e o referendo, tal como o sufrágio eleitoral, são formas de exercício da soberania popular. Mas determina, no art. 49, inciso XV, que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar plebiscitos e convocar referendos”. Ou seja, o mandante somente pode manifestar validamente a sua vontade, se houver concordância dos mandatários. Singular originalidade do direito brasileiro!


Para corrigir esse despautério, a Ordem dos Advogados do Brasil, por proposta do autor destas linhas, apresentou anteprojetos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (transformados no projeto de lei nº 4.718/2004 na Câmara dos Deputados e projeto de lei nº 001/2006 no Senado), pelos quais o plebiscito e o referendo podem ser realizados mediante iniciativa do próprio povo, ou por requerimento de um terço dos membros da Câmara ou do Senado.


A proposta da OAB procurou harmonizar os dispositivos antagônicos da Constituição Federal, interpretando a autorização e a convocação de plebiscitos e referendos, pelo Congresso Nacional, como atribuições meramente formais e não de mérito.


Previram ainda os anteprojetos da OAB novos casos de obrigatoriedade na realização de plebiscitos e referendos.


Assim é que, para impedir a repetição da “privataria” do governo FHC, passaria a ser obrigatório o plebiscito para “a concessão, pela União Federal, a empresas sob controle direto ou indireto de estrangeiros, da pesquisa e da lavra de recursos minerais e do aproveitamento de potenciais de energia hidráulica”; bem como para a concessão administrativa, pela União, de todas as atividades ligadas à exploração do petróleo.


Quanto aos referendos, a fim de evitar o absurdo da legislação eleitoral em causa própria, determinam os projetos de lei citados a obrigatoriedade de serem referendadas pelo povo todas as leis sobre matéria eleitoral, cujo projeto não tenha sido de iniciativa popular.


Inútil dizer que tais projetos de lei acham-se devidamente paralisados e esquecidos em ambas as Casas do Congresso.


Para completar o quadro de transformação da soberania popular retórica em poder supremo efetivo, tive também ocasião de propor duas medidas indispensáveis em matéria eleitoral. De um lado, o financiamento público das campanhas; de outro lado, a introdução do recall ou referendo revocatório de mandatos eletivos, proposta também pela OAB e objeto da emenda constitucional nº 073/2005 no Senado Federal. Assim, o povo assumiria plenamente a posição de mandante soberano: ele não apenas elegeria, mas também teria o direito de destituir diretamente os eleitos. Para os que se assustam com tal “excesso”, permito-me lembrar que o recall já existe e é largamente praticado em 19 Estados da federação norte-americana.


Não sei se tais medidas tornar-se-ão efetivas enquanto eu ainda estiver neste mundo. O que sei, porém, com a mais firme das convicções, é que sem elas o povo brasileiro continuará a viver “deitado eternamente em berço esplêndido”, sem condições de se pôr de pé, para exigir o respeito devido à sua dignidade.



(*) Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Gremio de periodistas demanda a proteção a repórteres


Prensa Latina
Imagen activa A Federação de Associações de Jornalistas de México (FAPERMEX) exigiu novamente às autoridades federais que se garantam as liberdades de expressão, depois da agressão sofrida por duas repórteres do Diário de Cidade Juárez.

  A pedido de FAPERMEX, a propósito da morte do jovem repórter gráfico Luis Carlos Santiago e as feridas de balas sofridas por seu colega Carlos Manuel Sánchez, somou-se hoje a Federação Latinoamericana de Jornalistas (FELAP), com sede nesta capital.

Ambas organizações avaliaram como uma agressão covarde, premeditada e aleivosa cometida na Cidade Juárez, estado do norte de Chihuahua, contra os dois jovens profissionais praticantes de 21 e 22 anos de idade.

FAPERMEX argumentou que este novo homicídio poderia tratar de um crime de caráter político, devido às denúncias impulsionadas em Chihuahua por Afasto da Rosa, do mesmo jornal e filho do visitante da Comissão Estatal de Direitos Humanos, quem também tem denunciado atos delitivos do crime organizado ali.

As duas organizações dos profissionais da imprensa recordaram que este é o segundo atentado contra jornalistas do Diário em menos de dois anos, depois do assassinato do repórter Armando Rodríguez, 13 de novembro de 2008.

O vice-presidente da FELAP, Teodoro Renderia, manifestou à Prensa Latina que ante feitos como estes se deve demandar com energia que sejam castigados os autores do assassinato e solicitou o apoio a seus pronunciamientos de todos os jornalistas da América Latina e do Mundo.

Por sua vez, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), informou que com o homicídio de Luis Carlos Santiago se elevou a 65 o número de jornalistas assassinados no México desde o ano 2000.

Acrescentou que só no atual sexenio de governo se registrou o desaparecimento de 12 jornalistas e 16 atentados contra instalações de meios de comunicação do país.

Essa entidade nacional pediu em um comunicado difundido às autoridades federais pesquisar e esclarecer o atentado onde resultou morto o comunicador e gravemente ferido seu colega.

A CNDH demandó por sua vez a todos os níveis de governo do país levar a cabo ações para evitar fatos dessa natureza, já que quando um jornalista sofre um agravo, de maneira indireta se vulnera o direito à informação de toda a sociedade.
 

sábado, 18 de setembro de 2010

Brilhantes Páginas na História da Medicina Árabe

A medicina foi uma das primeiras ciências que apareceram na civilização árabe islâmica, depois da ciência da religião e da própria língua árabe.
A evolução da medicina árabe e sua prosperidade são lembradas em várias ocasiões, o próprio profeta Maomé (Muhammad) diz: “Oh servos de Deus que estão doentes, o Deus poderoso não permitiu doença sem que a mesma tenha cura, aprenda de seu conhecimento e ignore a ignorância.” E disse o Imã AL shafaay: “Não conheço ciência, depois do Halal e do Haram (ciências da religião), mais nobre que a medicina.”
Dois médicos apareceram no seio do Islam, AL Hareth Ben kaldeh AL thaqafi e seu filho AL Nadir, da cidade de AL Taef. AL Hareth gozava de enorme prestígio e era chamado de “Médico dos Árabes”. Acompanhou o tratamento de importantes nomes como Saad ben Abi Waqas, conquistando para a medicina a atenção de Califas e Emires Omíadas e Abássidas,  o que constituiu um importante fator para o desenvolvimento e prosperidade da medicina.
Outro importante fator que ajudou a fazer a medicina árabe prosperar foi a tradução para a língua árabe de textos dos mais variados campos da medicina de outras civilizações, especialmente o que foi traduzido da medicina grega dos volumes de Hipócrates e Galeno, entre outros. Os grandes médicos , árabes e muçulmanos, eram unidos pela estrutura do conhecimento entre a filosofia e a medicina, assim como os médicos gregos.  Portanto a Filosofia era a origem e o critério para os médicos de então, o que fez com que tivessem uma visão holística do ser humano, capacitando–os acessar todos os elementos da estrutura humana com parte do sistema da medicina, pesquisando e elaborando o mecanismo de interação entre estes elementos.
Os filósofos árabes e muçulmanos até o século V da Higra (século XI d.C), acreditavam que a medicina não é uma ciência por sim mesma, sendo o estudo filosófico componente indispensável para que se tornasse completa. E talvez isto nos esclareça a razão da afirmação do filósofo AL Farabi (932 d.C), (Medicina Aplicada), no livro “Estatístico das Ciências” de que segundo a tradição árabe, ser filósofo era condição para ser médico, sendo uma característica árabe a distinção entre o Médico e alguém que praticava apenas o ato de “medicar”. O médico era considerado “sábio”, pois além de deter a técnica da medicina , detinha também o conhecimento filosófico, diferentemente de quem se utilizava apenas da técnica médica. Não há dúvidas de que feitos de médicos árabes e mulçumanos como Al Razi, Ibn Sina (Avicena) e Eben Rachid, dentre outros, os projetaram ao topo da história da civilização humana.
O Senso Crítico
Para construir uma clara imagem na história da medicina árabe, os médicos árabes se utilizaram do senso crítico. As traduções do grego, entre outras línguas, foi um fator relevante no início de sua ascensão, no entanto rapidamente assimilaram seu criticismo e corrigiram seus excessos, numa época em que ninguém ousaria criticar as opiniões dos médicos gregos como Hipócrates e Galeno. O médico árabe Dr. AL Razi (926 d.C ), no seu livro intitulado “Dúvidas sobre Galeno”, respondeu aos que o contestavam em sua crítica a Galeno dizendo:  Aquele que não ousa se utilizar da crítica, não pode ser considerado filósofo.
Também Ibn Sina no livro “Estatuto da Medicina” aponta várias contradições na medicina de Galeno; Por outro lado, Ibn Nafis , não hesitou em citar no livro “Estudo da Anatomia” o trabalho crítico de Galeno no campo da anatomia, e sua importância quanto à afirmação do senso crítico que guiou a medicina árabe a uma evidente independência dos conceitos da medicina grega.
Totalitarismo
A idéia que se destaca na medicina árabe totalitarista é a relação entre o que é material e o que é moral ou psicológico na vida humana, a chamada relação dialética. A medicina grega focava primeiramente nas causas físicas da doença, a medicina indiana nas causas mentais e psicológicas da doença, já a medicina árabe considera os dois lados juntos, com a mesma importância. Se o médico, por exemplo, falha no diagnóstico material, busca analisar também o lado psicológico. Há vários volumes psiquiátricos nos acervos da literatura médica árabe.
O médico “yohanna ben massouih” classificou em seu livro intitulado “ al Malikhouliah “ causas, sintomas e tratamentos. Assim como “Honein Ben Ishaac” também escreveu no livro intitulado “Tadbeer El Soudauin” e Al Razi, especialista em psiquiatria, escreveu o livro “A medicina Psiquiátrica” e continuou na mesma linha no livro “AL mansouri”, que trata das enfermidades do corpo ao mesmo tempo em que trata da alma.  Tais livros demonstram na história da medicina, o quão avançado estava à medicina árabe na área da psiquiatria.
Fairawoi Ibn Abi Asibah , enfatizou as habilidades de Ibn Sina neste campo ao relatar: “certo dia Ibn Sina (Avicena) me chamou a atenção para falar de um paciente que após o exame clínico teve certeza de que não sofria de nenhum mal físico, mas sim de males psicológicos. Ibn Sina mandou chamar o homem que conhecia todos os bairros da cidade e suas ruas, fez então que enumerasse todos os bairros da cidade, nome por nome, enquanto isso Ibn Sina media o pulso do paciente, sentia a variação da pulsação e percebia as mudanças na sua expressão. Durante o exame notou que o paciente era afetado quando ouvia o nome de um bairro em especial na cidade. Então Ibn Sina mandou que mencionasse os nomes das ruas daquele bairro até descobrir exatamente a rua que afetava o paciente... E assim por diante até chegar a mencionar a lembrança das casas e seus moradores individualmente, chegando ao nome de certa mulher. Então Ibn Sina concluiu que aquele homem a amava, e o tratamento ideal seria que se casasse com ela, somente assim, se curaria”.
A Tolerância e a Medicina
A tolerância sempre foi um feito essencial da sociedade árabe islâmica, em especial no campo da medicina, profissão que não pode ser restrita à religião, raça ou sexo, mas estudada e exercida para todos os que vivem nas regiões árabes, não importando quem seja o paciente.
Trabalharam nos califados Omíadas e Abássidas médicos de diversas nacionalidades e religiões, todos eram respeitados e admirados. No Califado Omíada de Damasco, por exemplo, havia médicos cristãos importantes como Ibn Athal, que tratava o próprio califa Ben Abi Sfian (60 Hegira / 680 d.C); O médico Ibn ِAbjar que trabalhou no palácio do califa Amer ben AbdelAziz ( 101 Hegira / 720 d. C ).  Também serviram no palácio Omíada médicos de diversas origens, como o cristão Jorjes Ben Bakhtisho, médico do califa Abi Jaafar AL Mansouri (158 Hegira / 775 d.C), e assim seguiram seus filhos e netos no serviço da família Abássida por mais de três séculos.
Os Abássidas também trouxeram médicos da Índia para Bagdá , o que favoreceu a tradução de literatura médica da língua Hindu para o Árabe.
Médicos judeus também trabalharam no palácio do Califado Fatímida no Egito, como Musa Ben Azar, seus filhos e netos, e médicos cristãos como Mansur Ben Sahlan.
Na Corte de Salah AL Din Al Ayoubi (Saladino), (589 Hegira / 1193 d. C), serviram diversos médicos cristãos, apesar do conflito com os cruzados, como Assad ben AL Mutran  e Abi al Faraj al Nassrani, além do famoso médico judeu Musa Bin Maimoun.
Os estatutos hospitalares árabes demonstravam importantes aspectos da tolerância na medicina árabe. Entre as normas está explicitamente descrita a não discriminação no tratamento de muçulmanos e não mulçumanos, árabes e não árabes.
As portas dos hospitais estavam sempre abertas para o tratamento de todos que viviam nas regiões árabes e islâmicas, não importando a raça ou a religião. Um fato histórico confirma isto; Durante uma epidemia deflagrada nos dias do Califa Abássida Muntaqadar Billah (320 Hegira / 932 d.C), o ministro Ali Bin Issa ordenou ao então ‘presidente’ dos médicos em Bagdá, Sanan Bin Tabet, o envio de médicos para cuidar dos pacientes nas vilas rurais. A equipe de médicos alcançou uma cidade rural chamada “sawar” habitada em sua maioria por judeus. Então os médicos escreveram pedindo autorização para se estabelecerem no local e tratar os habitantes, na resposta foram informados de que de acordo com os estatutos hospitalares de Bagdá, não se faz diferença no tratamento de muçulmanos e não muçulmanos, com isso estavam autorizados a tratar de todos, sem fazer distinções.
Presidente dos Médicos
O pioneirismo da ciência médica árabe foi constatado em diversos temas, um deles foi na criação do posto de “Presidente dos Médicos”. O primeiro a ocupar este posto foi o Califa Abássida Harun AL Rashid (193 Hegira / 809 d.C). O cargo de presidente permaneceu durante quase todas as eras da História Islâmica até os dias dos Mamelucos. O centro da presidência ficava na capital, Bagdá, e sua função era a administração dos médicos, hospitais e demais assuntos relacionados à saúde. O próprio Califa Abássida era quem apontava o presidente dos médicos.
Uma de suas importantes funções era a de aplicar exames de capacitação a farmacêuticos e médicos na época. O exame para farmacêuticos apareceu durante o governo do Califa AL Mamun (218 heriga / 832 d.C). Al Mamun foi o primeiro a ficar atento para supostos farmacêuticos charlatões, que receitavam remédios alternativos aos prescritos.
AL Mamum testou todos os farmacêuticos ao pedir um remédio que não existia, muitos afirmaram ter o remédio, mas trouxeram medicamentos diferentes. Desde então os farmacêuticos tinham de passar por exame para adquirir a licença para trabalhar.
Durante o Califado de AL Mutasim Billah (227 Hegira / 842 d.C), todos os farmacêuticos da região foram novamente Submetidos a um teste, os reprovados foram expulsos da cidade, os que insistiam em permanecer foram executados.
Já o exame para médicos começou na época do governo do califa Abássida, Al Montaqadar Billah, antes destes exames, para o exercício da profissão bastava conhecer tratamentos e ter lido algum livro de medicina de algum autor conhecido da época. Havia pessoas com capacidade e que exerciam a prática da medicina sem nenhuma restrição, mas com o passar do tempo, o caos tomou conta da profissão. Certa vez o califa soube da morte de um homem por erro médico em Bagdá, então promulgou a ordem que proibia outros doutores a exercerem a profissão antes de passarem pelo exame do Presidente dos Médicos, que então era Sanan Ben Tabet. Os aprovados no exame receberam um certificado que permitia o exercício da profissão. Alem de um manual listando as doenças e o tratamento correto para as mesmas.
Oitocentos e sessenta doutores foram aprovados. Alguns não foram submetidos aos exames devido à tradição e grande fama. Muitos deles já trabalhavam a serviço do califado por hereditariedade.
Os Hospitais
Os hospitais são uma maravilha a parte na história da medicina árabe, pois ofereciam um local de enorme efervescência cultural e científica, servindo a propósitos variados, além da atividade médica. Possuíam fontes, salões de leitura, bibliotecas, capelas e dispensários. As escolas médicas introduziram um grande número de drogas (químicas e herbáceas).
Entre os medicamentos introduzidos pelos árabes destacam-se o âmbar, almíscar, cravo-da-índia, pimenta, gengibre, noz-moscada, cânfora, sena, cassis e a noz-vômica. Desenvolveram métodos de extração, técnicas de destilação e cristalização, que possibilitaram o estudo e desenvolvimento de medicamentos até então desconhecidos, além de serem essenciais à formação da farmácia e da química.
Havia dois tipos de hospitais, Fixos e Móveis, e é importante notar que os árabes conheciam estes dois tipos de atendimento mesmo antes do aparecimento do Islã. Os historiadores são unânimes quanto ao primeiro hospital fixo construído durante o islã, durante o reinado do Califa Omíada AL Walid ben Abd Elmalek, na cidade de damasco, para o qual trouxe médicos famosos fornecendo a eles toda infra-estrutura disponível na época.
O mais famoso foi “AL Nuri”, na cidade de Damasco, construído pelo rei, Nur El din zanki (579 Hegira / 1174 d.C.). O primeiro hospital construído durante a era Abássida foi no governo do Califa Harun AL Rashid, na cidade de Bagdá, e seguiu-se o movimento de construção de hospitais na capital Abássida até o início do séculoX, somando aproximadamente oito hospitais. No Egito a construção de hospitais começou durante o governo de Amro Bin AL Aas. Mais tarde surgiu na região, talvez, o mais famoso hospital de então chamado “almansuri” também conhecido por “Qalaoun”, pois foi construído pelo sultão mameluco Al Mansour Qalaoun (1289 d.C).
Há registro de mais de 34 hospitais em todo território islâmico. O hospital de Bagdá, fundado pelo califa Al-Mutkadir, foi o maior do século X. Al-Razi praticou e ensinou nele. Foi onde implantou o princípio de se recolher e guardar o histórico clínico para ser utilizado em discussões de casos, no aprendizado.
O hospital de Damasco foi o mais suntuoso. Servia também de escola médica, com uma das maiores bibliotecas da época. Os convalescentes eram internados em pavilhões, organizados em orfanato, biblioteca e enfermarias especiais, que atendiam feridas, afecções oculares, diarréias, transtornos da mulher e febres. Cada paciente recebia uma ajuda de cinco moedas de ouro para cuidar da família até sua volta ao trabalho.
Todos tinham as portas abertas para paciente de todas as classes sociais e de todas as origens territoriais ou crença religiosa.
Hospitais Móveis
Os árabes foram realmente pioneiros em hospitais móveis, desconhecidos em outras civilizações. Tais hospitais eram transferidos de um lugar para o outro para cuidar das populações rurais. Estes hospitais continham uma equipe médicas e assistentes, equipados de instrumentos e remédios, transportados de uma vila pra outra em animais.
Este tipo de ‘hospital móvel’ era muito comum na época do Califado Abássida de Muntaqadar Bllah.

Ibn AL Siba relata em “Ayoun Alanba” (Olhos da Notícia), que o ministro Ali Bin Aissa escreveu um comunicado ao então presidente dos médicos em Bagdá, Sanan Ben Tabet, ordenando que fosse feito todo o esforço necessário para o atendimento da população, fornecimento de remédio e tratamento para todos, em todos os lugares.
Saúde dos Prisioneiros
Em tempos em que as prisões de outras nações pareciam mais “cemitérios Pra Vivos” , nas prisões árabes a saúde dos presos era inspecionada com freqüência, conforme ordens do Califa Muntaqader ao Presidente dos Médicos. As prisões tinham que ser inspecionadas para investigar a saúde dos presos, garantindo a eles o tratamento necessário. Evitando assim epidemias dentro e fora das prisões.
O impacto da medicina árabe na renascença ocidental
Enquanto a medicina Árabe vivia seus tempos áureos, a medicina ocidental vivia no obscurantismo e no subdesenvolvimento, baseando seus diagnósticos e tratamentos em mitos. O príncipe árabe Osama Bin Monqadhr, em suas notas, aponta as barbaridades praticadas pelos médicos europeus no tratamento dos seus doentes durante as cruzadas (sec. Xd. C) na região da Síria. Ele citou que na medicina européia prevalecia a idéia, de que as doenças eram causadas por espíritos maléficos como punição por pecados cometidos, conforme ensinava a Igreja na época, e que a cura era obtida não com tratamento ou remédios, mas com o perdão dado pela Igreja que proibia a medicação de seus fiéis e ordenava que fossem queimados os livros de medicina em circulação, considerados bruxaria e um desafio a Deus. No entanto, desde o séc. XI d.C. a medicina árabe começou a ter reflexos no ocidente, através da região da Sicília, Espanha e também pelo conhecimento adquirido pelos cruzados em regiões árabes.
Diversas obras foram traduzidas do árabe para o latim, uma figura importante neste processo foi “Constantino, o africano” (1087 d.C.), que comercializava remédios em Tunis. Ele importou para a Europa várias obras traduzidas do árabe para o latim. Quando se estabeleceu na Itália traduziu para o latim outras importantes obras de Ali bin Alabas, Ibn Jazar, Costa Bin Luka e Honein Ibn Sahac, alem dos volumes traduzidos do Grego de Galeno e Hipócrates.
Certamente as interpretações de Constantino foram à base da escola de medicina de Salermo em meados do séc. XI d.C, escola que se tornou uma ponte que trazia os conhecimentos da medicina árabe para a Europa.
Para o bem da civilização ocidental veio para a cidade de Toledo, Espanha, em meados do séc. XII d.C. um cientista chamado Girard Cremona 1187d.C (da cidade de Cremona - norte da Itália) a procura de um livro traduzido do árabe chamado “AL Mojsti” conhecido como “Alktab al Azzem” (O Grande Livro), do escritor Grego Ptolomeu. E se surpreendeu por encontrar em Toledo, vários outros manuscritos científicos remanescentes escritos em árabes, então se empenhou no estudo da língua árabe e na tradução destes achados para o latim, primeiramente com a ajuda de um assistente e depois sozinho. Ele que pretendia fazer apenas uma viagem curta a Toledo, acabou por permanecer lá por muitos anos até sua morte. Historiadores afirmam que Girard, traduziu sozinho um quarto de todos os livros traduzidos do árabe para o Latim, mais de oitenta livros sobre Medicina, Filosofia, Astronomia, Engenharia, Matemática entre outros.
Os primeiros livros de medicina traduzidos para o latim por Girard foram “alqanun” (A Lei) de Ibn Sina; “Madkhal Ila aL-tob” (Introdução à Medicina), do AL Razi ;  e “AL Jiraha” (A Cirurgia), de Zahraoui. Girard também traduziu um considerável volume de obras Gregas do árabe para o Latim, como as obras de Hipócrates e Galeno.
Historiadores concordam que dos árabes e de suas brilhantes obras de medicina traduzidas do árabe para o latim surgiram as bases para a renascença da medicina na Europa.
Com isso a medicina árabe teve bases sólidas, compreensivas e criativas e é das mais brilhantes páginas da história da civilização árabe, e de toda humanidade.
Os árabes não apenas legaram seus próprios conhecimentos para o mundo, como também possibilitaram a existência hoje dos conhecimentos gregos tanto na medicina como em outros campos científicos. Fato histórico que libertou o ocidente das “prisões” da idade média e o fez renascer pela difusão do conhecimento e do espírito crítico, preservados, elaborados ou implementados pelos árabes e divulgados para o ocidente permitindo a ascensão e a evolução da medicina para como a conhecemos hoje.

Fonte:  Arabesc
Original em árabe. Tradução: Jean Ajluni